Adriano Machado/Crusoé

O amigo da Justiça

Num dos julgamentos mais importantes da história recente do STF, José Antonio Dias Toffoli não escapou da sua essência: beneficiou Lula, os companheiros de sempre e deu um tiro certeiro na Lava Jato
08.11.19

Acomodado na principal cadeira do Supremo, Dias Toffoli até tentou posar de magistrado desapaixonado, aquele que segundo Sócrates deveria ouvir cortesmente, responder sabiamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente. Mas na quinta-feira, 7, ele agiu em consonância com a sua essência. No voto de minerva durante o julgamento da prisão em segunda instância do STF, momento crucial que separaria os que combatem a corrupção de quem é leniente com ela, o presidente do Supremo ficou do lado de Lula, o responsável por sua chegada à corte. Depois de usar termos como “lenda da impunidade” no país, concluiu: “(A prisão após o trânsito em julgado) não é o desejo de um juiz, não é o desejo de outrem que não dos representantes do povo brasileiro”. Seu argumento central tentava jogar para o outro lado da Praça dos Três Poderes a responsabilidade. Ele sustentava que foi o Congresso Nacional o responsável por aprovar uma lei alterando o artigo do Código do Processo Penal em favor da prisão após o chamado trânsito em julgado, quando acabam todas as etapas do processo, incluindo os infindáveis recursos. Assim, o ministro passou à história como aquele que desempatou o julgamento mais importante da vida recente nacional em favor de corruptos e corruptores. Ulysses Guimarães dizia que quem cuida de coisas pequenas acaba anão. Quem se deixa envolver por questões menores, em detrimento da grandiosidade das decisões, quem confunde grandeza de espírito com espírito de grandeza, também pode terminar anão. É sempre um risco.

O destino de Toffoli poderia ser outro, mas o ministro preferiu ensinar às pessoas como produzir uma catástrofe. Sim, o aniquilamento da Lava Jato é catastrófico. Afinal, delinquentes poderosos, donos de contas polpudas — em geral, políticos capazes de contratar bancas advocatícias a peso de ouro — receberam sinal verde para poder delinquir livremente, até o trânsito em julgado, que pode nunca chegar para eles. Na história do Brasil, foi o que ocorreu na maioria das vezes. Até o surgimento da Lava Jato. Agora, o jogo virou em favor dos que abusavam de chicanas jurídicas e de embargos auriculares para continuar agindo à margem da lei.

Graças o voto crucial de Dias Toffoli, o PT embala a festa. Embora o “Lula Livre” não seja automático, a soltura do ex-presidente nunca esteve tão próxima. Basta a defesa solicitá-la à juíza responsável pela execução penal, a quem caberá a decisão final, conforme os novos termos estabelecidos pelo STF. Na esteira do resultado no Supremo, os advogados do petista se assanharam: “Após conversa com Lula nesta sexta-feira levaremos ao juízo da execução um pedido para que haja sua imediata soltura com base no resultado desse julgamento do STF”, disse Cristiano Zanin. E parlamentares do partido soltaram fogos nas redes. “A decisão de prisão só após trânsito em julgado pelo STF resgata a justiça em nosso país. Precisamos da imediata libertação de Lula”, vibrou a deputada Maria do Rosário, do PT gaúcho.

As comemorações se estenderão por outras celas. É que a derrubada do entendimento da prisão após julgamento em colegiado de segundo grau, estabelecido pelo próprio STF em 2016, não beneficiou apenas Lula. O petista condenado a nove anos e seis meses de prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá e mais doze anos e onze meses no processo referente ao sítio Santa Bárbara, na também paulista Atibaia, é apenas o integrante mais famoso do bando. Poderão receber o beneplácito da Justiça pelo menos 4.895 encarcerados, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. Entre eles, petistas estrelados que também haviam sido apenados pela Lava Jato, como o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e seu irmão, Luiz Eduardo de Oliveira e Silva. Já os ex-comandantes da tesouraria petista João Vaccari Neto e Delúbio Soares, hoje em regime semiaberto, poderão abrir mão da tornozeleira eletrônica. Para piorar, e a julgar pela atmosfera permissiva reinante no tribunal, tudo leva a crer que a nova postura do STF abrirá caminho para suspeição do ex-juiz e atual ministro da Justiça Sergio Moro, e a consequente e fatídica anulação dos processos contra Lula e demais integrantes do que se convencionou chamar de organização criminosa. Será a pá de cal.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO plenário da corte: nos bastidores, advogados de réus da Lava Jato comemoraram a decisão
Para a sociedade e todos aqueles que acreditam ser a corrupção um fator de atraso social para qualquer país, trata-se de algo de extrema gravidade. Para Toffoli, isso nunca pareceu um problema. Embora acredite estar no caminho certo, o presidente do Supremo segue em desabalada carreira pela contramão da história. Em 2012, três anos depois de ser nomeado por Lula para a corte, Toffoli não se constrangeu em participar do julgamento do mensalão sob o argumento de que seus votos seriam eminentemente técnicos. Sim, uma tecnicidade que teimou quase sempre em pender para o mesmo lado. O ministro avaliou, por exemplo, não haver provas suficientes contra Dirceu, logo quem, embora tenha condenado José Genoino e Delúbio Soares. Ao fim, o ex-comissário petista, capitão do time de Lula até sua debacle pessoal, acabou condenado pela maioria do STF. Em junho de 2016, estava nas mãos de Toffoli mais um caso rumoroso envolvendo um petista de quatro costados: o ex-ministro Paulo Bernardo, marido de Gleisi Hoffmann. Não deu outra: Toffoli mandou soltá-lo. Bernardo estava preso preventivamente sob a acusação de desviar dinheiro de aposentados.

Em 2017, o STF encontrou mais uma vez o destino de Dirceu sob sua responsabilidade. O petista cumpria prisão preventiva desde agosto de 2015. Sem titubear, Toffoli foi de novo “pule de 10”. Ao lado de Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, o ex-advogado das campanhas presidenciais do PT assegurou ao ex-ministro um ano de liberdade a mais, antes da condenação em segunda instância. Em 2018, votou a favor de um habeas corpus a Lula para que o petista pudesse esperar decisão do Superior Tribunal de Justiça, o STJ, a fim de ter a prisão decretada. Como bem disse o ministro Luís Roberto Barroso durante sua sabatina em 2013, a Constituição comporta tudo, “só não traz a pessoa amada em três dias”. Dependendo da circunstância, das condições de temperatura e pressão e, claro, de quem é o freguês, traz sim.

Durante o julgamento na quinta-feira,7, Toffoli fez tabelinha por várias ocasiões com o ministro Gilmar Mendes, que se esmerava para explicar sua mudança de postura em relação ao julgamento de 2016. Em meio ao bate-bola — que se seguiu durante o próprio voto de Toffoli, numa espécie de Pelé e Coutinho às avessas –, o presidente do STF lançou mão de um sofisma, querendo dizer que procuradores da Lava Jato seriam favoráveis à liberdade a Lula. “É bom registrar que a própria força-tarefa da Lava Jato pediu a progressão da pena a Lula. Assim, ele já deveria estar fora do regime fechado”. Na sequência, Toffoli perguntou quanto de dinheiro do que chamou de “Fundação Dallagnol”, numa referência ao chefe da força tarefa da Lava Jato, seria destinado a um fundo de advogados. Ali, o ministro já indicava o caminho que seguiria mais adiante.

Gilmar, àquela altura, assinalava o quarto voto no placar em favor da condenação só após o trânsito em julgado. Mas quem empatou a peleja e deixou a bola para Toffoli liquidar a fatura foi o decano, ministro Celso de Mello, no mais longo voto do dia. “Nenhum juiz desse tribunal discorda ou é contrário à necessidade imperiosa de combater e reprimir com vigor, respeitada, no entanto, a garantia constitucional do devido processo legal”, defendeu-se. Além de Gilmar, Celso de Mello e Toffoli, votaram contra a prisão em segunda instância o relator Marco Aurélio Mello e os ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, em sessões ocorridas em outubro. Os demais — Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, além de Cármen Lúcia –, pelo cumprimento antecipado da pena. Foram vencidos.

Eduardo Anizelli/FolhapressEduardo Anizelli/FolhapressLula chega à PF: a soltura fica a cargo da juíza que executa a pena
Nos dias que antecederam à sessão de quinta-feira, 7, Toffoli já sinalizava a ajuda a Lula. Em conversa com senadores ao longo da semana, disse que a prisão em segunda instância não era uma cláusula pétrea da Constituição. Ou seja, que a regra poderia ser alterada pelo Congresso. Para o grupo de parlamentares que entregou ao ministro uma carta em favor da prisão depois da segunda instância, foi a senha da decisão final – como se precisassem saber o óbvio ululante. “Foi uma sinalização de que o Supremo pode derrubar. Ele deve dar o voto de minerva”, afirmou o senador Lasier Martins, do Podemos gaúcho. Os ministros da chamada ala “lavajatista” ainda tentaram pressionar por uma solução intermediária: a prisão após julgamento no STJ, a ser constituído como terceira instância. “A tese que, ao invés da segunda instância, transferiria para a terceira instância (a execução da pena) se aproxima da tese que tenho sustentado”, disse Fachin. “Ela admite que não é necessário o trânsito em julgado. Vejo com simpatia.”, dizia Edson Fachin. Em vão. A derrota da Lava Jato já estava sacramentada. Em meio às críticas de que sua postura favoreceria a impunidade e faria o Brasil regredir à era pré-Lava Jato, Toffoli ainda levou ao Congresso a ideia de alterar o Código Penal e suspender a prescrição até o julgamento de recursos em tribunais superiores. Um truque destinado a amortecer o peso de seu voto. Mas não há redução de danos possível quando o que está em jogo é o combate à corrupção.

Ayres Britto, ex-ministro do STF, afirmou recentemente que o tribunal não está a salvo de práticas reveladoras de uma certa pequenez de alma, como o vedetismo e o culto da personalidade. Nos últimos tempos, Toffoli avocou para si a tarefa capaz de massagear o ego de qualquer mortal: o de construir uma espécie de entendimento nacional. A costura de Toffoli previa, segundo sua ótica, a harmonização dos Três Poderes. Ele chegou a sugerir que sua atuação teria sido fundamental para evitar uma crise institucional entre os meses de abril e maio, que resultaria na deposição prematura de Jair Bolsonaro. Não colou. Sobretudo porque antes da eclosão da suposta insurgência contra o presidente, Toffoli havia atuado no sentido contrário. Não contra Bolsonaro, mas num inequívoco atentado às liberdades individuais e à livre expressão. Foi quando, em março, Toffoli estabeleceu um inquérito para investigar “notícias fraudulentas (fake news) e denunciações caluniosas”, a pretexto de defender o que chamou de “honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. O objetivo era outro: o de blindagem própria, propósito que ficou ainda mais claro no episódio da censura a Crusoé. A liberdade de expressão deveria ser um valor inegociável. Quem a ameaça jamais poderia arvorar-se de engenheiro da paz.

A única bandeira branca que Toffoli conseguiu desfraldar até agora teve como beneficiário direto o filho 01 do presidente da República, Flávio Bolsonaro – em 16 de julho, quando o presidente do STF paralisou a investigação capaz de constranger a família Bolsonaro. Atendendo a um pedido dos advogados de Flávio, Toffoli suspendeu o inquérito aberto com base no relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, que havia revelado transações financeiras suspeitas envolvendo o agora senador e servidores de seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio nos tempos em que ele era deputado estadual. O alcance da medida expôs a natureza da canetada: de uma só vez, Toffoli protegeu Flávio Bolsonaro, ele mesmo e colegas de toga, como Gilmar Mendes, furioso em razão das apurações internas na Receita Federal sobre movimentações financeiras dele e de seus familiares. Agora, quem Dias Toffoli ajuda a proteger são os apanhados pela Lava Jato. Lula já comemora.

Durante a festa de sua posse como presidente do STF, em setembro de 2018, Toffoli entoou a canção “Tempo Perdido”, eternizada por Renato Russo com sua Legião Urbana. Um dos trechos da música diz “Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas”. Se os corruptos triunfarem, só restarão o escuro e aquelas cinzas frias sobre as quais um dia versou Manuel Bandeira. As poucas cinzas frias. A Lava Jato sofreu uma das suas maiores derrotas. Mas sempre é tempo de reagir e acender novamente as luzes.

Com reportagem de Mateus Coutinho

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