Reprodução/redes sociais"Que não entre comida nas cidades. Vamos bloquear, fazer um cerco de verdade", diz Evo Morales em gravação

A mão invisível de Evo Morales

De seu asilo no México, o ex-presidente ordena que sindicalistas e narcotraficantes promovam o caos na Bolívia
22.11.19

Com o celular colado à orelha, o sindicalista boliviano Faustino Yucra escuta atentamente as ordens do ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, do outro lado da linha. “Dividam o sindicato em quatro ou cinco grupos. Assim dá para ficar mais tempo. Se as pessoas não se juntam, ficam cansadas e vão embora. Se estão em grupos, elas se revezam em turnos. Vamos manter o bloqueio”, diz Morales, que obteve asilo político no México. “Que não entre comida nas cidades. Vamos bloquear, fazer um cerco de verdade.”

Divulgado pelo governo transitório da Bolívia na quarta-feira, 20, o vídeo da conversa entre Faustino Yucra e Morales é a evidência mais cristalina de como o ex-presidente, que renunciou ao poder no início do mês, está orientando sindicalistas e narcotraficantes a instalar o caos na Bolívia. Estradas foram bloqueadas e as maiores cidades do país estão sitiadas pelas tropas de choque de Morales. Moradores estão sem gás, gasolina e comida. Desde o primeiro turno das eleições, no dia 20 de outubro, 32 pessoas já morreram. O objetivo é enfraquecer a presidente interina, Jeanine Añez, e abrir caminho para um retorno triunfal. “Se a Assembleia recusar minha renúncia, vou tentar voltar de qualquer jeito, mesmo que me prendam. Vamos batalhar firmemente contra a ditadura fascista, racista, irmão”, disse Morales a Yucra.

Após a polêmica desatada pelo vídeo (assista abaixo), Morales disse que se trata de uma montagem. Mas as circunstâncias indicam que a conversa é muito real. Faustino Yucra já foi condenado por narcotráfico e está foragido desde 2016. Ao final da gravação, ele admite ter falado com “o presidente” — cuja voz na Bolívia todos conhecem. O vídeo estava no celular de seu filho. O aparelho foi confiscado pela polícia boliviana na terça-feira, 19, após uma operação para desbloquear uma estrada em Cochabamba, a dezenas de quilômetros do Chapare, a região que exporta cocaína e a pasta-base do crack para o Brasil e onde Morales segue como presidente de seis federações de cocaleiros.

As primeiras vítimas fatais ocorreram quando a população ainda protestava contra a fraude nas eleições. Contudo, assim que Jeanine Añez foi proclamada presidente na terça-feira, 12, a oposição a Evo Morales retirou-se das ruas. A partir desse momento, foram as turbas do ex-presidente que passaram a  promover distúrbios.

 

Uma das estratégias já conhecidas para estrangular La Paz, com seus 2 milhões de habitantes, é impedir que caminhões-tanque deixem o depósito da estatal petrolífera, YPFB, na cidade vizinha de El Alto. Foi o que ocorreu em outubro de 2003, quando o local foi cercado pelo bando de Morales, que ainda não tinha sido eleito presidente. Na ocasião, um comboio conseguiu deixar a instalação escoltado por militares. Os manifestantes atiraram contra os soldados, que reagiram. Em um único dia, 27 pessoas morreram.

Desta vez, os manifestantes cercaram a unidade da YPFB, cavaram trincheiras e ergueram barreiras com pneus para impedir a saída dos caminhões-tanque. Durante a madrugada, os militares tiraram as barreiras e taparam as trincheiras. Com o caminho livre, trinta caminhões deixaram o depósito em direção a La Paz. Enfurecidos, os apoiadores de Morales tentaram ocupar e destruir a unidade. Com dinamites, derrubaram uma passarela de pedestres e abriram dois buracos no muro. O sistema contra incêndios foi acionado. “Uma explosão neste depósito poderia destruir todos os prédios em um raio de 5 quilômetros. É como se fosse uma Usina de Chernobyl esperando pela catástrofe”, diz o jornalista boliviano Humberto Vacaflor. Os militares que estavam presentes agiram para impedir a entrada dos vândalos. Oito pessoas morreram na confusão.

Os partidários de Morales rapidamente culparam os militares pelas mortes. Na terça-feira, 19, o ministro da Defesa, Fernando López, negou as acusações e disse que as forças de segurança não dispararam um único tiro no local. Dos oito corpos, seis tiveram as autópsias concluídas. As análises revelaram que eles foram feridos por balas de baixo calibre, disparadas por armas pequenas, que não são empregadas por policiais e militares. “É bem possível que o ministro esteja falando a verdade. Nos confrontos, os partidários de Morales costumam atirar, para depois usar politicamente as mortes e influenciar a opinião pública”, diz o advogado boliviano Carlos Sánchez Berzaín, que era o ministro da Defesa em 2003, ano em que ocorreu o conflito anterior no depósito de El Alto.

Para cada dia de protesto contra Jeanine Añez, os manifestantes cobram 50 bolivianos (a moeda local). É o equivalente a 30 reais. Com a mudança de governo após a renúncia de Morales, a torneira oficial de recursos fechou. A principal fonte para os protestos agora é o narcotráfico. Os bloqueios nas estradas afetam o escoamento da produção de abacaxi e de banana de Chapare, mas não atrapalham os voos que saem com drogas das dezenas de pistas clandestinas. O negócio do narcotráfico não foi afetado.

Comboio de caminhões-tanque deixa El Alto escoltado por militares e policiais
Além do narcotráfico, as hostes de Morales são financiadas com recursos do exterior. Na segunda,18, quatro cubanos que tinham sido presos em La Paz foram enviados para Havana em um avião com outros 207 integrantes de uma espécie de programa Mais Médicos. Os quatro eram funcionários da Embaixada de Cuba na Bolívia e faziam parte também da tal “brigada médica”, apesar de apenas um deles ter diploma de doutor. Eles foram detidos na Praça Murilo, onde ficam a sede do Executivo e do Legislativo. Com uma mochila cheia de dinheiro, eles distribuíam notas para os manifestantes.

Nos protestos em Santa Cruz de la Sierra, a polícia feriu a bala um argentino, Facundo Moreno Schonfeld, que entrou em estado de coma. Moreno tornou-se membro do grupo terrorista Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em 2002. Foi um dos que se recusaram a aderir ao processo de paz por causa da sua proximidade com o narcotráfico. Conhecido pelo apelido de Camilo, ele vivia na Colômbia. Em mensagens que mandou pelo celular, Moreno ia atualizando seu pai sobre suas conquistas. “Já tomamos a ponte”, escreveu ele, referindo-se à Ponte da Amizade de Yapacaní, onde ocorreram confrontos com as forças de segurança.

Apesar da ação das tropas de choque de Morales, a presidente interina, Jeanine Añez, tenta seguir adiante. Na quarta-feira, 20, ela apresentou um projeto de lei no Congresso para convocar eleições. Cidades como La Paz, Cochabamba e Sucre seguem sitiadas por ordem do ex-presidente. Uma ponte aérea foi criada para levar carne, leites e ovos em cargueiros das Forças Armadas. Policiais e militares protegem as instalações do depósito de gasolina em El Alto, para impedir que uma explosão coloque em risco a vida de 200 mil pessoas. “Há quase trinta anos, Morales tem ensanguentado nosso país. Este é o momento de a Bolívia dar um passo adiante”, diz o ex-ministro da Defesa Carlos Sánchez Berzain, ainda exilado nos Estados Unidos.

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