Adriano Machado/Crusoe

Excelências em dois tempos

Os votos proferidos em julgamentos anteriores revelam a opinião (e, em alguns casos, a guinada) de parte dos ministros do STF sobre as prisões a partir de condenação em segunda instância
18.10.19

No papel de guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal tem o poder de decidir qual é o alcance do texto da Carta sobre temas que, direta ou indiretamente, afetam a vida de todos os brasileiros. Recentemente, um assunto em especial entrou no centro das preocupações da corte: a possibilidade de um condenado na Justiça começar a cumprir a pena após condenação em segunda instância.

O debate não vem de hoje. Em 2009, a corte decidiu pela impossibilidade se prender alguém antes que o Superior Tribunal de Justiça e o próprio STF analisassem os recursos das defesas. O entendimento, porém, durou apenas sete anos. Em fevereiro de 2016, já com a Lava Jato no encalço de figurões da elite política e econômica do país, o plenário do Supremo voltou à questão e, em novo julgamento, passou a entender como possível a prisão logo após a condenação do réu por um órgão colegiado.

A medida teve impacto direto nas investigações. Poderosos de todos os tipos se viram, como nunca antes na história do país, como diria um ex-presidente que conheceu a cadeia justamente após a decisão dos ministros, sob risco. Muitos passaram a fechar acordos de colaboração premiada como forma de experimentar as agruras do cárcere.

Pouco mais de três anos após a mudança que possibilitou o avanço de investigações de combate à corrupção, e com a Lava Jato batendo na porta até do próprio Judiciário, o STF decidiu revisitar o tema. Sob a presidência de Dias Toffoli, que em 2016 era favorável à prisão e, assim como seu colega Gilmar Mendes mudou de ideia, a corte tende a voltar à posição de 2009. Crusoé reuniu trechos de votos proferidos pelos atuais ministros da corte ao tratar do tema em julgamentos anteriores:

Adriano Machado/Crusoe
LUIZ EDSON FACHIN
Em todos os julgamentos de que participou, o relator dos processos da Lava Jato no STF votou a favor da prisão após condenação em segunda instância.

“Se afirmamos que a presunção de inocência não cede nem mesmo depois de um Juízo monocrático ter afirmado a culpa de um acusado, com a subsequente confirmação por parte de experientes julgadores de segundo grau, soberanos na avaliação dos fatos e integrantes de instância à qual não se opõem limites à devolutividade recursal, reflexamente estaríamos a afirmar que a Constituição erigiu uma presunção absoluta de desconfiança às decisões provenientes das instâncias ordinárias.” (2016)

Fátima Meira/Futura Press/Folhapress
LUÍS ROBERTO BARROSO
Um dos principais defensores da Lava Jato no STF, Barroso votou todas vezes pela possibilidade da prisão a partir da sentença em segundo grau.

“Não há dúvida de que a interpretação que interdita a prisão anterior ao trânsito em julgado tem representado uma proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas. Afinal, um direito penal sério e eficaz constitui instrumento para a garantia desses bens jurídicos tão caros à ordem constitucional de 1988. (…) No momento em que se dá a condenação do réu em segundo grau de jurisdição, estabelecem-se algumas certezas jurídicas: a materialidade do delito, sua autoria e a impossibilidade de rediscussão de fatos e provas. Neste cenário, retardar infundadamente a prisão do réu condenado estaria em inerente contraste com a preservação da ordem pública, aqui entendida como a eficácia do direito penal exigida para a proteção da vida, da segurança e da integridade das pessoas e de todos os demais fins que justificam o próprio sistema criminal. Estão em jogo aqui a credibilidade do Judiciário – inevitavelmente abalada com a demora da repreensão eficaz do delito –, sem mencionar os deveres de proteção por parte do Estado e o papel preventivo do direito penal. A afronta à ordem pública torna-se ainda mais patente ao se considerar o já mencionado baixíssimo índice de provimento de recursos extraordinários, inferior a 1,5% (em verdade, inferior a 0,1% se considerarmos apenas as decisões absolutórias), sacrificando os diversos valores aqui invocados em nome de um formalismo estéril. (…) A mudança de entendimento também auxiliará na quebra do paradigma da impunidade. Como já se afirmou, no sistema penal brasileiro, a possibilidade de aguardar o trânsito em julgado do recurso especial) e do recurso extraordinário em liberdade para apenas então iniciar a execução da pena tem enfraquecido demasiadamente a tutela dos bens jurídicos resguardados pelo direito penal e a própria confiança da sociedade na Justiça criminal. Ao evitar que a punição penal possa ser retardada por anos e mesmo décadas, restaura-se o sentimento social de eficácia da lei penal. Ainda, iniciando-se a execução da pena desde a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição, evita-se que a morosidade processual possa conduzir à prescrição dos delitos. Desse modo, em linha com as legítimas demandas da sociedade por um direito penal sério (ainda que moderado), deve-se buscar privilegiar a interpretação que confira maior – e não menor – efetividade ao sistema processual penal.” (2016)

Adriano Machado/Crusoe
ROSA WEBER
A ministra é contra a prisão após condenação em segunda instância, mas no julgamento de um habeas corpus de Lula, em abril de 2018, decidiu a favor por entender que, naquele momento, era preciso seguir o entendimento do plenário do STF sobre o tema.

“Tenho alguma dificuldade na revisão da jurisprudência pela só alteração dos integrantes da corte. Para a sociedade, existe o Poder Judiciário, a instituição, no caso o Supremo Tribunal Federal. Por isso é que, embora louvando, como já disse, e até compartilhando dessas preocupações todas – é emblemático o caso que o eminente Ministro Luís Roberto refere, sob a minha relatoria, revelador do uso abusivo e indevido de recursos, e estamos todos os dias enfrentando essa realidade -, eu, talvez por falta de reflexão maior , não me sinto hoje à vontade para referendar a revisão da jurisprudência proposta (…) Há questões pragmáticas envolvidas, não tenho a menor dúvida, mas penso que o melhor caminho para solucioná-las não passa pela alteração, por esta Corte, de sua compreensão sobre o texto constitucional no aspecto.” (2016)

“Compreendido o Tribunal como instituição, a simples mudança de composição não constitui fator suficiente para legitimar a alteração da jurisprudência, como tampouco o são, acresço, razões de natureza pragmática ou conjuntural (…) Colocadas tais premissas teóricas, e forte no que nelas explicitei, destaco que, tendo integrado a corrente minoritária neste plenário quanto ao tema de fundo, passei a adotar, nesta Suprema Corte e no exercício da jurisdição eleitoral, no TSE, a orientação hoje prevalecente, de modo a atender não só o dever de equidade que há de nortear, na minha visão, a prestação jurisdicional – tratar casos semelhantes de modo semelhante – mas também, como sempre enfatizo, o princípio da colegialidade que, enquanto expressão da exigência de integridade da jurisprudência, é meio de atribuir autoridade e institucionalidade às decisões desta casa.” (2018, no julgamento do HC de Lula)

Pedro Ladeira/Folhapress
CÁRMEN LÚCIA
A ministra votou nos cinco julgamentos que abordaram o tema desde 2009 e sempre foi favorável à prisão após veredicto em segunda instância.

“Então, as consequências eventuais com o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória haverão de ser tidas e havidas após o trânsito em julgado, mas a condenação que leva ao início de cumprimento de pena não afeta este princípio estabelecido inclusive em documentos internacionais (…) Portanto, naqueles julgamentos anteriores, afirmava que a mim não parecia ruptura ou afronta ao princípio da não culpabilidade penal o início do cumprimento de pena determinado quando já exaurida a fase de provas, que se extingue exatamente após o duplo grau de jurisdição, porque então se discute o direito (…) Portanto, o quadro fático já está posto. Outras questões, claro, haverão de ser asseguradas para os réus. Por isso, Presidente, considerei e concluí, votando vencida naqueles julgados, no sentido de que o que a Constituição determina é a não culpa definitiva antes do trânsito, e não a não condenação, como disse agora o Ministro Fux, se em duas instâncias já foi assim considerado, nos termos inclusive das normas internacionais de Direitos Humanos.” (2016)

Adriano Machado/Crusoe
GILMAR MENDES
O ministro mudou de posição sobre o tema. Em 2009, votou contra a prisão após condenação em segunda instância. Em 2016, entretanto, Mendes votou a favor. Em abril de 2018, mudou novamente e agora defende a prisão somente após o trânsito em julgado.

“Ainda há pouco – e é um caso que eu acompanhava na Presidência do Supremo Tribunal Federal –, esse crime, por todas as razões, reprovável, ocorrido em Unaí, dos auditores fiscais do trabalho, em que o assim reconhecido mandante foi condenado a cem anos de prisão e livra-se, solto, vai para casa em seguida. É algo incompreensível, incompreensível para o senso comum, mas também para o senso técnico. (…) Ou seja, a presunção de não culpabilidade não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, a condenação criminal surta efeitos severos, como a perda do direito de ser eleito. Igualmente, não parece incompatível com a presunção de não culpabilidade que a pena passe a ser cumprida, independentemente da tramitação do recurso. (…) O que eu estou colocando, portanto, para nossa reflexão é que é preciso que vejamos a presunção de inocência como um princípio relevantíssimo para a ordem jurídica ou constitucional, mas princípio suscetível de ser devidamente conformado, tendo em vista, inclusive, as circunstâncias de aplicação no caso do Direito Penal e Processual Penal. Por isso, eu entendo que, nesse contexto, não é de se considerar que a prisão, após a decisão do tribunal de apelação, haja de ser considerada violadora desse princípio. (…) Revisitei esse tema, presidente, porque entendi de minha responsabilidade demarcar que também somei posição na formação da jurisprudência que agora se está a rever.” (2016)

“Cumpre ressaltar, desde logo, que em momento algum daquele julgamento foi dito que, confirmada a condenação em segunda instância, o início do cumprimento da pena privativa seria impositivo. (…) Assinalo, pois, que a execução antecipada da pena de prisão, após julgamento em 2ª instância, na linha do quanto decidido por esta Corte, seria possível. Porém, essa possibilidade tem sido aplicada pelas instâncias inferiores automaticamente, para todos os casos e em qualquer situação, independentemente da natureza do crime, de sua gravidade ou do quantum da pena a ser cumprida. (…) Essas prisões automáticas em segundo grau, que depois se mostraram indevidas, fizeram-me repensar aquela conclusão a que se chegou no HC 126.292. E, tudo poderia ter sido diferente se mudássemos tão somente o marco a partir do qual deveria ser iniciado o cumprimento da pena. (….) Esse novo marco, com o fim da prisão automática no segundo grau, consubstancia apenas um ajustamento do momento inicial para a execução da pena, mais consentâneo com o nosso ordenamento jurídico e a com a nossa realidade. (…) O STF, como se sabe, tem repelido, de forma reiterada e enfática, a prisão preventiva baseada apenas na gravidade do delito, na comoção social ou em eventual indignação popular dele decorrente. O clamor das ruas não deve orientar as decisões judiciais. (…) Deve-se expungir a ideia equivocada de prisões automáticas decorrentes de condenação em segundo grau, sem critério, sem levar em consideração a natureza do crime e as circunstâncias do caso concreto.” (2018)

Adriano Machado/Crusoe
MARCO AURÉLIO MELLO
O ministro participou de todas as votações sobre o tema e sempre foi contra a prisão após a confirmação da condenação em segundo grau. Em dezembro de 2018, chegou a dar uma liminar para liberar todos presos que estavam na cadeia graças à decisão de 2016 do STF.

“Em passado recente, o tribunal assentou a impossibilidade, levando inclusive o Superior Tribunal de Justiça a rever jurisprudência pacificada, de ter-se a execução provisória da pena? Porque, no rol principal das garantias constitucionais da Constituição de 1988, tem-se, em bom vernáculo, que ‘ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória’. (…) O preceito, a meu ver, não permite interpretações. Há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção. Já disse, nessa bancada, que, quando avançamos, extravasamos os limites que são próprios ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode retornar e vir à nossa testa.” (2016)

Rosinei Coutinho/SCO/STF
CELSO DE MELLO
O decano do Supremo também participou de todos os julgamentos sobre o tema e sempre votou contra a prisão imediata.

“Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser tratado como se culpado fosse antes que sobrevenha contra ele condenação penal transitada em julgado, tal como tem advertido o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte. (…) Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa – independentemente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado – há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer, até o superveniente trânsito em julgado da condenação criminal, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral. (…) Lamento, senhores ministros, registrar-se, em tema tão caro e sensível às liberdades fundamentais dos cidadãos da República, essa preocupante inflexão hermenêutica, de perfil nitidamente conservador e regressista revelada em julgamento que perigosamente parece desconsiderar que a majestade da Constituição jamais poderá subordinar-se à potestade do estado.” (2016)

Adriano Machado/Crusoe
RICARDO LEWANDOWSKI
Sempre votou contra a prisão na segunda instância.

“Eu vou pedir vênia ao eminente Relator e manter a minha posição, que vem de longa data, no sentido de prestigiar o princípio da presunção de inocência, estampado, com todas as letras, no art. 5º, inciso LVII, da nossa Constituição Federal. (…) Assim como fiz, ao proferir um longo voto no HC 84.078, relatado pelo eminente Ministro Eros Grau, eu quero reafirmar que não consigo, assim como expressou o Ministro Marco Aurélio, ultrapassar a taxatividade desse dispositivo constitucional, que diz que a presunção de inocência se mantém até o trânsito em julgado. Isso é absolutamente taxativo, categórico; não vejo como se possa interpretar esse dispositivo. (…) Em se tratando da liberdade, nós estamos decidindo que a pessoa tem que ser provisoriamente presa, passa presa durante anos, e anos, e anos a fio e, eventualmente, depois, mantidas essas estatísticas, com a possibilidade que se aproxima de 1/4 de absolvição, não terá nenhuma possibilidade de ver restituído esse tempo em que se encontrou sob a custódia do Estado em condições absolutamente miseráveis, se me permite o termo.” (2016)

 Fátima Meira/Futura Press/Folhapress
DIAS TOFFOLI
Em fevereiro de 2016, quando o Supremo deu aval à prisão em segunda instância, o atual presidente da corte foi favorável à tese. Nos julgamentos seguintes, mudou de posição.

“Qual é o momento de se considerar alguém culpado? Segundo a interpretação em que se determina que o trânsito em julgado de todos os recursos possíveis é o momento em que a prisão pode ser aplicada como ‘prisão-sanção’, seria o momento do trânsito em julgado tanto do recurso especial, no Superior de Justiça, quanto do recurso extraordinário, no Supremo Tribunal Federal. E aqui a norma é clara.” (2018)

Adriano Machado/Crusoe
ALEXANDRE DE MORAES
O ministro, que assumiu a cadeira de Teori Zavascki, só votou sobre o tema no julgamento do habeas corpus de Lula, em abril de 2018. Foi favorável à prisão após veredicto em segunda instância.

“Ignorar a possibilidade de execução provisória de decisão condenatória de segundo grau, escrita e fundamentada, mediante a observância do devido processo legal, ampla defesa e contraditório e com absoluto respeito as exigências básicas decorrentes do princípio da presunção de inocência perante o juízo natural de mérito do Poder Judiciário – que, repita-se, não é o Superior Tribunal de Justiça nem o Supremo Tribunal Federal – , seria atribuir eficácia zero ao princípio da efetiva tutela jurisdicional, em virtude de uma aplicação desproporcional e absoluta do princípio da presunção de inocência. (…) Exigir o trânsito em julgado ou decisão final do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal para iniciar a execução da pena aplicada após a análise de mérito da dupla instância judicial constitucionalmente escolhida como juízo natural criminal seria subverter a lógica de harmonização dos diversos princípios constitucionais penais e processuais penais e negar eficácia aos diversos dispositivos já citados em benefício da aplicação absoluta e desproporcional de um único inciso do artigo 5º, com patente prejuízo ao princípio da tutela judicial efetiva.”  (2018)

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