ReproduçãoRafael Vela, de gravata púrpura, e Domingo Pérez, à esquerda: apoio popular e coragem para enfrentar o establishment

Lá lavaram a toga

Nascida a partir da investigação brasileira, a Lava Jato peruana avançou sobre a banda podre do Judiciário local. Apesar de, como cá, enfrentar resistências do establishment político, o apoio popular tem feito a diferença no esforço anticorrupção
01.11.19

Em nenhum outro vizinho da América Latina a Lava Jato teve um impacto tão avassalador quanto no Peru. Quatro ex-presidentes foram acusados de corrupção. Um deles, Alan García, cometeu suicídio em abril. Alejandro Toledo está detido nos Estados Unidos. Pedro Pablo Kuczynski, em prisão domiciliar. Ollanta Humala e sua mulher, Nadine Heredia, ficaram na cadeia por um ano e agora aguardam julgamento. A líder do maior partido da oposição, Keiko Fujimori, está em prisão preventiva. No final de setembro, em uma disputa com o Congresso sobre a nomeação de membros do Tribunal Constitucional — algo que poderia melar o andamento das investigações –. o presidente, Martín Vizcarra, dissolveu o Parlamento e convocou eleições.

Oito em cada dez peruanos apoiaram a medida anunciada pelo presidente, cuja popularidade imediatamente subiu trinta pontos percentuais. A dissolução chegou a ser festejada nas ruas. Em vez de manter os representantes que eles próprios elegeram, os peruanos preferiram apoiar a força-tarefa — ou “equipe especial” — da versão peruana da Lava Jato. A escolha era entre o Congresso ou o combate à corrupção. “O Congresso do Peru era uma intromissão permanente nos nossos trabalhos. Com a dissolução, eliminou-se um fator de desequilíbrio que estava permanentemente tentando solapar as bases das nossas investigações”, disse a Crusoé Rafael Vela, o procurador-chefe da Lava Jato no Peru.

Vela comanda a Lava Jato peruana em parceria com o promotor de lavagem de dinheiro José Domingo Pérez. Os dois foram recrutados em dezembro de 2016 para coordenar 34 investigações relacionadas a atos de corrupção da Odebrecht e de outras construtoras brasileiras. Por sua identificação com a luta contra a corrupção, Vela ganhou a alcunha de “Moro peruano”. Ele e Pérez interagem constantemente com a Justiça brasileira. Viajam com frequência para Curitiba e São Paulo, para realizar interrogatórios e colher provas. Dos doze países afetados pelas tramoias da Odebrecht, o Peru foi o que mais fez pedidos de colaboração judicial até agora: 122.

Toledo, García, Humala e Kuczynski: os ex-presidentes caíram na malha da Lava Jato peruana, que começou a partir das apurações brasileiras
Um dos trunfos da Lava Jato peruana é seu avanço sobre o Poder Judiciário. A crise que levou à dissolução do Congresso teve sua origem na nomeação dos magistrados do Tribunal Constitucional. Em princípio, a corte teria apenas a missão de julgar se decisões ou leis estão de acordo com a Constituição do país. Fugindo do manual, o TC peruano começou a se meter em casos de corrupção como se fosse um Judiciário paralelo. Enquanto no Brasil o STF está decidindo sobre a prisão após condenação em segunda instância, no Peru o TC ordenou a libertação do ex-presidente Ollanta Humala e de sua esposa Nadine Heredia, em abril do ano passado. O casal estava em prisão preventiva desde julho de 2017 por ter recebido dinheiro ilegal nas campanhas eleitorais de 2006 e 2011.

Como os integrantes do Tribunal Constitucional são escolhidos pelos deputados para um mandato de cinco anos, a corte tornou-se um mercado de troca de favores. Um olhar inédito sobre os malfeitos dos togados foi viabilizado com a divulgação de gravações de conversas no ano passado. Ao longo de uma investigação policial sobre a atuação de narcotraficantes no Porto de Callao, o maior do Peru, foram grampeadas diversas linhas telefônicas. Os áudios, que depois foram vazados e divulgados por uma ONG de jornalistas, a IDL-Reporteros, mostraram advogados e juízes negociando a redução de penas, pedindo promoções de funcionários e combinando sentenças. Era o início do caso que depois passou a se chamar de “Lava Juiz”, em referência à Lava Jato.

Entre os juízes gravados aparece César Hinostroza, que era o presidente da Segunda Sala Penal Transitória da Corte Suprema de Justiça. Em uma gravação, Hinostroza fala em suavizar a sentença para o estuprador de uma menina de dez anos. “O que eles querem? Que baixe a pena ou o declare inocente?”, pergunta. Outras conversas revelaram uma estreita relação entre Hinostroza e Keiko Fujimori, a filha do ditador Alberto Fujimori. Keiko manobrou para cancelar uma investigação da Lava Jato peruana sobre ela. O áudio foi usado pelos promotores da operação para fundamentar a manutenção da prisão preventiva da filha de Fujimori, em novembro de 2018. Hinostroza fugiu para a Espanha. Em setembro, a Justiça espanhola aceitou o pedido de extradição.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisKeiko Fujimori: prisão preventiva por tentar obstruir a Justiça
Outra vitória da Lava Jato do Peru se deu dentro do Ministério Público peruano. Às 8 da noite do dia 31 de dezembro, o procurador-geral, Pedro Chávarry, destituiu Vela e Pérez de seus cargos. A notícia motivou — de novo — mais manifestações populares e obrigou o presidente Martín Vizcarra, que estava em Brasília para a posse de Jair Bolsonaro, a retornar imediatamente para Lima. Houve uma reviravolta. Os dois promotores foram mantidos em seus cargos. Chávarry renunciou no dia 8 de janeiro ao posto de procurador-geral e uma investigação foi aberta sobre ele.

As chicanas dos magistrados das altas cortes peruanas, é importante ressaltar, têm pouca relação com as sentenças dos juízes de primeira e segunda instância do país. Esses últimos costumam ser muito mais rigorosos no cumprimento da lei. “Os juízes de primeira e segunda instância do Peru tendem a interpretar as leis de uma forma mais punitiva, para evitar a impunidade”, diz o advogado peruano Dino Carlos Caro Coria, especialista em direito penal. Apesar de o país ter uma lei de responsabilidade de juízes, algo parecido com a recém-criada lei de abuso de autoridade, o expediente nunca foi usado. Juízes trabalham com relativa liberdade. Há vários pedidos de prisão preventiva em primeira instância. A reclusão costuma ser de 18 meses, mas pode ser dobrada caso o réu tenha incorrido no delito de organização criminosa.

Na semana passada, um tribunal especializado em corrupção iniciou o julgamento de dezesseis juízes de arbitragem. Todos de uma só vez. Os promotores da Lava Jato pedem a prisão preventiva deles por 36 meses, por terem recebido dinheiro da Odebrecht. A construtora comprou pareceres favoráveis para poder realizar diversas obras no país. Os juízes são acusados de lavagem de dinheiro, corrupção passiva, associação ilícita e tráfico de influência. O caso das cortes de arbitragem é um bom exemplo de como os promotores e juízes peruanos estão se esforçando para que a justiça seja feita e o país possa se reerguer a partir da lama.

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