Reprodução/redes sociaisNas redes sociais, Vizcarra publicou foto com comandantes das Forças Armadas: "pleno respaldo ao presidente"

Democracia ainda mais frágil

O presidente do Peru, Martín Vizcarra, dissolve o Congresso e é aplaudido pela opinião pública, que quer o avanço da luta anticorrupção no país
04.10.19

Dois dias após dissolver o Congresso do Peru, o presidente do país, Martín Vizcarra, já podia cantar vitória. Sua decisão, anunciada na segunda, 30, foi uma reação ao que ele interpretou ser um ato questionável dos parlamentares, do ponto de vista da Constituição do país. Num primeiro momento, eles não votaram uma moção de confiança enviada pelo presidente, que lhe permitiria mudar a forma de nomear magistrados para o Tribunal Constitucional, e ainda escolheram um nome à revelia de Vizcarra. Quase que simultaneamente à dissolução, os parlamentares voltaram atrás e aprovaram a moção. Tarde demais, segundo o presidente. Na noite do anúncio, os peruanos foram para as ruas celebrar. “Fecharam o Congresso. Vitória do povo”, dizia um cartaz. Horas depois, Vizcarra publicou nas redes sociais uma foto ao lado dos comandantes do Exército, da Marinha, da Força Aérea e da polícia nacional, em “pleno respaldo à ordem constitucional e ao presidente”. Na terça-feira, a vice-presidente, Mercedez Aráoz, que tinha sido empossada às pressas pelo Congresso como presidente interina em desafio ao ocupante do cargo, desistiu do enfrentamento e pediu a renúncia. Na quarta, 2, o órgão responsável pela convocação de eleições no Peru já anunciava os preparativos para um novo pleito no dia 26 de janeiro, a fim de substituir os atuais deputados.

A velocidade dos acontecimentos se deve, principalmente, ao fastio dos peruanos com o Congresso. Nas pesquisas de opinião divulgadas nos meses anteriores, 70% dos cidadãos admitiam desejar a dissolução da Casa. Em toda a América Latina, os peruanos são os que mais acreditam que a corrupção é um grande problema do seu país: 96% concordam. E 80% creem que a maior parte dos seus representantes é corrupta (no Brasil, 63% afirmam o mesmo).

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisApós anúncio do fechamento do Congresso, população comemorou nas ruas
A indignação aumentou no final de 2016, com as revelações sobre a amplitude das ações da brasileira Odebrecht no Peru. Uma comissão Lava Jato foi criada no Congresso, mas seu trabalho foi constantemente sabotado. “Os congressistas, a maior parte deles composta por membros do partido Força Popular (de Keiko Fujimori, filha do ditador Alberto Fujimori) e seus aliados, buscaram constantemente assegurar impunidade frente às investigações da Lava Jato e de outras operações, além de impedir as reformas por mais transparência”, diz o sociólogo Samuel Rotta, diretor-executivo da Proética, o braço da Transparência Internacional no Peru. “Ao fechar o Congresso, Vizcarra removeu o principal obstáculo para que algumas frentes de investigação possam avançar”.

O próprio Ministério Público do país esteve sob ameaça direta. No último dia do ano passado, dois procuradores da Lava Jato peruana, Rafael Vela e José Domingo Pérez, foram demitidos pelo procurador-geral. Após receber a notícia, Vizcarra, que estava em Brasília para a posse de Jair Bolsonaro, voltou às pressas para Lima. Apoiado por manifestações nas ruas, o presidente conseguiu evitar a rasteira e os dois procuradores foram mantidos nos seus cargos. Na semana passada, Vela, que é o chefe da força-tarefa da Lava Jato no Peru, interrogou em Curitiba o ex-funcionário da Odebrecht Jorge Barata. Nas planilhas do Departamento de Operações Estruturadas da empresa, constam 71 apelidos e expressões que dizem respeito a peruanos. Entre eles, “Careca”, “Pastor Alemão”, “Oriente”, “Curriculum Vitae” e “Apra” – nome do tradicional partido de esquerda ao qual pertencia o ex-presidente Alan García, que se suicidou em abril. Alguns registros que constam da planilha de Odebrecht não se referem a um destinatário específico. São abrangentes, como “Campanha Legislativa”, “Campanha Nacional”, “Campanha Regional”. Isso ocorre porque a Odebrecht distribuíra propinas a granel para diversos candidatos e partidos, muitas vezes rivais, em uma mesma eleição, num esquema ainda mais tentacular do que no Brasil. “Tenho certeza de que apoiamos todos”, confessou Marcelo Odebrecht, em 2017.

Paulo Lisboa/FolhapressPaulo Lisboa/FolhapressMarcelo Odebrecht: “Tenho certeza de que apoiamos todos”
Com a ação da semana passada, Vizcarra não terá mais um Congresso para lhe oferecer resistência até o final de janeiro. Até lá, o parlamento será constituído apenas por uma comissão de 21 integrantes, representativos de cada partido. Os próximos deputados que ocuparão as cadeiras vazias tampouco devem lhe trazer problemas. Nas eleições marcadas para janeiro, os candidatos irão concorrer a um mandato tampão, uma vez que a eleição de abril de 2021 foi mantida. Além disso, os deputados que perderam o mandato na semana passada não poderão tentar se reeleger. A principal força de oposição a Vizcarra, o já citado Força Popular, comandado por Keiko Fujimori, que está em prisão preventiva, deverá ser penalizado nas urnas. “Muitos peruanos acham que o fujimorismo é o grande responsável pela crise institucional que o país está enfrentando e irão castigar o movimento nas eleições”, diz o cientista político peruano Fernando Tuesca, da PUC do Peru.

Isso não significa, contudo, que a situação esteja fácil para Vizcarra. Há dúvidas sobre a sua capacidade de fazer reformas políticas após ter dissolvido o Parlamento. Ele também estará no final de um mandato para o qual nem sequer foi eleito. Vizcarra só assumiu o posto porque era o vice de Pedro Pablo Kuczynksi, hoje em prisão domiciliar por ter recebido dinheiro da Odebrecht. O presidente também não tem um partido ou um sucessor que possa herdar seu capital político (não há reeleição presidencial no país). “Vizcarra chamou para si a luta contra a corrupção, mas ele não terá muitos meios para cumprir com as expectativas criadas em torno dele”, diz o cientista político peruano Carlos Meléndez, da Universidade Diego Portales, no Chile. Com a dissolução do Parlamento, o Peru inicia um novo período de incertezas, com uma democracia ainda mais fragilizada.

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