Nelson Jr./SCO/STF

A jurisprudência de ocasião

Ao confirmar decisão que pode anular sentenças da Lava Jato, o STF reafirma sua aptidão para mudar regras de acordo com as circunstâncias e dá mais um passo para minar a operação
04.10.19

Início da tarde de quarta-feira, 2. Faltava pouco para começar a sessão do Supremo Tribunal Federal marcada para julgar um recurso com potencial de anular dezenas e dezenas de sentenças da Lava Jato. Advogados e jornalistas, principalmente, já se acomodavam nas cadeiras à beira do plenário. No espaço reservado aos defensores, representantes de alguns alvos conhecidos da operação tomavam seus lugares. Nas cadeiras para o público geral, estudantes de diferentes universidades tiravam fotos para postar, logo depois, nas redes sociais. Enquanto aguardavam a entrada dos ministros, dois funcionários da corte, crachá pendurado no peito, conversavam.

“E aí, acha que vai dar o que hoje?”, perguntou um deles. “Ah”, resmungou o interlocutor, “hoje em dia é impossível prever resultado de julgamento aqui”. “Pois é, lembra como eram aquelas reuniões de antigamente? Eles sentavam antes da sessão, debatiam e vinham para o pleno com o caso resolvido.” “Lembro, sim, aquelas reuniões administrativas…” “Hoje em dia cada um tem seu interesse e a cada hora surge uma novidade. Então, só esperando para saber o que vai dar…”

A conversa, interrompida pela solenidade da cerimônia em que os onze julgadores entram no ambiente em fila indiana, com suas capas negras, mostra bem como o mais alto tribunal do país se transformou em uma casa imprevisível, capaz de, a depender da época e do caso, tomar decisões que nem sempre seguem uma mesma lógica e, em questão de meses ou poucos anos, podem ser revertidas com facilidade pelos mesmos juízes que as formularam. O caso analisado naquela tarde de quarta se encaixava à perfeição no diagnóstico dos dois funcionários. Era um exemplo bem acabado de como malabarismos jurídicos são usados para moldar decisões de acordo com as circunstâncias.

Em agosto passado, a Segunda Turma do STF anulou a sentença de Sergio Moro que, na posição de juiz da Lava Jato em Curitiba, condenou Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil,  a onze anos de prisão. O argumento apresentado pela defesa e aceito pela turma era o de que Bendine não teve o direito de apresentar suas alegações finais – como o nome diz, última etapa do processo antes da sentença – depois de outros réus que haviam assinado acordos de colaboração. Como réu, ele queria ter tido, em suma, a oportunidade de se manifestar por último, depois de todos os demais, inclusive os delatores que o acusavam. Uma questão meramente formal.

Essa interpretação, surgida por causa da utilização dos acordos de delação premiada em processos, um fenômeno relativamente recente (a lei das delações é de 2013), não foi seguida por Moro e por outros juízes simplesmente porque não estava em nenhuma lei. Mas a tese levantada pelos defensores de Bendine foi acolhida pela maioria dos cinco ministros da turma, em uma decisão que abriu caminho para anulações em série de processos — segundo a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, 32 sentenças envolvendo 143 condenados correm risco de ser anuladas a partir do entendimento. Como esperado, logo após a decisão que beneficiou Bendine, outros advogados começaram a protocolar habeas corpus pedindo as anulações das condenações de seus clientes.

Nelson Jr/SCO/STFNelson Jr/SCO/STFDias Toffoli agora quer modular a decisão para evitar efeito cascata
Um desses recursos era justamente o que seria julgado naquela sessão do plenário. No fim de setembro, na primeira parte do julgamento, foi formada maioria no sentido de estender a decisão de Bendine para outros casos. Por sete votos a quatro, os ministros decidiram que réus delatados têm o direito de apresentar as alegações finais depois dos réus delatores. O plenário, portanto, chancelou o entendimento vencedor na Segunda Turma. Mas faltava definir o alcance da decisão. Após perceber o risco de um efeito cascata, o presidente da corte, ministro Dias Toffoli, começou a testar uma saída alternativa que não deixasse o STF em situação ruim perante a opinião pública. Para evitar anulações em massa, ele sugeriu a criação de uma “tese” para modular o alcance do veredicto. Seriam basicamente duas as regras. Uma delas previa que só tem direito à anulação o réu que questionou a ordem da apresentação das alegações finais com o processo ainda em curso. A outra: para obter a anulação o réu tem de provar o prejuízo que teve por se manifestar no mesmo prazo que os delatores.

No fim, a emenda saiu pior que o soneto. As duas propostas de Toffoli são polêmicas e tendem a gerar novos conflitos. A primeira simplesmente esbarra na Constituição. Como é possível, por exemplo, que apenas os réus que reclamaram da ordem das alegações finais ainda na primeira instância tenham direito a anulação da sentença? A prevalecer esse entendimento, de partida o direito básico dos cidadãos de serem tratados com igualdade estaria atropelado. E os réus que não tiveram condições de contratar advogados espertos o suficiente para levantar a questão no processo no tempo que o ministro considera adequado? Teriam menos direito que os outros? O segundo ponto é igualmente discutível. Como definir se o réu foi prejudicado ou não pelas alegações finais do réu delator? Dado o caráter claramente subjetivo da questão, o efeito colateral seria uma avalanche de ações pedindo anulação de sentenças.

Não demorou para que as divergências em torno da tal modulação surgissem. Para Marco Aurélio Mello, o Código de Processo Penal deixa muito claro que delatado e delator têm a mesma posição no processo, como réus, e, portanto, não precisam ter tempos distintos para apresentação das alegações finais. Conhecido por não ter papas na língua, o ministro fez um alerta aos colegas: “A sociedade tem aplaudido o sucesso da denominada Operação Lava Jato. Eis que o mais alto tribunal do país, o Supremo, em passe revelador de atuação livre, à margem da ordem jurídica, vem dizer que não foi bem assim, que o sucesso se fez contaminado no que se deixou de dar na seara das alegações finais, tratamento preferencial ao delatado”. Lembra a conversa dos dois funcionários antes da sessão, não?

No entendimento do ministro, a mudança de posição acaba por gerar descrédito e impacta na segurança jurídica do país. “A guinada não inspira confiança. Ao contrário, gera o descrédito, sendo a História impiedosa”, disse, para em seguida completar que, com o famoso “jeitinho brasileiro”, a decisão beneficiará “tubarões da República”. Dias Toffoli pediu a palavra para responder ao colega. Com tom de voz alterado, disse que a Lava Jato só existe graças ao STF. “É uma desonestidade intelectual. Esta Corte defende o combate à corrupção, mantém as decisões tomadas dentro dos princípios constitucionais das normas legais, mas repudia os abusos e os excessos e tentativas de criação de poderes paralelos e instituições paralelas”, afirmou.

Marlene Bergamo/FolhapressMarlene Bergamo/FolhapressLula preso: o ex-presidente pode ser o beneficiário mais ilustre do veredicto dos ministros
Apesar da reação a Marco Aurélio, Toffoli percebeu logo em seguida que a sua intenção de modular a decisão para evitar anulações em série havia colocado o STF numa enrascada, como apontou a colunista Eliane Cantanhêde, do jornal O Estado de S.Paulo. Sem coragem para levar a decisão da Segunda Turma às últimas consequências, com a anulação de quase todas as condenações da Lava Jato, Toffoli propôs levar a voto a sua tese. O julgamento, porém, ficou para o dia seguinte. Horas depois, vendo que não teria o apoio da maioria, o próprio Toffoli voltou atrás. Cancelou o julgamento. A decisão sobre a modulação deverá ser tomada ainda neste mês. A ideia do ministro é levar o assunto de volta ao plenário no mesmo dia de outro julgamento caro à Lava Jato e, especialmente, aos poderosos colhidos pela operação: o que definirá a legalidade das prisões após condenação em segundo instância. Esse, aliás, é mais um exemplo do comportamento errático da corte. Hoje, réus condenados em segunda instância só são presos porque foi o plenário do Supremo que decidiu assim, em fevereiro de 2016. Agora, em outro cenário, o mesmo plenário do Supremo pode mudar a regra.

O vaivém surpreende até ex-integrantes da corte. É o caso de Francisco Rezek, que integrou o Supremo por 14 anos. “Nós tínhamos posições diferentes, mas era raro que o tribunal se dividisse por seis a cinco. Hoje em dia o tribunal raramente decide por unanimidade ou quase unanimidade”, afirma o ex-ministro. “O Supremo não tem podido dar à sociedade brasileira a segurança jurídica que é seu dever primordial”, emenda. Para o professor de direito Ivar Hartmann, não são todas as mudanças de posição do Supremo que geram insegurança jurídica, mas a corte poderia dar mais previsibilidade e segurança às suas decisões se deixasse mais claros os seus critérios. “A única coisa que o STF não faz, ou cuida muito para não fazer, é limitar seu próprio poder”, diz. Para o professor, a maioria dos ministros não quer ver sua atuação limitada e, por isso, luta contra métodos que possam funcionar como travas a seu próprio poder.

Nos casos relacionados à Lava Jato, a variação de entendimentos tem sido recorrente. Há outros casos para além do debate sobre as prisões a partir de condenação em segunda instância, que irá à pauta pela quarta vez em menos de quatro anos. Um deles é a decisão do próprio Dias Toffoli que proibiu órgãos como a Receita e o Coaf, agora rebatizado como Unidade de Inteligência Financeira, de enviar dados à Polícia Federal e ao Ministério Público, sem antes passar pelo crivo de um juiz. A decisão foi tomada depois de o Supremo passar anos a fio julgando processos que continham, entre os elementos de prova, relatórios desses órgãos. Em outro julgamento recente, o tribunal transferiu para cortes eleitorais, que não têm qualquer know-how em investigação, o julgamento de crimes como corrupção e caixa dois que estiverem relacionados a campanhas. Em todos os casos, em nome da Constituição, atacam-se os pilares da Lava Jato. Ao fim e ao cabo, é o Supremo mudando as regras ao belprazer de alguns ministros para que tudo volte a ser como antes.

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