Fellipe Sampaio/SCO/STFNa sessão desta quinta, Rosa Weber votou contra as prisões em segunda instância

Escárnio supremo

O STF dá um passo largo para tirar Lula da cadeia e, com isso, facilita a vida do PT, que depende cada vez mais do ex-presidente para continuar existindo. No Brasil, a roda gira e volta sempre para o mesmo lugar
25.10.19

Por volta das 16 horas desta quinta-feira, 24, a ministra Rosa Weber pôs fim a um mistério que perdurava há tempos. Era apenas o quinto dos onze votos, mas, sem dúvida, o mais esperado do julgamento em que o Supremo Tribunal Federal decidirá, pela sexta vez em dez anos, se réus podem ser presos após terem a condenação confirmada por um tribunal de segunda instância. Havia expectativa em torno do voto de Rosa por uma razão simples: todos os prognósticos davam conta de que seria ela a responsável por desempatar a queda de braço travada entre as duas alas da corte que divergem sobre o tema. A ministra já havia declarado em outras oportunidades sua posição pessoal, contrária à prisão após a segunda instância, mas nas últimas vezes em que o assunto esteve em debate no plenário ela votara a favor por entender que era preciso seguir a jurisprudência vigente, estabelecida em 2016. Agora que a corte decidiu revisitar a discussão de fundo, restava a dúvida: Rosa Weber teria mudado de ideia ou votaria de acordo com o entendimento que já havia explicitado antes? Prevaleceu a segunda hipótese.

A sessão foi suspensa duas horas depois, com o placar de 4 votos a 3 contra a revisão da jurisprudência. Rosa Weber foi abraçada por Ricardo Lewandowski; Gilmar Mendes recebeu congratulações dos advogados. O julgamento só será retomado na primeira semana de novembro. Mas a partir do voto da ministra, e sendo conhecida a posição dos quatro que ainda irão votar, já é possível concluir que um dos mais importantes instrumentos de combate à corrupção do país será derrubado pela corte. Foi com a prisão imediata após o veredicto em segunda instância autorizada pelo mesmo STF em 2016 que a Operação Lava Jato pôde se tornar um dos maiores exemplos de combate à corrupção do mundo. Corruptos e corruptores poderosos passaram a ir para a cadeia. Outros, por temer a possibilidade, concordaram em fazer delações premiadas sem as quais talvez jamais o país conheceria as profundezas de esquemas bilionários montados para saquear dinheiro público. Muitos desses esquemas estavam blindados graças, exatamente, à cultura de impunidade patrocinada pelo Judiciário. Com dinheiro em mãos, os envolvidos podiam contratar os criminalistas mais caros do país que, com acesso direto às cortes superiores, conseguiam adiar condenações indefinidamente. Com o novo entendimento do Supremo, encaminhado pelo voto de Rosa Weber, o velho status muito provavelmente será retomado.

“Não foram os pobres que sofreram o impacto da possibilidade de execução da pena após condenação em segundo grau. Não foram os pobres que mobilizaram os mais brilhantes e caros advogados criminais do país”, disse o ministro Luís Roberto Barroso, ao ler seu voto contra a nova revisão da jurisprudência. Ele foi acompanhado por Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luiz Fux. Do outro lado, além de Rosa Weber, os ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski votaram para parar com as prisões em segunda instância. O impacto no combate à corrupção é de fato gigantesco. Segundo um levantamento do Ministério Público, 38 condenados pela Lava Jato que cumprem pena em regime fechado, semiaberto ou que estão com tornozeleira eletrônica ficarão livres. Gente como o ex-ministro José Dirceu e, claro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Outras dezenas de denunciados por crimes de colarinho branco que aguardam julgamento também verão diminuir suas chances de punição.

Marlene Bergamo/FolhapressMarlene Bergamo/FolhapressLula: o PT não existe sem ele, e a soltura ajudará a resolver esse problema
Ao abrir o julgamento, Dias Toffoli, o responsável por levar o assunto à revisão pelo plenário, com o empurrão providencial de Gilmar Mendes, fez questão de tentar desvincular o julgamento de casos específicos. Era uma forma de dizer que, a despeito das aparências, não se trata de um movimento para favorecer Lula. Mas claro está que o petista é a silhueta oculta por trás do veredicto. Ciente de que está prestes a deixar a prisão, o ex-presidente já traça as diretrizes para liderar a oposição a partir de sua saída. Em recente conversa com correligionários, disse que pretende comandar o campo político adversário do presidente Jair Bolsonaro tendo por foco um discurso crítico ao desemprego e à política econômica liberal que, segundo ele, ameaça “a soberania nacional”. Também quer ser o principal articulador do PT nas eleições de 2020, atraindo aliados para a composição dos palanques municipais. Já vislumbrando o cenário próximo, ele determinou que a nova executiva do partido, a ser eleita em novembro, seja composta pelos mesmos figurões — gente de sua confiança, portanto.

Por mais que Toffoli tente separar o julgamento do caso concreto de Lula, ao vetar a prisão após condenação em segunda instância o Supremo estará, por vias transversas, catapultando o PT, um partido ultradependente da figura de seu principal líder. Apesar da prisão, a lulodependência só faz aumentar. Aos 74 anos de idade, e passadas quatro décadas da chegada do petista ao cenário político nacional com as greves no ABC paulista, ainda é a ele que o partido confia o seu projeto de retomar o poder central em 2022. A agenda imediata de Lula prevê a organização de um comando petista mais alinhado a ele, atropelando movimentos minoritários que até chegaram a esboçar uma discussão sobre o PT pós-Lula. A ideia desse grupo era construir um partido mais descolado da imagem do ex-presidente. O discurso foi assumido, principalmente, por governadores como Camilo Santana, do Ceará, e Rui Costa, da Bahia. Em 2018, eles chegaram a defender que o partido apoiasse a candidatura presidencial de Ciro Gomes, do PDT. Até o senador Jaques Wagner, amigo de longa data de Lula, chegou a cogitar a possibilidade, mas a ideia acabou sufocada a partir das ordens do chefão petista.

O esforço para impedir o surgimento de novas lideranças internas e os constantes vetos dele ao apoio do partido a outros nomes da esquerda sempre foram parte da estratégia de Lula para se manter como figura central da esquerda, em geral, e do PT em particular. Agora não é diferente. É justamente esse jogo que ele vem jogando ao liderar a tal reorganização do partido. A ideia é evitar que haja espaço na nova executiva para potenciais dissidentes. A operação se justifica porque, muito embora a lulodependência seja dominante com sobras, ainda há internamente quem tenha dúvidas sobre qual rumo é o ideal a seguir. Lula não quer correr risco de ver as divergências afloradas em um momento de turbulência e radicalização. Ele entende que o crescimento do papel das redes sociais e o impacto provocado pela Lava Jato no tabuleiro nacional, desde o impeachment de Dilma Rousseff à eleição de Jair Bolsonaro, deram outra cara ao processo político. Por isso, não seria hora para expor divergências, mas de reforçar a velha ordem unida – com ele, claro, no centro da roda.

Vem desse raciocínio, também, a segunda camada da estratégia, que inclui o modo de agir em relação ao governo. O discurso polarizado com Bolsonaro é admitido, mas com uma política de alianças flexível como a que o partido fez no período em que ocupou o Palácio do Planalto. “O modelo de alianças não é mais o único caminho para mirar o centro. O discurso a ser adotado também hoje é fundamental no embate contra o governo. Tem duas lideranças hoje no país, Lula e o presidente da República”, diz o deputado petista José Guimarães, aquele cujo assessor foi preso com dólares na cueca. Ele integra a executiva do partido. O cálculo político é claro. Ao fazer o embate direto com Bolsonaro, a aposta é que os projetos em curso para se criar uma alternativa ao centro ou à centro-direita, como os de Luciano Huck e João Doria, têm grandes chances de serem minados. Isso porque o presidente da República também é afeito ao confronto e a um embate contínuo, que será intensificado com a soltura de Lula. Desse modo, ambos passam a centralizar o debate político e a alimentar a audiência, também muito polarizada. Por esse raciocínio, Doria e Huck ficariam escanteados.

Ricardo StuckertRicardo StuckertGleisi Hoffmann e Fernando Haddad, dois emblemas da lulodependência
Avaliação semelhante é feita dentro do próprio Palácio do Planalto. A queda na popularidade experimentada por Jair Bolsonaro desde que ele assumiu o poder e as constantes crises em seu entorno (a mais recente é o embate fratricida no PSL) fazem com que parte considerável de seus aliados, especialmente os que enxergam mais detidamente os movimentos da política, avaliem que o retorno de Lula à cena acaba por ser um ponto positivo para o atual presidente. A volta do petista permitiria a Bolsonaro ressuscitar a bandeira eleitoral da ameaça do retorno do PT ao poder, distraindo o público sobre problemas atuais do país e de seu governo. Se essa é a leitura dos auxiliares políticos do Planalto, na ala militar do governo a visão é divergente. O núcleo fardado de Bolsonaro avalia que a libertação de Lula pode carimbar no atual governo uma marca de afrouxamento no combate à corrupção – algo que já vem se materializando pelo papel secundário que ele dá ao ministro da Justiça, Sergio Moro, e pelas intervenções que o governo tem feito nos órgãos de controle, como o Coaf (atual Unidade de Inteligência Financeira) e a Receita Federal.

Para o núcleo familiar, outro pilar importante da gestão Bolsonaro, é indiferente. “Bolsonaro é muito maior do que Lula. Tratora qualquer um hoje. Ganha em primeiro turno uma eleição. Não precisa de ninguém para rivalizar”, disse a Crusoé o senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente. “Nem estamos pensando nisso”, afirmou Eduardo Bolsonaro, o 03. Fora dos dois polos, outros atores relevantes do universo político demonstram ter dúvidas sobre os efeitos da polarização. Falar para convertidos, afinal, poderia inviabilizar as chances dos dois lados de sair de suas próprias bolhas, o que tem se mostrado algo fundamental nas batalhas eleitorais — a conquista do eleitorado mais ao centro é necessária para vencer qualquer eleição nacional. Lula está colocando esse dado em seus cálculos para o período pós-prisão. Ao mesmo tempo que quer investir na polarização com Bolsonaro, fora da cadeira ele tentará formar uma aliança com o maior número possível de partidos de centro e de esquerda nas eleições de 2020, já como um preâmbulo para 2022.

Não é, porém, uma tarefa fácil. O PT carrega um grau considerável de radiotividade política em razão dos escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato. Especialmente no Centro-Sul do país, onde estão os maiores colégios eleitorais. Há ainda ojeriza da maior parte da esquerda sobre a histórica tentativa de Lula e do partido de ser hegemônico nesse lado do espectro político. À exceção do PCdoB, siglas como PSB e PDT, que já foram parceiras do lulismo, querem investir em projetos próprios. “Nosso projeto eleitoral com certeza não é em torno de Lula. As eleições do ano passado já indicaram o caminho que Lula optou”, afirmou o líder do PDT e vice-presidente do partido, André Figueiredo. Recentes declarações de Lula em entrevistas só reafirmaram sua intenção de manter essa hegemonia – e irritaram ainda mais os esquerdistas. Indagado dias atrás se aceitaria ser candidato a vice em 2022, seguindo o exemplo de sua colega argentina Cristina Kirchner, ele riu e disse que o PT tem que ter candidato “em todas as cidades importantes” e que é “muito difícil” não ter candidato próprio em 2022.

Já os partidos mais ao centro se dividem. Siglas como MDB, PTB e PSD avaliam não haver chances de uma aproximação agora. Já o PR de Valdemar da Costa Neto e o PP de Ciro Nogueira, parceiros do PT nos escândalos do petrolão e do mensalão, topam sentar para conversar. “O cara foi presidente duas vezes, elegeu um terceiro presidente e vem retomar suas atividades. Lógico que a saída dele (da prisão) muda algo. Mas vai depender muito de como ele vai retomar. Ele é que vai ser protagonista”, afirma o líder do PR na Câmara, Wellington Roberto, um dos expoentes do Centrão no Congresso. A expectativa para essa turma é que os acenos a Lula mexam com o Palácio do Planalto e convençam Jair Bolsonaro a montar um governo de coalizão tradicional, baseado na troca de apoio parlamentar por emendas e cargos. Ou seja: o embate levaria a uma, digamos, ampla reabertura do mercado do fisiologismo. Todos os planos dependem do destino de Lula. E a saída dele da prisão, além de ser um nocaute na Lava Jato e no combate à corrupção no país, evidencia que a roda da política brasileira gira para não sair do lugar. E com a chancela do Supremo, o último degrau da mesma Justiça que, até pouco tempo atrás, vinha dando sinais de que estava imbuída do propósito de rever as velhas e condenáveis práticas que nos levaram ao fundo do poço. Tudo isso é um escárnio. Não importam as decisões do STF, criminoso continuará a ser criminoso e Lula permanecerá um corrupto e lavador de dinheiro. Assim como todos os outros condenados que o tribunal pode soltar, para que voltem a emporcalhar a vida pública do país. O Brasil não é lulodependente. O PT e o sistema no qual ele está inserido é que são.

Com reportagem de Mateus Coutinho

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