Os ungidos

11.10.19

Autor de mais de trinta livros fundamentais sobre temas que vão da política e a economia até as questões raciais mais complexas e polêmicas, o americano Thomas Sowell é uma das grandes referências intelectuais das últimas décadas. Muitas de suas obras já foram traduzidas para o português, e no livro Os Intelectuais e a Sociedade, o aplaudido e respeitado professor de algumas das principais universidades americanas como UCLA, Harvard e Stanford escreve sobre como as consideradas “elites intelectuais” se relacionam com a sociedade e como suas ideias e conceitos podem ser totalmente desconectados da realidade prática das pessoas.

Sowell é um incômodo para os arautos das narrativas ideológicas e é considerado por muitos um gigante do pensamento contemporâneo e o mais brilhante aluno de Milton Friedman, vencedor do Nobel de Economia de 1964. No capítulo Os Intelectuais e a Justiça do livro acima citado, Thomas Sowell debate sobre o danoso ativismo judicial e sobre “Os ungidos”, como ele mesmo descreve — magistrados que, atrás de palavras complicadas e bonitas (o famoso “juridiquês”), extrapolam os seus limites e tentam inocular ideias erradas. Os julgadores ungidos, de acordo com Sowell, são pessoas que se consideram intelectuais no campo jurídico e que se acham no direito de ditar o que é melhor para a sociedade mesmo não tendo sido eleitos para isso. Parece familiar?

Nos Estados Unidos, talvez o caso mais famoso, e até hoje extremamente controverso e ainda no centro de intermináveis batalhas políticas, seja o Roe v. Wade (1973), uma decisão histórica da Suprema Corte americana na qual o Tribunal decidiu, usando a 14ª Emenda Americana que cobre, entre outros pontos, o direito à privacidade, que a Constituição Americana também protegia – ali naquela emenda – a liberdade de uma mulher grávida de optar por um aborto, sem restrição do governo. O caso começou quando “Jane Roe” (nome fictício usado para proteger a identidade da demandante, Norma McCorvey) entrou com uma ação federal contra Henry Wade, o procurador do distrito de Dallas, Texas, onde Roe residia e onde o aborto era ilegal, exceto quando necessário para salvar a vida da mãe.

Roe v. Wade foi criticado por muitos da comunidade jurídica americana e alguns consideraram a decisão uma forma de ativismo judicial, em que uma lei foi criada a partir de uma emenda constitucional sem a participação do Legislativo. Em um artigo proeminente do Yale Law Journal publicado logo após a decisão ter sido proferida, o estudioso jurídico John Hart Ely criticou o caso como uma decisão que “não é uma lei constitucional e não dá quase nenhum sentido à obrigação de tentar ser”.

Um dos mais respeitados juízes da Suprema Corte Americana, Antonin Scalia (falecido em 2016), era categórico quanto ao papel das cortes e tribunais no escopo democrático para a manutenção de uma república saudável: “Enquanto juízes mexerem com a Constituição para ‘fazer o que as pessoas querem’ em vez do que o documento realmente comanda, os políticos que escolherem e confirmarem os novos juízes, naturalmente, quererão apenas aqueles que concordam com eles politicamente. Você teria que ser um idiota para acreditar no argumento da ‘flexibilidade’ da Constituição que tem que ‘mudar como a sociedade como um organismo vivo’. A Constituição não é um documento vivo, é um documento legal”.

No Brasil, não é inteiramente uma novidade os braços (ou garras, como preferir) do ativismo judicial. Nosso sistema de freios e contrapesos não parece ser uma das mais eficientes ferramentas democráticas das quais podemos nos gabar, mas o que antes poderia parecer apenas uma aberração individual aqui e ali no meio jurídico hoje é a nova realidade da nossa corte suprema e tem trazido altos custos políticos e econômicos ao país. A insegurança jurídica, tema restrito ao meio acadêmico até pouco tempo atrás, é hoje assunto em mesas de bar, reuniões de família e pauta recorrente nas redes sociais, alertas não apenas para a descarada militância de membros do nosso sistema judiciário, mas também para a névoa ideológica e ativista que tomou conta da mais alta corte no Brasil.

O Supremo Tribunal Federal tem mostrado, além de estranhas “interpretações” da Constituição, uma vontade incontrolável de legislar. Temas de interesse político configurados para serem debatidos nas respectivas casas legislativas passaram a ser tratados judicialmente, testando os limites das atribuições expressas pela Carta Magna e muitas vezes ferindo a Constituição. O equilíbrio dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário deve ser buscado a todo custo. O Judiciário não pode abrir mão de sua neutralidade política e, embora deva ouvir a população, não pode agir na esfera de criação e aprovação de leis embasadas em apelo popular de certos grupos ou pautadas pela imprensa.

Há um “porém” interessante, no entanto, neste cenário de ativismo judicial que pode não ser tão malvisto assim pelos olhos dos outros dois poderes e que merece nossa atenção. Ran Hirschl, professor de Ciências Políticas e Direito na Universidade de Toronto, lança no excelente livro Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitucionalism (em tradução livre, “A Caminho da Juristocracia: As Origens e Consequências do Novo Constitucionalismo”), o conceito de “juristocracia”, segundo o qual muitas vezes os próprios poderes Legislativo e Executivo concordam que o poder Judiciário assuma para si certos ativismos e decisões para que os políticos não tenham que arcar com consequências polêmicas. Hirschl defende que há um movimento mundial de transferência dolosa e intencional de temas controversos pelos legisladores ao poder Judiciário, exatamente por não terem a dimensão concreta de perdas e ganhos eleitorais, fortalecendo assim a politização do poder Judiciário e a corrupção da tripartição de poderes.

Independentemente da omissão de alguns de nossos legisladores, principalmente dos presidentes das casas legislativas, de quem devemos cobrar atuação robusta em pautar as mudanças que a sociedade espera, é absolutamente inaceitável que a mais alta corte de nosso país se atreva (sim, ministros, a palavra é essa!) a rasgar a Constituição sempre que lhe convém, para proteger apadrinhados políticos ou empresários. A coleção de desmandos e ativismo dessa corte não caberia em um artigo apenas. De censura a veículos da imprensa, como o absurdo cometido contra Crusoé, à criação de leis e tentativas de validar mensagens hackeadas e editadas contra agentes da lei, passando pelo ministro Ricardo Lewandowski, que fez uma leitura bastante criativa da Constituição ao vivo e em cores para todo o Brasil em plena sessão do impeachment de Dilma Rousseff, até os crimes de pensamento de Janot, os ungidos da corte que se autodenominam vítimas, investigadores, legisladores e juízes precisam se ater a seu espaço institucional e suas funções. Todos os ministros da nossa Suprema Corte, encastelados em suas torres de marfim e montados sobre pilhas de privilégios e mordomias, precisam ser cobrados não apenas por suas ações – mas pelas consequências de suas ações – diariamente por todos nós.

Se há algo que une os americanos de diferentes ideologias é o respeito quase religioso à Constituição. Mesmo quem não tem formação em direito sente que as instituições funcionam num sistema de freios e contrapesos em que cada macaco conhece bem o seu galho. A transformação do STF nos últimos anos é preocupante. Quanto mais interpretação livre do texto constitucional pela última instância, mais riscos corremos. Contra o ativismo judicial, a letra fria da lei é a última garantia.

Antonin Scalia, um norte jurídico para democratas e republicanos da Suprema Corte da mais sólida democracia do mundo, era muito claro em relação às suas decisões: “Se você for um juiz bom e fiel, você deve se resignar ao fato de que nem sempre vai gostar das conclusões a que você chega. Se você gosta delas o tempo todo, provavelmente está fazendo algo errado”. Por mais Scalias e menos Gilmares, Toffolis e Alexandres.

Em meio a tantas batalhas sérias para o país, o STF se perde no ativismo ideológico e encontra tempo para discutir cigarros com sabor, sacolas plásticas de supermercados, entre outras “urgências nacionais”. Até o momento, poucos encrencados com a lei e a Lava Jato em outro grupo de ungidos – os réus com foro privilegiado – foram incomodados pelo tribunal. A mais nova estripulia dos ministros que adoram lagostas, bacalhau, vinhos caros e uísque comprados com o dinheiro do contribuinte? O apadrinhamento do uso de mensagens derivadas de um crime contra agentes da lei e que pode resultar em anulações de condenações de réus na operação que vem expondo e limpando a corrupção no país. Estão contando demais com a suprema paciência do Brasil.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

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