Reprodução"A reforma da Previdência pode ajudar o Brasil a ser uma nação muito mais competitiva"

Ainda há solução

O analista político americano explica por que tanto a esquerda quanto a direita vêm falhando sucessivamente na América Latina e diz qual pode ser o caminho para sair do atoleiro, apesar do seu pessimismo
01.11.19

Com mais de quatro décadas percorrendo e estudando a América Latina, o analista político americano Peter Hakim já foi mais de uma dúzia de vezes ao Capitólio, em Washington, para tentar explicar aos parlamentares de seu país as idiossincrasias da região. Pela Fundação Ford, ele trabalhou na Argentina, no Brasil, no Chile e no Peru. De 1993 até 2010, foi presidente do think tank Diálogo Interamericano, em Washington. Desde então, tem atuado como presidente emérito da organização — e, de longe, continua observando atentamente as vicissitudes dos países latinos.

Com muita disposição para falar ao telefone, Hakim, de 77 anos, traça um diagnóstico um pouco pessimista. Analisando os presidentes da região, ele diz que não consegue distinguir um único que esteja fazendo um bom trabalho a ponto de se tornar uma referência inquestionável. “Esta parece uma situação em que tanto a esquerda quanto a direita parecem ter falhado. Não temos presidentes bem-sucedidos em lugar algum. Não se pode citar o nome de ninguém que tenha dado certo”, diz.

Não é propriamente um problema novo. Mas há um dado inédito no quadro atual, na visão de Hakim: o governo americano, agora, tem dispensado mais atenção à região que seus antecessores. Ele diz que o presidente Donald Trump está muito mais interessado na América Latina do que estiveram Barack Obama e George W. Bush, por exemplo, em busca de consolidar uma liderança que a Rússia, embora tenha vínculos com a ditadura de Nicolás Maduro, não pretende desafiar. Segue a entrevista.

Uma ideia corrente é a de que os países da América Latina, exceto o México, andam todos juntos. Nos anos 2000, vários foram para a esquerda. Desde a eleição de Mauricio Macri, em 2015, muitos viraram para a direita. Para onde estamos indo agora?
É verdade que o México sempre fica de fora. Talvez as coisas por lá aconteçam um pouco depois. Ou cheguem antes. Mas é sempre difícil marcar uma tendência continental. As últimas eleições têm sido definidas por margens muito estreitas. Quando Macri foi eleito, em 2015, ele venceu por uma diferença de 2,68 pontos percentuais. É um placar apertado, que torna difícil falar em uma onda ou um tsunami indo em uma ou outra direção. O que temos visto na prática é que os eleitores tendem a reeleger os governantes que eles acreditam terem feito um bom trabalho. No Brasil, um exemplo foi Fernando Henrique Cardoso, que governou por dois mandatos. Lula também. Na Argentina, no Chile e em outros países, a regra é a mesma. Governantes que não são bem-sucedidos são trocados, geralmente com baixa aprovação popular.

Como o sr. enxerga o desempenho dos atuais governantes da América Latina?
Claramente, há uma crise nos governos da região. Os eleitores em geral têm sentido que estão recebendo menos do que lhes foi prometido. A qualidade dos serviços públicos está aquém do desejado, o combate à corrupção tem sido falho e muitos líderes têm se revelado incapazes. O Brasil teve dois presidentes recentes deixando o posto com menos de 10% de aprovação popular. Dilma Rousseff sofreu impeachment. Michel Temer foi ignorado. Quando Macri chegou ao poder na Argentina, ele disse que reverteria as políticas de Cristina Kirchner e que a economia voltaria a crescer, mas essas coisas não aconteceram. Quando as pessoas se decepcionam, elas vão para as ruas protestar e podem realizar atos violentos.

A situação mundial hoje está muito difícil. Investidores estão tirando o dinheiro de mercados emergentes e o preço das commodities baixou. Isso torna a missão dos presidentes ainda mais complicada?
Mesmo em condições difíceis, bons presidentes podem encontrar um caminho. Quem governou os Estados Unidos por mais tempo foi Franklin Delano Roosevelt. Ele assumiu em 1932, em meio a uma depressão terrível. Foi reeleito três vezes (1936, 1940 e 1944). O brasileiro Fernando Henrique Cardoso assumiu o Palácio do Planalto com um plano para conter a inflação e manter o Plano Real. De algum jeito, funcionou. A situação global daqueles tempos era muito ruim para o Brasil e para o mundo. A economia deve desacelerar em todo o planeta, mas isso não quer dizer que os presidentes não possam fazer um bom trabalho.

Juan Manuel Herrera/OASJuan Manuel Herrera/OAS“Alguns atos violentos em Santiago tiveram algo a ver com a extrema esquerda”
Bons governantes poderiam contornar a atual situação?
O precedente não é muito bom. A América Latina tem um desempenho muito ruim. Desde o final dos anos 1990, a produtividade não melhorou. Não ocorreu inovação econômica. A infraestrutura está muito debilitada. É uma falha de longo prazo, que mostra a incompetência de sucessivos governos. Isso fez com que a região perdesse importância econômica. Os países asiáticos estão assumindo um papel muito maior, principalmente a China e a Índia. Países da Europa do Leste e até alguns africanos estão se movendo muito mais rapidamente que a América Latina.

Como o sr. vê a atual relação entre os Estados Unidos e a América Latina?
O presidente americano, Donald Trump, tem dado mais atenção para a região do que seus antecessores, como Barack Obama ou George W. Bush. No caso do México, o país não apenas ganhou mais destaque com a renegociação do Nafta como teve de mudar a política com os migrantes. Trump também tem pressionado muito mais fortemente os governos de Cuba e da Venezuela do que outros presidentes. O fato é que o governo Trump está extremamente envolvido com a América Latina. O problema disso é que o presidente americano sempre coloca os Estados Unidos em primeiro lugar. Não há uma busca para encontrar pontos em comum, para colaborar.

E como os países da América Latina têm reagido?
Buscando uma acomodação. Os mexicanos aceitaram tomar várias medidas que iam contra aquilo que a população gostaria. Eles entenderam que não tinham alternativa além da relação econômica com os Estados Unidos. Em toda a região, ninguém está desafiando os Estados Unidos. O que todos estão tentando é se adaptar. Atualmente, a questão mais tensa é a proximidade com a China. Os Estados Unidos adorariam ver a América Latina dando as costas para o país asiático. Mas isso é impossível. O Brasil não poderia suspender suas exportações agrícolas para a China. Mesmo que Bolsonaro endureça o discurso, não há como cortar relações. Em breve, haverá o encontro anual dos Brics no Brasil, em que a China tem destaque.

A movimentação para integrar a OCDE e a assinatura de um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia podem dar certo?
Esta é a área em que ele (Jair Bolsonaro) pode ter sucesso: o liberalismo. Temos de dar crédito ao ministro da Economia, Paulo Guedes, por ter conseguido montar um time muito forte na economia. O Brasil é um dos países mais fechados do mundo. Apesar de ser um dos maiores em extensão territorial e ter uma população de mais de 210 milhões, a sua presença internacional muito pequena. Mas as coisas podem melhorar. Guedes está seguindo adiante com a reforma da Previdência, quer reduzir impostos e assinar mais tratados de livre-comércio. Tudo isso pode ajudar o Brasil a ser uma nação muito mais competitiva.

O quadro mundial desfavorável é um empecilho para os planos brasileiros?
Bolsonaro tem uma agenda cultural e ideológica que não se casa muito bem com sua agenda econômica. No primeiro ponto, ele não tem muitos amigos. Já perdeu muito apoio desde que foi eleito. Então, tudo vai depender de como será o desempenho da economia, área em que ainda existem incertezas. A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Um confronto com o presidente eleito do país, Alberto Fernández, não parece ser muito inteligente. Bolsonaro também insultou o pai da chilena Michelle Bachelet, o que atrapalha a relação com o Chile, que também é um grande mercado. Se ele administrar mal a economia, o resultado da próxima eleição dependerá muito do rival que ele terá pela frente.

O recém-eleito Alberto Fernández vai transformar a Argentina em uma nova Venezuela?
A Argentina tem instituições muito mais fortes do que a Venezuela ou o Equador. Os governadores das províncias têm uma influência muito grande no governo central. Há boas razões para esperar que Fernández, que é um político hábil e próximo dos governadores, seja muito mais moderado dentro da esquerda. O peronismo, vale lembrar, teve o presidente mais ortodoxo da Argentina, Carlos Menem. Trata-se de uma corrente política muito oportunista. Cristina Kirchner também é muito esperta. Ela provavelmente terá alguma relevância no próximo governo, mas acho que eles encontrarão um meio-termo. A economia e as questões fiscais deverão ser administradas de maneira mais ortodoxa. Cristina deve ficar mais na área social. Ela teria muito a ganhar com a recuperação econômica. Isso garantiria o futuro político dela.

Como explicar os protestos no Chile?
Foi um fenômeno muito parecido com o que vimos no Brasil em 2013. Nenhum político da esquerda, da direita, jornalista, professor universitário ou analista conseguiu prever o que aconteceu. Foi uma surpresa completa. Em parte, os chilenos se indignaram depois que o presidente, Sebastián Piñera, enviou as Forças Armadas para conter os distúrbios. A imagem de soldados na rua não foi bem aceita pela população mais velha, que na década de 1970 assistiu a um golpe de estado muito mais cruel do que aquele que aconteceu no Brasil. Mas não acho que a destruição do metrô tenha sido apenas uma reação ao governo. Esses ataques já estavam planejados muito antes. Desconfio da extrema esquerda, que no Chile é mais forte do que em outros países da América do Sul. Eles elegeram Salvador Allende em 1971. Na minha opinião, alguns atos violentos em Santiago tiveram algo a ver com a extrema esquerda, que quer destruir a ordem política.

ReproduçãoReprodução“O governo de Maduro, cedo ou tarde, entrará em colapso”
Acredita que as ditaduras de Cuba e da Venezuela ou o Foro de São Paulo estejam por trás dos protestos?
Não vi nenhuma evidência séria que mostrasse tal relação. Para mim, parece um absurdo que a Venezuela, com a economia em colapso, possa ter a capacidade de fazer algo assim. Cuba está em igual situação, com a economia afundando. Eles não têm recursos, não têm energia. Acho que os protestos são um fenômeno exclusivamente chileno, talvez com participação da extrema esquerda local, como disse.

Ideologicamente, Venezuela e Cuba são capazes de influenciar outros países da região, mesmo sem muitos recursos financeiros?
Também não acredito nisso. O venezuelano Hugo Chávez só conseguiu se projetar porque tinha muito dinheiro. Ele apoiou a extrema esquerda em vários países. Também se provou um bom comunicador, muito ágil. Mas hoje a ditadura de Nicolás Maduro está lutando pela própria sobrevivência. Na Nicarágua, Daniel Ortega está penando para manter sua posição. Na Bolívia, Evo Morales ganhou as eleições com extrema dificuldade e há um debate em curso sobre se ele venceu mesmo. Não acho que qualquer um deles esteja em posição para se envolver em outros países.

Quem é hoje o principal líder da esquerda na região, capaz de influenciar os outros?
É uma boa pergunta. Dizem que quem está mais perto disso é o uruguaio José Mujica. Será? Acho que não. No México, López Obrador está passando por um momento ruim. Repare que ele nunca viaja para fora do seu país. Só quer saber do México. Evo Morales entendeu muito bem que perdeu o apoio popular. Maduro não é Chávez. A esquerda está numa situação muito ruim.

E a direita?
A popularidade dos líderes da direita caiu bastante. Macri sobreviveu às eleições. Depois de ficar quinze pontos percentuais atrás de Alberto e Cristina nas eleições primárias de agosto, ele encurtou a distância para sete pontos percentuais no último dia 27. Mas Macri não terá como ser um líder regional depois de ter sido derrotado. O chileno Piñera, após os protestos, é aprovado por apenas 14%. O colombiano Iván Duque também perdeu apoio. Não há mais direita na região. Bolsonaro também não pode ser um líder regional, porque não é respeitado em outros países. Ele está falando até em deixar o Mercosul, o que não o coloca em boa posição na América Latina.

O sr. vê um quadro complicado para todos os países da região, então.
A grande questão para mim é: a América Latina poderá se recuperar? Esta parece uma situação em que tanto a esquerda quanto a direita parecem ter falhado. Não temos presidentes bem-sucedidos em lugar algum. Não se pode citar o nome de ninguém que tenha dado certo. O Chile costumava ser o mais bem-sucedido. Não é mais. O Peru também era bastante elogiado, até o colapso do governo. Na esquerda, não há ninguém parecido com Chávez. Na direita, não há nenhum Vicente Fox (ex-presidente mexicano). Macri falhou. Piñera está sob ataque. Será que isso tudo vai impedir o surgimento de políticos mais pragmáticos? É muito difícil prever. Não vejo a emergência de nenhum. A América Latina está em crise institucional neste momento. Há um vácuo de lideranças políticas na região.

A Rússia pode se aproveitar disso?
Vladimir Putin está muito mais envolvido com nações que estavam na área de influência da União Soviética. Os russos estão preocupados com países do Oriente Médio, com a Georgia, com a Ucrânia. Tenho falado com alguns diplomatas russos. Eles não são de muita conversa, são fechados, mas sugerem que a Rússia tem interesse na Venezuela por uma única razão: eles investiram muito dinheiro lá. Venderam armas e emprestaram dinheiro. Mas não há um objetivo político maior. Não acho que russos pretendam confrontar os Estados Unidos na Venezuela ou em Cuba. Eles são espertos o suficiente para saber que esses dois países têm muito mais a ver com a política interna americana e que é melhor não se meter com os Estados Unidos. A Rússia não precisa disso agora. Não consigo imaginar uma razão pela qual a Rússia tentaria influenciar a Venezuela. A percepção geral é a de que o governo de Maduro, cedo ou tarde, entrará em colapso. E o que a Rússia provavelmente vai fazer é reconhecer o novo presidente, porque a Venezuela tem uma dívida importante com Moscou.

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