O irmão problema
Em Marília, no centro-oeste paulista, todo mundo conhece Ticiano Toffoli, o ex-prefeito petista e irmão do presidente do Supremo Tribunal Federal que foi condenado civil e criminalmente por gastos indevidos com dinheiro público nos dez meses em que comandou a cidade, em 2012.
Tão marcado quanto ele no município de 240 mil habitantes ficou Sojinha, alcunha de Antonio Carlos Guilherme de Souza Vieira, o cunhado de Ticiano que presidiu o time de futebol de Marília, o MAC, na campanha que culminou com o rebaixamento à quarta divisão do campeonato estadual, em 2018.
Ambos estão sumidos da cena local, mas por um outro motivo que ultrapassa os limites de Marília e alcança o centro do poder em Brasília. Ticiano e Sojinha foram acusados pelo ex-presidente da OAS Léo Pinheiro de receber propina e caixa 2 eleitoral em troca de favorecer a empreiteira em um contrato milionário na cidade paulista. Seria mais uma típica denúncia de corrupção no varejo a ser investigada pela Lava Jato, mas o caso ganhou outro rumo porque no meio do caminho surgiu o nome do ministro Dias Toffoli, irmão do ex-prefeito.
Foi o atual presidente do STF, relatou Léo Pinheiro em um dos 109 anexos de sua delação premiada, que o apresentou a Ticiano, em fevereiro de 2012, durante um encontro no restaurante Piantella, na capital federal. Após Toffoli deixar a mesa, seu irmão, à época vice-prefeito de Marília, e Sojinha, braço direito dele, teriam pedido 1 milhão de reais ao empreiteiro para comprar a renúncia do então prefeito Mário Bulgareli, do PDT. Como contrapartida, a dupla entregaria à construtora uma obra de saneamento orçada em 108 milhões de reais.
Dois fatos públicos alinham-se com a delação de Léo Pinheiro. Em março daquele ano, no mês seguinte ao suposto acerto, Bulgareli renunciou de forma surpreendente, sem alegar o motivo, deixando a prefeitura nas mãos de Ticiano Toffoli. Naquele dia, os vereadores votariam a instalação de uma comissão processante, para investigar a participação do pedetista em uma espécie de mensalão local que já havia levado seu ex-chefe de gabinete à prisão. Bulgareli, contudo, já havia se livrado de três pedidos semelhantes.
Apesar dos indícios, a delação envolvendo o irmão de Toffoli foi arquivada no mês passado no STF pelo ministro Edson Fachin, a pedido da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que alegou não haver provas suficientes nesse e em outros três anexos da colaboração de Léo Pinheiro. A decisão dela provocou um pedido coletivo de demissão de procuradores da Lava Jato em Brasília.
Crusoé foi a Marília, a terra natal da família Toffoli que fica a 434 km de São Paulo, apurar a delação que não quiseram investigar. Analisou os sete volumes da licitação suspeita, ouviu testemunhas do processo e descobriu uma série de novos elementos que corroboram a versão apresentada por Léo Pinheiro, quando assinou o acordo de colaboração com a Lava Jato em dezembro de 2018.
Mesmo sem cargo, Sojinha continuou atuando para o cunhado como dirigente do PT de Marília e foi fazer política e negócios no clube de futebol da cidade. Em 2011, tornou-se conselheiro do MAC e perdeu por um voto a eleição para presidente do clube. Entre seus cabos eleitorais, estava um traficante de drogas, Edson Santos da Silva, o Dinho. Ele foi flagrado pela polícia fazendo campanha para Sojinha na porta do estádio. Dinho foi preso em seguida.
No dia 6 de março de 2012, com a renúncia de Bulgareli, Ticiano troca a pequena sala na qual comandava o DAEM desde 2011 pela almejada cadeira de prefeito e põe seu projeto político em curso. Treze dias depois, o departamento de água e esgoto lança o edital da obra que, segundo o próprio Léo Pinheiro, foi direcionada para a OAS.
Um funcionário da gestão petista em Marília afirmou a Crusoé, sob a condição de anonimato, que o edital da licitação foi elaborado pela própria OAS e entregue a Sojinha. Ou seja, a empreiteira formulou as regras da concorrência que ela mesma venceu. Duas empresas chegaram a contestar cláusulas consideradas restritivas no certame. Em junho, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) determinou correções em alguns itens. O relator do processo foi o conselheiro Robson Marinho, afastado da corte em 2014 sob a acusação de receber propina da Alstom no cartel de trens.
Um novo edital foi lançado em julho, mas por causa das eleições municipais daquele ano, a abertura dos envelopes só ocorreria em janeiro de 2013, já na gestão do sucessor de Ticiano. Quatro empresas apresentaram propostas, mas apenas a OAS foi habilitada. As construtoras Stemag, Central do Brasil e Cesbe foram desclassificadas por não apresentarem um atestado de qualificação exigido no edital, item questionado previamente por ser restritivo à competição, mas que foi mantido na licitação.
À época, o DAEM já estava sob o comando de um novo diretor indicado pelo prefeito recém-empossado Vinícius Camarinha, mas a comissão de licitação era a mesma da gestão anterior. Segundo a delação de Léo Pinheiro, após o início da obra, Camarinha solicitou propina de 3% referente ao valor do contrato e os pagamentos foram realizados até março de 2014, sempre em espécie. Camarinha, que hoje é deputado estadual, afirmou em nota que nunca esteve com o ex-presidente da OAS e que nunca recebeu qualquer vantagem indevida. Disse ainda que ele decidiu romper o contrato após o envolvimento da empreiteira na Lava Jato.
Enquanto a licitação da OAS se arrastava ainda no segundo semestre de 2012, Ticiano tocava a pleno vapor sua campanha pela reeleição, com o cunhado Sojinha, dirigente do PT local, coordenando a arrecadação. Ticiano já havia fracassado nas urnas dois anos antes, quando tentou se eleger deputado estadual pelo PT, e investiu pesado para se manter no cargo. À Justiça Eleitoral, declarou ter despendido 2,3 milhões de reais. Foi a campanha mais cara da cidade. Novamente em vão. Com apenas 19,5% dos votos, perdeu a disputa.
Segundo Léo Pinheiro, contudo, a campanha do irmão de Toffoli custou mais. Na delação arquivada, o ex-presidente da OAS afirma que foi procurado por Sojinha durante a eleição, com o pedido de contribuição de 1,5 milhão de reais via caixa 2. O empreiteiro disse ter autorizado o repasse, feito em espécie, mas não detalha como e quando foi feito o pagamento. No valor arrecadado por Ticiano na disputa chama atenção o fato de que apenas ele e parentes, incluindo outros irmãos do ministro Dias Toffoli, fizeram depósitos em dinheiro na conta de campanha.
Foram nove depósitos em espécie no valor total de 114 mil reais, dos quais seis foram feitos na mesma data, 8 de outubro, um dia após a derrota de Ticiano nas urnas. O valor mais alto, de 22 mil reais, foi doado pelo irmão José Eugênio Dias Toffoli, que trabalhava como engenheiro da Queiroz Galvão à época. O próprio Ticiano doou 15 mil reais em espécie para a sua campanha, também no dia 8. Três dias antes, ele já havia feito uma transferência de 20 mil reais para o comitê. O valor total que ele mesmo informou ter gasto na sua candidatura, 35 mil reais, correspondia a quase metade dos 76,1 mil reais que declarou possuir em bens naquele ano.
A área foi adquirida pelo primo de Toffoli e pelo sócio no ano 2000, por 40 mil reais e, desde então, vem recebendo altos investimentos. Só a construção das unidades hoteleiras, concluída em junho de 2017, teria custado 15 milhões de reais, segundo registro em cartório. As casas e os apartamentos são vendidos por meio de cotas, que custam 221 mil reais cada uma e dão direito ao proprietário de frequentar o local e usufruir de toda a estrutura do resort durante quatro semanas por ano.
Amigo de Toffoli e dono de uma ilha a poucos metros do resort na represa de Chavantes, José Carlos de Souza Bastos, o Béca, conta que o ministro frequentava o local antes mesmo de seu primo ter lançado o complexo turístico, em 2008, quando Toffoli ainda era advogado-geral da União no governo Lula. “Ele é primo do Beto (Degani), frequenta lá há anos, inclusive até na minha ilha ele já foi. Mas quando o Tayayá começou ele nem tinha essa função que ele tem hoje.” Quando assumiu pela primeira vez a presidência da República interinamente em setembro de 2018, o presidente do STF recebeu o amigo Béca em uma audiência com o prefeito de Marília, Daniel Alonso, do PSDB, no Palácio do Planalto.
Sojinha, que hoje é dirigente do time de futebol Audax, em Osasco, na Grande São Paulo, não quis falar com Crusoé. O advogado Samuel Castanheira, que defende Ticiano Toffoli, afirmou que o ex-prefeito não recebeu propina da OAS, que o contrato com a empreiteira foi aprovado pelo TCE e que a delação de Léo Pinheiro “não tem valor algum” porque foi arquivada pela PGR. Procurado, o presidente do STF não se manifestou. Ao determinarem o arquivamento do caso no Supremo, tanto Raquel Dodge quanto Edson Fachin escreveram em seus despachos que ele pode ser reaberto se surgirem fatos novos, como prevê o artigo 18 do Código de Processo Penal.
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