Adriano Machado/CrusoéBezerra Filho embarca em jato de empresário: horas antes a PF fez apreensões na casa e no gabinete do deputado

A pista pirata

Um aeroporto ilegal nos arredores de Brasília virou moda entre os poderosos que, a bordo de aviões particulares, buscam fugir dos holofotes, das cobranças dos eleitores e (por que não?) da fiscalização
27.09.19

O deputado federal Fernando Bezerra Coelho Filho tinha acabado de ser alvo de uma ação da Polícia Federal. Agentes vasculharam a casa e o gabinete do parlamentar pernambucano do DEM horas antes, em busca de provas para uma investigação em que ele é suspeito de receber propinas de empreiteiras. São quase cinco da tarde. Ele chega apressado para embarcar em jatinho particular que o espera em um hangar, a 35 quilômetros do Congresso Nacional. A pista de pouso é clandestina, e caiu no gosto dos poderosos que procuram escapar dos olhares curiosos, da burocracia e (por que não?) da rígida fiscalização do aeroporto internacional de Brasília, que fica até mais perto da região central da cidade.

Fernando Bezerra Filho, o alvo da PF naquela quinta-feira, 19 de setembro, chegou ao terminal com a família, a bordo de uma picape preta, com vidros escuros. Dois homens carregaram quatro bolsas do veículo ate o avião. O Embraer Phenom 100 decolou menos de cinco minutos depois. O jato de 16 milhões de reais, com capacidade para sete pessoas, pertence a uma empresa do setor de energia — Bezerra Filho, é importante lembrar, foi ministro de Minas e Energia de maio de 2016 a abril de 2018. O dono do portentoso avião, Emival Ramos Caiado Filho, é primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, do mesmo DEM do deputado. A investigação de que Bezerra Filho é alvo com o pai, o senador Fernando Bezerra, filiado ao MDB e líder do governo Bolsonaro no Senado, envolve obras no Nordeste, como a transposição do Rio São Francisco. Os contratos suspeitos foram firmados quando Bezerra pai, conhecido por sua facilidade em se aproximar de todos os governos, era ministro da Integração Nacional de Dilma Rousseff. Pai e filho são suspeitos de receber 5,5 milhões em propinas.

Os agentes federais encarregados de cumprir a ordem de busca expedida pelo ministro Luís Roberto Barroso mal tinham deixado o Congresso quando Bezerra Filho se acomodava a bordo do jatinho que o levaria para longe de Brasília. Para quem quer discrição, o aeroporto clandestino é perfeito. Também por isso, virou moda. Políticos e empresários têm recorrido cada vez mais às facilidades do terminal pirata. Sem pagar taxas aeroportuárias ou se submeter ao olhar de fiscais da Receita ou mesmo a simples aparelhos de raios-x, tripulantes e passageiros levam e trazem o que querem. A única portaria, com um vigilante particular (e desarmado), serve só para anotar as placas dos carros que entram e saem. Nenhum deles é revistado. Apenas os carros mais simples, de operários que erguem hangares a toque de caixa, costumam ser parados para identificação dos ocupantes.

O petista Jaques Wagner, após descer do Learjet do senador Angelo Coronel
 

Quando pousa em Brasília, o Phenom 100 em nome da empresa do primo de Ronaldo Caiado estaciona em um hangar operado por um empresário que nada paga para ocupar e explorar o espaço. O mesmo hangar ainda abriga dois aviões de uma empresa agropecuária e o King Air do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, do MDB. A área pertence a uma estatal do governo local e foi invadida, anos atrás, por uma família de fazendeiros. Em agosto, o Superior Tribunal de Justiça mandou que o terreno fosse desocupado e devolvido ao poder público. Mas o terminal não só continua em pleno funcionamento como vem sendo ampliado, à vista dos políticos que por ali transitam.

Crusoé acompanhou a rotina do aeroporto nas últimas semanas. Na manhã de terça-feira, 10, por exemplo, flagrou o desembarque de toda a bancada baiana no Senado. Jaques Wagner, do PT, e Angelo Coronel e Otto Alencar, ambos do PSD, chegaram em um Learjet 45 avaliado em 12,5 milhões de reais. O avião está registrado em nome de uma empresa de Coronel, que, além de senador, é dono do Grupo Corel, conglomerado controlado por offshore sediada no Panamá. A carona já virou rotina. Nas tardes de quinta, os senadores baianos costumam embarcar no Learjet de volta a Salvador. Nas viagens entre as duas cidades, os três costumam ter ainda a companhia do deputado federal Elmar Nascimento, líder do DEM na Câmara, também baiano. O governador da Bahia, o petista Rui Costa, é outro que já desfrutou da comodidade. “São colegas do estado, além da amizade pessoal”, diz Coronel, que dá uma explicação curiosa para o uso do terminal pirata: afirma que sua aeronave só opera no local quando é necessário, a depender do tráfego aéreo e das condições climáticas. O combustível do jatinho do senador é você, leitor, quem ajuda a pagar. Só em setembro, Coronel usou 14,6 mil reais da cota parlamentar para abastecer o tanque da aeronave.

Google MapsGoogle MapsO aeroporto clandestino fica a 35 quilômetros da Praça dos Três Poderes
Carros executivos, muitos deles com placas oficiais (é o caso dos três que foram buscar os senadores baianos), fazem parte da paisagem do aeroporto, assim como o vaivém de assessores carregando malas e mochilas. Em média, 40 voos pousam ou decolam todos os dias por ali. Além dos políticos, a clientela é formada por empresários e fazendeiros da região de Brasília. O movimento de camionetes carregadas com caixas sem identificação — e sem passar por qualquer controle — é intenso em hangares que abrigam aeronaves de diversos tamanhos, registradas em nome de firmas muitas vezes desconhecidas.

Donos e funcionários de alguns desses hangares contaram a Crusoé ter como clientes fiéis o deputado federal Aécio Neves, do PSDB de Minas, o ex-ministro Gilberto Kassab, do PSD de São Paulo, e o também ex-ministro Edison Lobão, do MDB maranhense. Aécio e Kassab voam em jatos de amigos. Já a família Lobão tem dois aviões próprios, um Twin Commander com dez assentos e um Piper, com seis. Antes de ser preso, o ex-ministro e ex-deputado Geddel Vieira Lima, aquele do bunker de 51 milhões de reais descoberto pela Polícia Federal em Salvador, era frequentador assíduo do aeródromo ilegal. Hoje são os familiares dele que costumam passar por lá quando viajam de Salvador a Brasília para visitá-lo na Papuda — o presídio fica a menos de 10 minutos de carro da pista de pouso.

Encravado na zona rural de São Sebastião, uma das mais carentes cidades-satélites de Brasília, o aeroporto clandestino tem 119 hangares, a maioria erguida pelos primeiros usuários do terminal, em grande parte donos de ultraleves e pequenos aviões experimentais. Com a procura dos políticos, eles passaram a cobrar aluguéis. O aeródromo abriga cerca de 250 aeronaves, avaliadas em até 20 milhões de reais. A pista, pavimentada, tem 1,7 mil metros de comprimento e 23 metros de largura. A operação beira o amadorismo. Por vezes, homens em cima de motocicletas ou triciclos guiam as aeronaves até os hangares onde elas deverão estacionar. Para decolar a partir da pista pirata, os pilotos só precisam apresentar um plano de voo com antecedência de 45 minutos da decolagem. Para os pousos, o controle também é mínimo. A Força Aérea Brasileira diz não ter como cuidar do movimento no terminal justamente devido a sua situação irregular — alega que a legislação não permite intervenção em aeródromos, como são classificados os aeroportos particulares destinados a voos executivos.

Adriano Machado/CrusoéMecânicos consertam avião em área de manobra: aeródromo sem fiscalização
Se no Aeroporto Internacional de Brasília, administrado por uma concessionária, cobram-se tarifas que podem chegar a 30 mil reais por um pouso, por exemplo, sem contar os custos igualmente elevados para usar um dos 22 hangares privados do local, no Aeródromo Botelho, como é chamada a pista clandestina, a conta para os usuários frequentes é mensal e não passa de 5 mil reais. Aqueles que viajam a Brasília apenas eventualmente pagam de 200 a 400 reais pelo pernoite da aeronave. O preço inclui estadia para o piloto. Com a chegada dos clientes vips, alguns hangares se sofisticaram e agora contam com salas de espera com TV, ar-condicionado, sofás, banheiros e cozinha equipada.

Como muita coisa em Brasília, o aeroporto se expandiu à margem da lei e na base do jeitinho. A pista do aeródromo Botelho é homologada pela Anac, mas nem sequer poderia existir, pois ocupa uma área pública destinada apenas à produção agrícola. O Superior Tribunal de Justiça confirmou decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal nesse sentido.

A história do imbróglio remonta aos anos 1980. Os donos de uma fazenda de gado arrendaram, em 1982, área vizinha da propriedade rural, à margem da uma rodovia distrital, para plantar grãos. Em 2006, a família construiu e registrou uma pista de pouso para uso próprio. Ela seria destinada apenas a pouso e decolagem de aviões agrícolas, na pulverização de lavouras. Logo surgiram interessados em usar a pista para as mais diversas finalidades. Os fazendeiros perceberam a oportunidade de fazer dinheiro e venderam lotes para a construção de hangares. Em 2013, já havia 65. Proprietária da área, a Agência de Desenvolvimento de Brasília, a Terracap, ajuizou, em 2014, uma ação de reintegração de posse da área. Em maio de 2016, a Justiça autorizou o órgão do governo do DF a retomar o imóvel. Mas a família queria indenização pelas obras feitas no terreno público. Advogados falavam em 45,1 milhões de reais pelo que consideravam benfeitorias — a pista e os hangares construídos onde antes havia apenas cerrado virgem — e mais 8,3 milhões de reais por danos morais. Perderam nas duas instâncias do tribunal local e, em maio último, o STJ encerrou o caso, negando o pedido.

O governo de Brasília anunciou a intenção de legalizar e fazer funcionar o aeroporto por meio de uma parceria público-privada. A ideia é entregar à iniciativa privada os 977 hectares do empreendimento. Oito empresas e consórcios apresentaram interesse no negócio. Há duas semanas, a Terracap assinou um contrato com a Infraero. Por enquanto, o Estado se faz presente no aeródromo apenas por meio de uma faixa com a logomarca da Terracap estendida em uma cerca de arame farpado.

Se depender do governador Ibaneis Rocha, feliz proprietário do turboélice King Air de 8,2 milhões de reais que pousa e decola dali, depois de regularizado, o aeroporto será batizado com o nome de Joaquim Domingos Roriz, em homenagem ao velho coronel local morto no ano passado, que ganhou fama pelo envolvimento em escândalos de corrupção e pelas políticas populistas que incluíam o incentivo às invasões de terras como aquelas da pista de pouso.

Em tempo: Crusoé perguntou ao gabinete do deputado Bezerra Filho por que ele estava utilizando o jato de um empresário. Não houve resposta. Nem dele nem do dono da aeronave, também procurado. Na quarta-feira, 25, surgiu mais uma novidade da operação da qual o parlamentar é alvo: na casa dele, a PF apreendeu 120 mil reais, sendo 55 mil reais em dinheiro vivo, divididos em envelopes bancários.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO