RuyGoiaba

Carluxo é o maior escritor de vanguarda do Brasil

27.09.19

No tempo em que os animais falavam e os blogs ainda tinham status de grande novidade no Brasil (a palavra vinha sempre acompanhada daquele parêntese didático “vem de weblog, um tipo de diário na internet” etc.), eu escrevi um texto chamado O Homem que Sabia Djavanês. Tratava-se, é claro, de uma paródia do conto de Lima Barreto, com as imperscrutáveis letras de Djavan como personagens principais. Apesar de ter sido publicado no livro do portal de que eu participava na época (Wunderblogs.com, lançado em 2004), o textículo circulou por aí sem minha assinatura e até atribuído a gente como Luis Fernando Verissimo — para o provável desgosto do escritor gaúcho.

Pois bem: passada uma década e meia, o djavanês, língua que nos legou versos como “obi, obi, obá/ que nem zen, czar/ shalom Jerusalém, z’oiseau”, foi largamente superado pelo carluxês — idioma em que o filho 02 do presidente da República se espreme, ops, se exprime diariamente no Twitter e que guarda apenas uma semelhança muito vaga com o português.

Os detratores de Carlos Bolsonaro se negam a admitir que, como escreveu meu amigo Rafael Capanema no UOL, 02 é o escritor contemporâneo mais fascinante do Brasil. Vou mais longe: Carluxo é hoje nosso maior escritor de vanguarda, porque cumpre o principal requisito da literatura vanguardista, que é o leitor comum não entender coisíssima nenhuma. Paul Valéry escreveu que, depois do simbolismo, a literatura se tornou uma arte baseada “no abuso da linguagem — isto é, baseia-se na linguagem enquanto criadora de ilusões, não na linguagem como meio de transmitir realidades”. Quem há de negar que isso é uma descrição EXATA dos posts torrenciais de Carluxo no Twitter?

Vejam, por exemplo, este tuíte de 20 de setembro: “De volta ao Rio de Janeiro após recuperação de mais uma cirurgia em detrimento de uma facada que meu pai levou de um militante de esquerda”. O que parece analfabetismo funcional (uma cirurgia em prejuízo da facada? “Coitada da facada”, é essa a ideia?) na verdade é um uso ousado da linguagem, igualzinho ao que Vinicius de Moraes fez quando transformou “posto que”, que significa “embora”, em “porque” naquele soneto célebre (“que não seja imortal, posto que é chama”). Alguém aí se atreveria a chamar o Poetinha de analfabeto? Hein, hein?

A pedra filosofal de Carluxo transmuta português em carluxês por onde quer que passe: “Li num livro: os ratões venderam para alguns cervos que controlam SP, que tinham gerência sobre algo que nunca tiveram” (hein?). “Enquanto isso o Executivo refém dos avanços que a população quer, seja no Congresso, seja na Justiça” (sacanagem desse povo fazer o Executivo de refém). “O Brasil tem pressa e a orquestra de avisados e desavisados toca redondinha todo dia forçando a narrativa de culpa do presidente Bolsonaro, mediante a ansiedade por mais melhoras da população” (tem que melhorar essa população daí, talquei?).

Mais pedras preciosas do Carluxistão, esse país onde pontuação é frescura: “Presidente (…) defende excludente de ilicitude para agentes de segurança pública e cidadãos comuns, para que possam se defender diante de uma bandidagem cada vez menos preocupada em matar com requintes de crueldade, pois sabem que nada acontecerá com eles”. Li esse período proustiano e fiquei em dúvida: a bandidagem deixou de se preocupar em matar com os requintes de crueldade e agora só mata numa relax, numa tranquila, numa boa?

Na boa, o Joyce do Finnegans Wake (“riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay” etc.) é brincadeira de criança comparado a Carluxo. Nosso gênio acusa os “isentões liberais” de mentir para atingir os adversários e depois completa: “Obviamente nada mencionado refere-se à perfeição, mas em relação a tentativa proposital de um jogo sujo!” (que “perfeição”? De que diabos o senhor está falando? E cadê a segunda crase?). Ou mete um “os outros, que no caso são eles mesmos”, que um Rimbaud chapadão de absinto e haxixe assinaria tranquilamente embaixo (“je est un autre”).

Nem vou entrar no mérito das obsessões do escritor (“isentões”, “calcinhas encravadas”, “ratos”, “cervos”, “pavões” etc.). Em verdade vos digo: daqui a dez séculos, quando não houver mais Brasil, arqueólogos se dedicarão a decifrar o Twitter de Carluxo como Pedra de Roseta desta estranha civilização. E também não vão entender coisíssima nenhuma. Tirem suas conclusões!

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A GOIABICE DA SEMANA

“Ah, não acredito que você vai falar mal da menina Greta!” Vou, porque meu coração de goiaba é cheio de fel. Afinal, Greta Thunberg grita “vocês roubaram a minha infância!” vinda de um país em que a renda per capita é de 50 mil dólares (ah, ela admitiu depois que é sortuda? Tá bem, anotado), e isso imediatamente me dá ganas de jogá-la na África subsaariana, em uma favela aqui do Rio ou até no pátio da inexistente, mas factível, Escola Estadual Charles Bronson para ela ter uma noção um pouco mais abrangente do que é “infância roubada”.

Mas a goiabice maior é de quem encara a adolescente como uma espécie de Joana d’Arc da causa ambiental, que só pode ser contestada por quem for intrinsecamente mau (gonzaguismo: “eu fico com a pureza da resposta das crianças”). Desloca-se o tema, importantíssimo e complexo, do campo do debate com argumentos para o da identificação emocional com a ativista juvenil — vale também, é claro, para a turma oposta, a do “ódio a Greta”. Nada disso resolve problema concreto nenhum, mas resolver problemas é chato e nem sempre dá essa sensação gostosinha de estar do lado do bem.

De todo modo, como disse outra amiga, a roteirista Dani Garuti, Deus me livre de encontrar Greta num elevador e comentar algo do tipo “calor, né?”. Seria no mínimo meia hora de discurso, dedo na cara e “como você ousa?”.

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AVISO DE FÉRIAS

Deixo a melhor notícia para o final: vocês ficarão livres de mim por todo o mês de outubro. Até a volta, se ainda existir um Bananão quando eu voltar.

ReproduçãoReproduçãoGreta, Greta, Gretinha. Eu ia lhe chamar enquanto corria a barca (sustentável)

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