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Os caminhos levam aos tribunais

Crusoé teve acesso aos capítulos de uma delação premiada fechada pela Lava Jato do Rio que revela como empresários faziam para obter decisões favoráveis no Judiciário
08.11.19

Na manhã desta quinta-feira, 7, policiais federais cumpriram um mandado de busca e apreensão na residência de Cesar Asfor Rocha, ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, o STJ. A ação foi deflagrada como parte da investigação aberta a partir da acusação do petista Antonio Palocci — a de que, em 2010, o então ministro vendeu por 5 milhões de reais a liminar que paralisou a Castelo de Areia, rumorosa operação cujo principal alvo era a empreiteira Camargo Corrêa, com seus repasses de propina para agentes públicos de todas as cores partidárias. O caso indica, mais uma vez, que os tentáculos dos grandes esquemas de corrupção envolvendo empresas e políticos brasileiros alcançam também os tribunais. Dona da tarefa de revisitar os crimes descobertos pela Castelo de Areia, a Lava Jato, por meio de sua filial paulista, foi responsável pela investida contra Asfor Rocha, e começa a dar passos importantes na direção de esquemas envolvendo pagamentos de propina a integrantes do Judiciário.

No Rio de Janeiro, outros aspirantes a delatores já haviam sinalizado a intenção de revelar segredos que ministros de cortes superiores, desembargadores e caríssimas bancas de advogados tentam, desde sempre, esconder. Orlando Diniz, ex-todo poderoso da Fecomércio fluminense, chegou a tentar uma delação para contar por que gastou mais de 150 milhões de reais com escritórios de advocacia, alguns deles ligados a parentes de magistrados. Até o momento, o acordo não prosperou. O ex-governador Sérgio Cabral, da mesma forma, busca negociar uma confissão em que deve abordar casos envolvendo ministros de cortes superiores — ele ainda não conseguiu ser ouvido pelas autoridades. Mas uma delação assinada com a Procuradoria-Geral da República e recém-homologada pelo STJ, o mesmo que foi presidido Asfor Rocha, pode dar início à chamada Lava Toga e jogar luz pela primeira vez sobre os mecanismos pelos quais empresários corruptos se valiam de advogados para fazer lobby e comprar decisões judiciais.

O signatário do acordo de delação é Lélis Teixeira, ex-presidente da Fetranspor e do Rio Ônibus, agremiações que representam mais de 240 empresas com atuação no estado do Rio. Teixeira buscou a delação após ser alvo de uma ordem de prisão, juntamente com os empresários Jacob Barata Filho e José Carlos Lavouras, dois dos proprietários das maiores frotas de ônibus do país, em julho de 2017, na Operação Ponto Final. Crusoé teve acesso aos anexos entregues por Teixeira ao MPF que mostram como Barata, Lavouras e outros magnatas do setor de transporte corromperam integrantes de todos os poderes.

Embora Lavouras e Barata, o “Rei do Ônibus”, estejam em busca de um acordo, Teixeira é, até o momento, o único que conseguiu delatar os crimes de que tem conhecimento. As informações sobre o Judiciário estão em dois capítulos da delação que permaneceram no Superior Tribunal de Justiça, onde a delação foi homologada, por causa do foro privilegiado dos personagens citados, entre eles um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio. O delator relaciona advogados que seriam a ponte entre as entidades e magistrados responsáveis por processos envolvendo empresas de transporte. Há detalhes de como ricos empresários se valem de escritórios de advocacia, patrocínios a eventos, e até do pagamento direto de propina, para verem seus interesses atendidos nas cortes.

No anexo de número 23, Teixeira explica como se dava a relação entre os escritórios contratados pelas entidades dos ônibus com magistrados. Sob o título “Contratação de escritórios de advocacia e pagamento de valores em espécie para representarem interesses das empresas de ônibus perante o Poder Judiciário”, ele explica como cada uma das entidades atuava. No Rio Ônibus, diz ele, um advogado interno, identificado como Enéas Bueno, atuava no “trabalho de relacionamento institucional”, que se dava, entre outras formas, por meio da realização de palestras e da concessão de patrocínios a eventos com a participação de integrantes do Judiciário. Segundo Teixeira, além do advogado da própria entidade, eram contratados escritórios de advocacia externos para intermediar os interesses do setor junto a integrantes do Judiciário. “Eventualmente Enéas Bueno, pessoalmente, ou em conjunto com os escritórios Oliveira Gonçalves e Navega Advogados, usavam relações pessoais com membros do Judiciário para ajudar na obtenção de decisões favoráveis”, diz um trecho do anexo.

Octacílio Barbosa/AlerjOctacílio Barbosa/AlerjLélis Teixeira falou sobre os mecanismos para obter facilidades no Judiciário
O ex-presidente da entidade explica que tanto Bueno quanto os titulares dos escritórios “solicitavam valores em espécie a pretexto de obter as decisões”, mas que ele não saberia dizer em que casos o dinheiro foi repassado a terceiros. “Éneas era muito reservado a respeito de como ele resolvia, e para o setor não interessava como senão que fosse resolvido”, explicou. Na Fetranspor, por sua vez, disse Teixeira, três escritórios contratados trabalhavam nos “assuntos jurídicos”. São eles: Oliveira e Gonçalves Advogados, Fontes Advogados Associados e Spencer Advogados. Na entidade, afirmou, o empresário José Carlos Lavouras, hoje foragido em Portugal, centralizava todas as decisões sobre as ações jurídicas “tanto as estaduais quanto as que tramitavam em tribunais superiores em Brasília”.

Ainda no anexo 23, Teixeira diz desconhecer se algum magistrado recebeu valores, exceto em um caso envolvendo um desembargador do TJ do Rio. O capítulo trata da “solicitação e pagamento de vantagem indevida de 6 milhões de reais”, entre 2008 e 2009, para o desembargador Mário Guimarães Neto. O objetivo do pagamento era “obter decisão judicial favorável nos autos de processo judicial”. O magistrado é um dos mais antigos da corte estadual e foi nomeado em 2002, na gestão da então governadora Benedita da Silva, do PT, que assumiu o cargo após Anthony Garotinho – outro político citado na delação de Teixeira – deixar o cargo para disputar as eleições presidenciais daquele ano.

O suposto pagamento, segundo ele, tem relação com uma apelação apresentada por uma empresa de ônibus à 12ª Câmara Civil do TJ fluminense, da qual Guimarães Neto faz parte. O recurso tinha por objetivo derrubar uma decisão da Justiça que acolhera um pedido do Ministério Público e ordenara que a prefeitura da capital realizasse novas licitações de ônibus. Segundo Teixeira, a “situação era preocupante” e, se a decisão fosse desfavorável, as empresas do setor poderiam perder o direito de continuar a operar as linhas. A solução, narra o delator, foi trazida pelo empresário João Augusto Monteiro, então presidente do Conselho Superior do Rio ônibus. Monteiro, segundo ele, disse ser próximo da família do desembargador, em especial da mulher dele, a advogada Gláucia Iório Araújo Guimarães.

Plano traçado, foi marcada uma primeira reunião com a advogada, em que ela “se comprometeu a falar com o marido e dar um retorno a respeito da viabilidade de se obter uma decisão suspendendo o processo licitatório”. Depois disso, outra reunião foi feita. Mas como o valor solicitado teria sido muito alto, não foi possível fechar o acordo. Foi agendado, então, um novo encontro. Dessa vez, além de Monteiro e da advogada, participaram Jacob Barata Filho e o próprio Lélis Teixeira. Nada feito, mais uma vez. Só na reunião seguinte, afirma, foi “ajustado o valor de 5 a 6 milhões de reais” de pagamento em caso de êxito, o que compreendia, além do voto do marido da advogada, o “convencimento de pelo menos mais um integrante do quórum de julgamento”.

Teixeira pondera que a advogada, durante os encontros de que participou, nunca disse que repassaria valores ao desembargador ou a outros magistrados, mas, diz ele, “a resposta positiva relativamente ao caso apenas foi dada após a advogada ter conversado com seu marido”. Após a tal conversa entre ela e o desembargador, a decisão foi proferida de acordo com os interesses das empresas de ônibus. “A decisão em questão era extremamente favorável ao setor, na medida em que o município não teria condições de indenizar as empresas de ônibus, o que, na prática, acabava por impedir a realização da licitação”, afirma o delator, ao dizer que os valores combinados teriam sido pagos em espécie diretamente à mulher de Guimarães Neto.

Agência BrasilAgência BrasilCésar Asfor Rocha, alvo da PF nesta quinta-feira: suspeitas nas diferentes instâncias
A delação do ex-presidente das duas maiores entidades de empresas de ônibus do Rio não é só sobre o Judiciário. No acordo, ele ainda cita repasses de propina aos ex-governadores Anthony Garotinho, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, ao atual prefeito Marcelo Crivella e seu antecessor Eduardo Paes. Além dos políticos, são mencionados pagamentos mensais a um promotor do Ministério Público estadual e a um delegado federal que conduzia um inquérito contra empresas do setor. O leque de autoridades mostra como os empresários de ônibus conseguiram manter seus contratos com tarifas estipuladas de acordo com seus interesses e sem fazer os investimentos necessários em melhorias nos ônibus.

No caso em que menciona um integrante da Polícia Federal, Teixeira detalha como o caixa 2 do Rio ônibus teria sido utilizado para pagar cerca de 3 milhões de reais ao delegado federal Helio Khristian, para que ele ajudasse empresas encrencadas em um inquérito conduzido por ele. O delator não soube dizer em quantas parcelas o valor total foi pago. Mas, segundo ele, o dinheiro em espécie utilizado nos repasses saíram da Guanabara Diesel, uma das empresas da família Barata. Conhecido como HK, o delegado que teria recebido a propina é um antigo frequentador das páginas policiais, e pelo pior lado possível. Em 2014, ele chegou a ser condenado justamente por cobrar propina de empresários. Mais recentemente, foi acusado pela própria PF de tentar obstruir as investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista dela, Anderson Gomes. Segundo a investigação, HK teria participado de uma trama para apontar o vereador carioca Marcelo Siciliano como mandante do assassinato e, assim, despistar a polícia.

Responsável, em tese, por fiscalizar a relação das empresas de ônibus com o governo do estado e da cidade do Rio, o Ministério Público estadual também aparece representado de forma nada honrosa no acordo de Teixeira. Segundo Teixeira, entre 2014 e 2016, o promotor Flávio Bonazza de Assis recebeu uma propina mensal de 60 mil reais para dispensar um “tratamento especial” às empresas de ônibus em processos da 3ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Cidadania da capital. O promotor, afirma o delator, prometeu tratar os empresários investigados de “forma benevolente, tendo ainda deixado claro que faria o mesmo quando atuasse em futuras investigações que envolvessem interesses do setor”.

Por meio de nota, o desembargador Mário Guimarães Neto  classificou a acusação de Teixeira de “escandalosamente mentirosa” e disse que irá adotar as medidas judiciais “para responsabilizar o delator pelo crime propalado”. O advogado Spencer Daltro de Miranda Filho, do Spencer Advogados, disse que todas as atuações são lastreadas em contrato formal, com pagamento efetuados por via bancária e nunca em espécie. Já o advogado Bruno Navega, do Navega Advogados, disse não ter como “tecer maiores comentários” porque não teve acesso aos anexos. O advogado Maximino Fontes Gonçalves, do Fontes Advogados, por sua vez, afirmou que atuou em vários casos para empresas de ônibus, mas que esse trabalho se deu no plano técnico.

A Fetranspor, por meio de nota, afirmou que é de conhecimento público que Lélis Teixeira assinou um acordo de delação, mas que a atual administração da entidade desconhece a ocorrência dos fatos narrados por ele. A defesa de Jacob Barata Filho disse que não se manifestaria sobre  “vazamentos seletivos” e negou as imputações citadas na reportagem. A defesa de Lavouras não foi encontrada.

O escritório Oliveira e Gonçalves se limitou reclamar de notícias que poderiam atingir sua honorabilidade e que só poderia exercer o direito de resposta se conhecessem “os termos da colaboração mencionada”.

Lélis Teixeira não tinha um ônibus sequer. Era um executivo contratado pelos donos das empresas de ônibus para administrar as entidades e conduzir as negociações com o poder público. Por esse motivo, ele sabia de muitos dos crimes praticados em nome de grandes empresas como as de Barata e Lavouras. Mas não sabia de tudo. Faltam, principalmente, os detalhes dos pagamentos para integrantes do Judiciário. Seu acordo, embora incompleto, é um primeiro passo para a Lava Jato transpor, enfim, a barreira dos tribunais. As revelações elevam ainda mais o preço das delações que Jacob Barata Filho e José Carlos Lavouras tentam negociar. Esses, se quiserem mesmo usufruir dos benefícios da colaboração premiada, terão que abrir ainda mais o jogo sobre como magistrados foram subornados.

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