Amigos, amigos, ideologias à parte: no cafezinho do Senado, o Fla-Flu político e as hostilidades não encontram guarida

Uma visita ao cafezinho

Crusoé acompanhou a rotina das excelências no espaço do Congresso onde, longe dos holofotes, direita e esquerda se abraçam
22.11.19

“Só falta uma cachaça aqui!”, queixa-se o deputado Nelson Barbudo, ostentando sua conhecida barba grisalha bagunçada, sombreada pelo característico chapéu — que ele diz só tirar quando está na igreja —, enquanto saboreia um prato de carne. “A gente até tem cachaça, chefe, mas está guardada”, emenda, entre risos, um assessor de paletó e calça jeans justa, com fivela de vaqueiro, à moda do campo, que acompanha o deputado-fazendeiro eleito pelo PSL do Mato Grosso. A poucos metros dos dois uma outra tribo, à la Faria Lima, bate um papo animado. É um grupo de jovens de cabelos emplastados, sapatos estilosos e ternos de grife. No meio deles, com pose de líder, o deputado-empresário paulista Vinícius Poit, do Novo, exibe hematomas no rosto ao explicar que fora atingido por um mastro de bandeira enquanto ministrava uma palestra a estudantes no plenário de uma das comissões da casa: “Tive que ir para o serviço médico, tomar injeção antitetânica”. Do elevador próximo sai outra figura, um Tiririca cantante, de tênis azul, calça jeans, camisa verde, paletó marrom e cabelo amarelo. “Acabei de chegar de Orlando! Da casa do Orlando, meu amigo. Fica perto daqui”, anuncia em voz alta, como quem pretende contar uma piada. Ninguém ri. Mas Tiririca segue atrás de plateia, fazendo graça pelo salão.

Esqueça os discursos inflamados e os embates acirrados no plenário da Câmara, as entrevistas sisudas dos corredores, os depoimentos nas CPIs. As hostilidades transmitidas pelas câmeras de TV não encontram vez em determinados espaços do Congresso, onde cinegrafistas e fotógrafos são mantidos à distância. Naqueles em que os parlamentares fazem suas refeições, por exemplo, a maioria mantém um relacionamento amigável. Até mesmo representantes das ideologias que dominam o Fla-Flu da política brasileira trocam gentilezas quando se cruzam. Há os deputados que vão além e comportam-se como se estivessem em um churrasco de domingo na casa de um amigo ou em um botequim. Um desses lugares fica do lado oposto à Mesa Diretora do plenário da Câmara. Com acesso restrito a parlamentares e convidados dos mesmos, a alguns servidores e a jornalistas credenciados, o “Cafezinho” é dividido em dois ambientes. Na entrada há um espaço menor, com 25 metros quadrados, com um balcão que está sempre tomado por dezenas de xícaras prontas para serem servidas. O pessoal autorizado pode beber quanto quiser de café coado, de graça, seja em pé ou sentado ao redor de uma das quatro pequenas mesas em frente. A cozinha e o atendimento são de responsabilidade do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), que, por meio de um acordo, usa as dependências da Câmara para treinar alunos de cursos como os de cozinheiro, garçom e copeiro. Em troca, oferece bebida e comida a preços módicos, sob supervisão de chefs e nutricionistas. O cardápio tem opções para lanche, almoço e jantar. Um pão de queijo de tamanho médio é servido quentinho a 65 centavos. Uma lata de refrigerante custa 3,34 reais. Uma taça de sorvete sai a 6,92 reais. Entre os pratos quentes, o preferido é o picadinho de filé mignon, vendido a 25 reais.

No espaço pluripartidário, os parlamentares assistem até a jogo da “série B”
Quem deseja descansar, conversar e comer com mais tempo recorre ao outro ambiente, contíguo e um pouco maior, com 84 metros quadrados, mais iluminado e com vista para o gramado, o espelho d’água do Congresso e a Esplanada dos Ministérios. Esse outro espaço, uma extensão do “Cafezinho”, dispõe de 15 mesas redondas de mármore com quatro assentos cada, além de seis cadeiras de madeira com revestimento em couro que ficam viradas para um telão. É um espaço muito disputado durante transmissões de jogos de futebol e no horário dos telejornais. Na noite de 5 de novembro, dez deputados da bancada baiana se amontoavam em frente à tela para acompanhar a partida entre o Vitória da Bahia e o Brasil de Pelotas, pela Série B do Brasileirão. A troca de provocações lembrava uma arquibancada. “Este mulambo do Vitória não ganha de ninguém, nem em Salvador”, bradava uma das excelências. “Quero ver a excelência falar isso pros seus eleitores do Vitória”, dizia outra.

Há um elevador privativo que dá acesso direto ao “Cafezinho”, que também oferece às excelências dois caixas eletrônicos exclusivos, dois microcomputadores e uma impressora. Existem outros agrados. A despeito do aviso na porta sobre a proibição da entrada de comida de fora, o deputado Fábio Ramalho, famoso por seu estilo bonachão, promove banquetes nas noites de quarta-feira, dia mais movimentado na semana do Congresso, em que só há três dias úteis, terça, quarta e quinta, quando há sessões no plenário. Na noite do dia 6, o mineiro Ramalho, do MDB, deixou o elevador carregando seis caixas térmicas. Dentro delas havia 300 pães com linguiça e maionese, e unidades de marmitex com farofa. Logo os parlamentares foram se amontoando em torno do farnel do colega. No plenário era discutida a reforma da Previdência dos militares. Excelências de diferentes partidos se acotovelavam por um pão ou um pouco de farofa. Em meio ao empurra-empurra, o anfitrião pegou duas embalagens que havia separado para o senador Esperidião Amin e a deputada Ângela Amin, mulher dele. “Para a dona Ângela eu trouxe um feijão tropeiro, que ela adora”, disse Ramalho.

Esperidião Amin come pão, mas leva feijão tropeiro para a mulher: “Ela adora”
Os quitutes tornaram o deputado do MDB de Minas querido pelos pares, que o chamam de Fabinho Liderança, mesmo ele se autodeclarando um político do “baixíssimo clero”. Apoiado pelos colegas das duas casas legislativas, Fabinho já avisou que vai continuar ignorando pedidos da Mesa Diretora para não trazer mais comida, devido às preocupações com as questões sanitárias e a bagunça onde deveria funcionar apenas um restaurante-escola, com supervisão rigorosa de profissionais experientes. Promete repetir em breve o leitão assado que ofereceu durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff. “O que faço serve para forrar os estômagos e divulgar a culinária de Minas”, explicou o deputado, que cresceu em Brasília mas fez carreira política no interior de Minas Gerais, onde foi prefeito da pequena Malacacheta.

O mineiro Fabio Ramalho fica encarregado dos quitutes de sua terra natal
Nem todos são fãs das iguarias de Fabinho. Seguidora de uma dieta rigorosa, a paulista Bruna Furlan, do PSDB, também burla a proibição e traz comida de fora. De terça a quinta-feira, dias de sessão, ela aparece no “Cafezinho” carregando uma bolsa térmica com quatro pequenos recipientes. Divide as porções de comida fitness com um assessor, um ascensorista e com quem mais estiver disposto a sentar-se à mesa. A vice-presidente nacional do PSDB diz preferir trabalhar no “Cafezinho” e no plenário, abrindo mão do expediente no gabinete, por “transparência”. “Num ambiente desse, a pessoa fica constrangida de pedir algo estranho, errado”, explica. Pulando de mesa em mesa, a tucana conversa com colegas dos mais diversos partidos. Vive fazendo dobradinhas com Orlando Silva, do PC do B, em comissões. Quem acompanha a política pelo noticiário convencional não imagina que ali também são frequentes as reuniões de Marcelo Freixo, do PSOL, com deputados do Novo e do PSL. “Aqui tratamos apenas de política. Sempre estou aberto a falar com todos. Isso é política”, diz Freixo.

Os rumorosos escândalos de corrupção que espantaram os eleitores não afastaram os políticos de Aécio Neves. Isso também é política. A mesa que o deputado federal mineiro ocupa no “Cafezinho” sempre está cheia. A pauta é variada. Vai desde debates sobre os melhores uísques às discussões mais sérias do Congresso. Distante do público, o ex-governador de Minas, adversário de Dilma na corrida ao Planalto, também troca impressões, e até elogios, com os petistas. “Esse aqui é do PT racional. É uma pessoa sensata, um grande parlamentar!”, dizia aos demais colegas sentados à mesa um Aécio de gravata frouxa, terno e pernas abertas, enquanto segurava um dos braços de um sorridente Henrique Fontana, deputado do PT do Rio Grande do Sul.

Enquanto isso, em uma mesa próxima, Tiririca ensinava a um assessor: “Se a vida me der um limão, eu jogo o limão na cara dela. Nem de limão eu gosto!”. Já a novata Flávia Arruda, do PL, listava a um assessor as virtudes do marido. “Ele me ensina muito, é meu mestre.” Ela falava sobre José Roberto Arruda, que renunciou ao mandato de senador após violar o painel do Senado e se tornou o primeiro governador preso no exercício do mandato por oferecer suborno a uma testemunha para mentir em favor dele na investigação em que foi filmado recebendo propina. Flávia costuma circular pelo “Cafezinho” com a colega Celina Leão, do PP, também eleita por Brasília.

O “Cafezinho” não é Paris, mas também é uma festa. Ali, por detrás do pano, como de resto na política em geral, o jogo é outro. Da porta para fora, tudo volta ao script conhecido. As excelências sabem o que as câmeras querem no teatro da política brasileira.

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