São Gilmar, o milagreiro

22.11.19

O Brasil está definitivamente mudando. Há pouco tempo víamos pessoas tomando as ruas do país apenas para defender ou criticar políticos. No dia 26 de maio deste ano, milhares de pessoas foram às ruas para apoiar o ministro da Economia, Paulo Guedes, e mostrar ao Congresso que o Brasil apoiava a urgente aprovação da reforma da Previdência. No último dia 17, milhares de pessoas voltaram às ruas em várias cidades do Brasil para colocar em foco o nome de outro ministro, agora do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e pedir o seu impeachment.

O ministro que, em 2016, bradou em plenário que a regra para prisão vigente nos países mais civilizados do mundo era a prisão em segunda instância — e que isso nortearia seu voto a favor da prisão em segunda instância no Brasil — resolveu fazer uma releitura do que proferiu há três anos e mudou completamente seu discurso. Além de contradizer-se, Gilmar Mendes não apenas alinhou sua manifestação para a soltura do corrupto mais honesto do país, como também atacou a Lava Jato e Sergio Moro, com sua ladainha contorcionista e narcisista. Parece que Gilmar Mendes não gosta da Lava Jato. Hum.

Engana-se, no entanto, quem acha que o descontentamento dos brasileiros com esse ministro seja algo novo. Para aqueles com os pés na bandidagem e as duas mãos algemadas pela Lava Jato, “São Gilmar” é a luz dos Habeas Corpus no altar do Supremo. Para os milhões de brasileiros com os olhos grudados na TV que acompanham atônitos as manobras toscas de quem deveria zelar pela ordem jurídica, Gilmar Mendes é hoje, juntamente com Dias Toffoli, a fonte primária de insegurança jurídica para um país que tenta achar o caminho da recuperação econômica e mostrar aos seus cidadãos e ao mundo que é capaz de combater a corrupção, origem de tantos problemas sérios no Brasil.

Já é fato que não queremos mais aquela parte do país de antes da Lava Jato que era praticamente imune ao império da lei. É nosso direito e dever cobrar de governantes respostas. Portanto, desconfie de quem prega que essa cobrança é antidemocrática ou autoritária. Aos juízes arautos do monopólio da virtude, que, do alto dos seus pedestais desconectados da realidade, opinam sobre o que é democrático ou não, plantando crises inexistentes e minando o real crescimento do país, que tal relembramos juntos uma pequena amostra do festival de verdadeiros golpes contra nosso progresso e por que milhares foram às ruas pedir o impedimento de um ministro supremo? Vamos lá?

Gilmar Mendes mandou soltar Marcos Valério, nome chave do mensalão, acusado de facilitar a fabricação de inquérito falso na operação Avalanche e preso por suspeita de ter intermediado uma negociação para corromper policiais federais e favorecer uma cervejaria.

Gilmar Mendes mandou soltar o médico estuprador Roger Abdelmassih.

Gilmar Mendes mandou soltar Sérgio Côrtes, ex-secretário de Saúde do Rio de Janeiro na gestão de Sérgio Cabral, acusado de fraudes milionárias em licitações para fornecimento de próteses para o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) e para a Secretaria de Saúde do estado.

Gilmar Mendes mandou soltar Eike Batista, ignorando o fato de que sua mulher trabalhava no escritório que defendia os interesses do empresário. Eike foi preso na Operação Eficiência, desdobramento da Lava Jato no Rio, acusado de repassar 16,5 milhões de dólares em propina ao ex-governador Sérgio Cabral por meio de contratos fraudulentos com o escritório de advocacia da mulher de Cabral, Adriana Ancelmo.

Gilmar Mendes mandou soltar Adriana Ancelmo, condenada a 18 anos de prisão por associação criminosa e lavagem de dinheiro.

Gilmar Mendes mandou soltar — três vezes — o empresário Jacob Barata Filho. O “Rei do Ônibus”, como é conhecido, foi preso da Operação Cadeia Velha que expôs um esquema de pagamento e recebimento de propina entre empresas de ônibus e políticos do Rio de Janeiro, numa teia que envolvia também o ex-governador Sérgio Cabral.

Gilmar Mendes mandou soltar Hudson Braga, ex-secretário de Obras do Rio, preso na Operação Calicute, braço da Lava Jato, que investigou o desvio de recursos públicos federais em obras realizadas pelo governo de Cabral.

Gilmar Mendes mandou soltar José Riva, conhecido como o “maior ficha suja do país”, que responde a mais de cem ações na Justiça por corrupção e improbidade. Acusado de participar de um esquema de licitações fraudulentas que desviou mais 60 milhões de reais, Riva, também preso na operação Ararath, que apurou crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, tinha como advogado Rodrigo Mudrovitsch, que por uma incrível coincidência divina foi advogado do ministro em alguns processos e é professor no Instituto Brasiliense de Direito Público.

Gilmar Mendes mandou soltar o ex-governador do Rio, Anthony Garotinho, preso na Operação Chequinho, que apurou crimes de corrupção, organização criminosa e fraude na prestação de contas eleitorais.

Respira, só mais um pouco.

Uma simples pesquisa no Google e você encontra uma vasta lista com os nomes dos fiéis agraciados com a caneta célere e libertadora de Gilmar Mendes e as confusões e crimes em que estavam metidos. Em 2008, por exemplo, com dois habeas corpus em 48 horas, ele libertou da cadeia o banqueiro Daniel Dantas, principal alvo e acusado de envolvimento nos crimes investigados pela Operação Satiagraha (anulada pelo STJ em 2011 e que já mostrava alguns caminhos que a Lava Jato vem desvendando). Para os muitos seguidores da Igreja dos Habeas Corpus dos Últimos Dias, aquilo foi um milagre digno de canonização! Naquela mesma semana em 2008, o santo das libertações impossíveis concedeu habeas corpus em favor do ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, do investidor Naji Nahas e de outras oito pessoas também presas durante a finada operação que poderia ter sido o início da força-tarefa que mudou o Brasil. Além de gestão fraudulenta e uso de informações privilegiadas, o grupo solto por Gilmar respondia por formação de quadrilha, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.

Até meados de 2018, Gilmar Mendes já havia libertado quase 40 presos da operação Lava Jato, muitas vezes argumentando que os acusados, mesmo tendo cometido crimes graves e envolvendo grandes quantidades de dinheiro, não apresentavam ameaça à sociedade e, que, assim, prisões poderiam ser substituídas por “medidas restritivas menos gravosas”. Excelentíssimo ministro Gilmar Mendes, “medidas restritivas menos gravosas” é o que mães falam para os filhos quando eles fazem malcriação, com a aplicação da pena de uma semana de castigo e sem celular.

O ministro da suprema cruzada contra Sergio Moro e a Lava Jato, que enaltece mensagens roubadas de agentes da lei por criminosos, conta hoje com outro cavaleiro da insegurança e do caos jurídico, o ex-advogado do PT que nunca passou em nenhuma prova de magistratura, Dias Toffoli. Atuando de forma efetiva para ferver mais ainda o caldeirão que já vivemos, Dias Toffoli tem se esforçado para ser mais prejudicial ao país que o próprio Gilmar. Entidades como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) já expressam preocupação com algumas ações da parte do Legislativo e do Judiciário, como a decisão de Toffoli de suspender o uso de dados de órgãos de inteligência e investigação sem autorização judicial (shhh…fala baixo, ainda não sabem da tentativa de acesso a 600 mil dados bancários e fiscais sigilosos), a recente lei de abuso de autoridade aprovada pelo Congresso e a proibição da prisão em segunda instância. A OCDE declarou recentemente que essas medidas podem atrapalhar os esforços no combate à corrupção e lavagem de dinheiro e ao terrorismo.

Graças à providência vinda de Brasília, e que concedeu liberdade ao bandido ilibado de estimação, o paraíso da impunidade continuará a existir. Talvez Gilmar Mendes tenha votado contra a prisão em segunda instância para ajudar São Gilmar, pobre coitado sobrecarregado com tanta vela acesa para o milagre multiplicativo de Habeas Corpus. E como é época de decisão no futebol e tempo de fazer promessa, sinto informar aos fiéis torcedores de Flamengo e River Plate que não adianta acender vela para São Gilmar, o milagreiro, porque o grande campeão libertador da América ainda é Gilmar Mendes.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

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