O doping ideológico

25.10.19

Rachel McKinnon, um homem biológico que se apresenta como mulher, venceu esta semana o campeonato mundial feminino de ciclismo e estabeleceu um novo recorde mundial feminino para a categoria que disputou. A presença de transexuais no esporte feminino, que é debatida atualmente no mundo ocidental, ganhou nos últimos dias mais um bizarro capítulo na inacreditável “polêmica” sobre homens formados com testosterona durante anos competindo com mulheres.

Sou mulher e atleta, dediquei décadas da minha vida ao esporte e sou absolutamente contra a presença de transexuais no esporte feminino. Há dois anos decidi tornar público meu total descontentamento com o Comitê Olímpico Internacional (COI) e algumas entidades esportivas que permitiram a entrada de homens biológicos em competições para mulheres. Minhas razões, embasadas pela óbvia biologia humana e também por 24 anos de experiência, não mostram apenas por que a biologia e a ciência devem ser os pilares mais respeitados no esporte, mas como estes pilares sustentam os sonhos, o trabalho e a dedicação de milhares de jovens atletas e mulheres no mundo.

Antes de tudo, é sempre importante salientar que esta discussão não é – e não pode ser – sobre tolerância ou preconceito, mas sobre a volta do bom senso e da defesa da verdade, completamente abandonados para acomodar o discurso da ideologia de gênero aliado ao raso ambiente da sinalização de virtude. Sou solidária em relação às batalhas que transexuais precisam enfrentar para que seus corpos se alinhem melhor com o que desejam ou sentem — seus desafios internos são inimagináveis para mim e, por isso, acredito e prego que a identidade social de qualquer pessoa deva ser respeitada em uma sociedade madura. No entanto, no campo esportivo, é impossível ignorar a identidade biológica de um corpo geneticamente masculino, com composição óssea e muscular superior, além de órgãos, como coração e pulmões, com maiores capacidades aeróbicas.

O assunto no Brasil entrou no debate público  depois que Tiffany, que foi Rodrigo até os 30 anos de idade, foi autorizada pela Confederação Brasileira de Vôlei a competir na Superliga Feminina de Vôlei. Atletas transexuais femininas são autorizadas a competir com mulheres quando se encaixam na recomendação do COI – não é regra, nem lei – que usa como único critério o nível de testosterona de até de 10 nmol/L (nanomol/litro) durante 12 meses. A cirurgia de redesignação de gênero não é mais obrigatória (pois é… respirem, tem mais). Um “detalhe” que parece nunca ser lembrado no debate é que esse “reduzido” nível de testosterona para atletas trans ainda é 384% maior do que a média produzida pelas mulheres, o que, por si só, mantém o desequilíbrio competitivo. Outro “detalhe” abandonado nessa “polêmica” é que o uso de testosterona por uma mulher biológica até 10 nmol/L, o mesmo nível permitido para atletas transexuais, é considerado doping e ela será suspensa ou banida de acordo com as regras e leis antidoping. Alguém falou em discriminação?

Defensores de transexuais nos esportes femininos têm como linha de argumento que essas atletas passam por tratamentos para bloquear a testosterona, reduzindo assim seus níveis ao nível exigido pelo COI, e isso – e apenas isso — seria suficiente para que homens biológicos sejam considerados “mulheres” no âmbito esportivo. Permita-me explicar outro absurdo desta ideia: mulheres que, como eu, disputaram competições femininas oficiais desde as categorias de base passam décadas sendo monitoradas em incontáveis testes — dentro e fora do período de competições –, para que em nenhum momento de nossas vidas nossos corpos sejam construídos com a substância-primor para atletas, a testosterona. Ao mínimo traço de testosterona acima do nível permitido para mulheres biológicas, uma suspensão é imediatamente aplicada e o caso vai para julgamento na corte esportiva, podendo a atleta ser suspensa por meses, anos ou banida do esporte para sempre, perdendo retroativamente todos os seus títulos e conquistas.

Toda essa legítima patrulha médica com as mulheres serve exatamente para a aplicação das rigorosas leis esportivas que combatem o doping e mantêm o esporte justo. Atletas que trapaceiam com o mínimo uso de testosterona em algum momento da vida devem ser suspensas, e é isso que esperamos das organizações médicas e antidoping do esporte. Assistimos atualmente a entidades esportivas fechando os olhos para a biologia humana e para as justas políticas antidoping, na tentativa de ludibriar a ciência em nome de agendas político-ideológicas. Assistimos atualmente a um grande deboche às mulheres e aos responsáveis pelo esporte no mundo sendo coniventes com a forma suprema de misoginia. Uma declaração de boas intenções das entidades encarregadas de proteger o esporte escrupuloso e correto não é suficiente para justificar tamanho absurdo. Por que o sério parâmetro do esporte limpo para mulheres foi jogado no lixo e totalmente abandonado para acomodar atletas transexuais?

É preciso relembrar que essa agenda político-ideológica ultrapassou qualquer limite do absurdo quando permitiram que Fallon Fox, um ex-militar e ex-caminhoneiro americano, se tornasse a primeira lutadora transexual de MMA. Fox não apenas venceu cinco das seis lutas que disputou como causou profundas lesões corporais nas suas oponentes, como concussões sérias, além de faces e ossos fraturados. Digam o quiserem, Fox é um homem batendo publicamente em uma mulher numa arena politicamente correta. É justo simplesmente fingir que estas inegáveis diferenças biológicas não existem, em nome de uma agenda ideológica que servirá para cercear um espaço tão duramente conquistado pelas mulheres ao longo de séculos? Como aceitar homens biológicos em competições como lutas, batendo impiedosamente em mulheres e ainda ganhando dinheiro, fama e medalhas por isso? Será que todos enlouquecemos ao permitir tamanho descalabro?

Até hoje não há estudos comparativos ou qualquer pesquisa sobre atletas transexuais. É preciso esclarecer que a absurda recomendação do COI foi embasada em apenas um artigo escrito por uma médica transexual, Dra. Joanna Harper, onde ela levou em consideração apenas a análise comportamental de quatro corredoras transexuais. Em defesa das mulheres, dados comparativos das federações de natação e atletismo dos EUA mostram que a diferença entre meninos e meninas já é óbvia e significativa aos 6 anos de idade, com essas diferenças ficando mais acentuadas na puberdade. As mesmas federações mostram, por exemplo, que a campeã olímpica de atletismo dos 100 metros na Olimpíada de 2016 seria apenas o 9º tempo masculino nos Jogos Estudantis Americanos para garotos de até 18 anos. As federações mostram também que nenhum dos tempos das finais femininas de atletismo nos 100, 200, 400 ou 800 metros nos Jogos Olímpicos de 2016 sequer se classificaria para os Jogos Estudantis do Ensino Médio nos EUA para meninos de até 18 anos.

O problema, criado na mais alta instituição esportiva e posto de quem deveria ser o guardião do esporte no mundo, o Comitê Olímpico Internacional, já mostra um efeito cascata devastador até para quem não compete em níveis profissionais. Nos Estados Unidos, meninas do ensino médio que treinam anos para tentar o ingresso nas caras universidades americanas através de bolsas atléticas já começam a perder seus espaços – e bolsas universitárias – para meninos biológicos que se identificam como meninas. Selina Soule, atleta do ensino médio de uma escola em  Connecticut, entrou com um processo contra o estado e está desafiando a política de permitir que atletas transexuais possam competir em esportes femininos com base em sua identidade de gênero. Selina ficou de fora das finais do campeonato estadual, usado por técnicos universitários para recrutar jovens atletas femininas, quando perdeu para dois meninos biológicos na fase classificatória. Infelizmente, meninas biológicas que treinam durante anos já assistem a seus esportes das arquibancadas e em pouquíssimo tempo assistiremos ao esporte feminino ser judicializado e ser disputado em cortes e tribunais.

O esporte sempre foi um grande e respeitado veículo de conquistas femininas, um caminho que sempre evidenciou a luta das mulheres contra queles que tentaram impor limites aos sonhos de todas que se dedicaram e se dedicam incansavelmente para mostrar nosso verdadeiro valor, talento, capacidade de superação e mérito. O legado do esporte feminino limpo e justo para as mulheres e para o futuro de jovens atletas está em jogo. É necessário abraçar o bom senso novamente e dizer NÃO! à exclusão de meninas e mulheres no esporte e mostrar que essa apressada, irrefletida e irresponsável decisão de querer incluir homens biológicos, nascidos e construídos com testosterona, no esporte feminino sai da esfera da tolerância e constrange, humilha e exclui mulheres. Biologia não é de esquerda nem de direita e, assim como o doping físico, esse doping ideológico não passa de mais uma forma de trapaça.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

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