MarioSabino

Que a história seja impiedosa

04.10.19

Uma das reportagens desta edição de Crusoé é sobre a jurisprudência de ocasião do Supremo Tribunal Federal. Desculpe, eu queria mudar de assunto, mas não consegui. Como falar de outro tema se, semana sim, outra também, o STF dá um tiro na cara da Constituição Federal, apenas para livrar da cadeia criminosos do colarinho branco? No malfadado e inacabado julgamento que chancelou a jabuticabeira de que existem duas classes de réus — a dos delatores e a dos delatados num mesmo processo criminal –, o ministro Marco Aurélio Mello teve um lampejo e alertou, à sua maneira barroca:

A sociedade vem aplaudindo o sucesso da denominada Operação Lava Jato, e eis que o mais alto tribunal do país, o Supremo, em passe revelador de atuação livre, à margem da ordem jurídicavem dizer que não foi bem assim e que o sucesso se fez contaminado, no que se deixou de dar, na seara das alegações finais, tratamento preferencial ao delatado, colocando em plano anterior aquele que, com ele ombreando em termos de imputação, talvez não lhe tenha sido fiel, embora não para ver imperar justiça e sim para lograr benefícios penais, protegendo tanto quanto possível a própria pele. A guinada não inspira confiança. Ao contrário, gera o descréditosendo a história impiedosa. Passa a transparecer a ideia de um movimento para dar o dito pelo não dito em termos de responsabilidade penal: o famoso jeitinho brasileiro. E, o que é pior, em benefício não dos menos afortunados, mas dos chamados tubarões da república.

Não sei se a história será impiedosa com o STF. Depende de quem a escreverá. Neste momento, a luta é também para ser o lado que transmitirá aos próximos brasileiros o legado da nossa miséria atual. A depender dos autores, será com a pena da desonestidade e a tinta da mentira. Ao final da guerra que vivemos, espero que a história seja realmente impiedosa com o STF que aí está. Que fique registrado que se tratou da pior composição que o tribunal já teve, as exceções confirmando o fato. Que fique registrado que a presidência de Dias Toffoli realizou a façanha de ser a mais deletéria de todos os tempos democráticos. Que foi instaurado um inquérito vergonhoso, ao arrepio da Constituição Federal, que censurou a imprensa e intimidou cidadãos, tolhendo-os da liberdade de opinião e expressão. Que foram suspensos processos em todo o país que usavam dados de instituições de controle de lavagem de dinheiro e corrupção. Que passou a existir formalmente o réu classe executiva. Que a prisão de condenados em segunda instância será abolida para que voltemos ao reinado da chicana em benefício dos tubarões da república.

Na última quarta-feira, Dias Toffoli teve a pachorra de relegar a sociedade civil ao compartimento de carga, ao dizer que “se existe combate (à corrupção), o combate tão necessário neste país, é graças a este Supremo Tribunal Federal que, juntamente com o Congresso Nacional e com os chefes do Poder Executivo, elaboraram pactos republicanos. Todas as leis que aprimoraram a punição à lavagem de dinheiro, as leis que permitiam a colaboração premiada, as leis de transparência foram previstas nesses pactos com suporte do Supremo Tribunal Federal. É uma falácia dizer o contrário, que esta Corte atua em sentido contrário. É uma desonestidade intelectual”.

Francamente.

Espero também que uma nota de rodapé da história impiedosa seja dedicada a Gilmar Mendes, expressão máxima da jurisprudência de ocasião e da degradação da linguagem no Supremo Tribunal Federal — a degradação da linguagem que é um sinal eloquente da degradação de um país, posto que, como alguém já disse, “a linguagem é a única demonstração autêntica da alma nacional”. Semana sim, outra também, o ministro dá um tiro na compostura.

Gilmar Mendes, que escreveu um projeto de mudança da Constituição Federal para tentar instaurar o regime semipresidencialista no Brasil (Constituição que ele tem o papel de defender, não de mudar), citou o fruto do cometimento de um crime, no mesmo julgamento da última quarta-feira, para ofender um procurador da República e o então juiz Sergio Moro, hoje simplesmente o ministro da Justiça do Brasil. Ele sente-se livre para dizer em público, no plenário da mais alta corte do país, o que afirma em privado, excetuados os palavrões:

Hoje se sabe de maneira muito clara, e o Intercept está aí para confirmar e nunca foi desmentido, que se usava a prisão provisória como elemento de tortura. Custa-me dizer isso no plenário, mas era instrumento de tortura. E quem defende tortura não pode ter assento na Corte Constitucional (…) E isto aparece nessas declarações do Intercept feitas por gente como Dallagnol, feitas por gente como Moro. Portanto, é preciso que se saiba disto. Que o Brasil viveu uma era de trevas no que diz respeito ao processo penal.

Sim, além de colocar a verdade no pau de arara, Gilmar Mendes acha que pode fazer e desfazer ministros do Supremo. O pior é que talvez possa. Trevas.

Em março do ano passado, ao levar uma bordunada de Gilmar Mendes durante uma sessão, o ministro Luís Roberto Barroso teve uma reação incancelável da história — ainda que ela venha a ser escrita com a pena da desonestidade e a tinta da mentira:

Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É um absurdo Vossa Excelência aqui fazer um comício, cheio de ofensas, grosserias. Vossa Excelência não consegue articular um argumento. Já ofendeu a presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para Vossa Excelência é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia. Nenhuma. Só ofende as pessoas. Qual é sua ideia? Qual é sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento, mal secreto, uma coisa horrível. Vossa Excelência nos envergonha, Vossa Excelência é uma desonra para o tribunal. Uma desonra para todos nós. Um temperamento agressivo, grosseiro, rude. É péssimo isso. Vossa Excelência sozinho desmoraliza o tribunal. É muito penoso para todos nós termos que conviver com Vossa Excelência aqui. Não tem ideia, não tem patriotismo, está sempre atrás de algum interesse que não o da Justiça. Uma vergonha, um constrangimento.

O STF não precisa, não, de um cabo e um soldado. Precisa é de ministros. A democracia precisa.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO