A resistência
“O senhor é um homem de carreira bem-sucedida. Por que vai se comprometer com a velha política? O senhor não nos representa”, disse o senador Oriovisto Guimarães, de primeiro mandato, ao secretário-geral da Mesa do Senado, Luiz Fernando Bandeira de Mello. A conversa ocorreu em uma reunião a portas fechadas em uma sala num dos subsolos do Senado. O próprio Bandeira havia pedido o encontro. Incomodara-se com os ataques que alguns senadores vinham fazendo a ele por sua atuação no Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, em favor de uma severa punição ao coordenador em Curitiba da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, pelo teor de seus diálogos roubados do seu Telegram. Bandeira, cujo posto de conselheiro no órgão foi conquistado graças ao apoio de Renan Calheiros, a quem até hoje é ligado, ouviu as críticas e fez uma promessa: não permitiria qualquer avanço das representações contra Deltan até que o conselho fosse renovado. Cumpriu a promessa, mas ajudou a operar com senadores a retirada do CNMP de dois conselheiros favoráveis ao procurador da Lava Jato.
O episódio foi um dos marcos da atuação do grupo Muda, Senado, cujo manifesto lançado em agosto conta hoje com 21 signatários que têm por objetivo levar para dentro da casa a agenda das ruas. A instituição do voto aberto para todas as votações, o fim do foro privilegiado, a instalação da CPI da Lava Toga, o andamento de pedidos de impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal, a mudança no formato de nomeações da corte, a redução dos gastos do Congresso e a defesa da Operação Lava Jato são as pautas principais que unificam o grupo. Além, claro, da oposição cada vez mais assertiva contra o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Algo notável, uma vez que todos ali o apoiaram na histórica eleição interna de fevereiro em que ele derrotou Renan Calheiros.
O apoio, porém, foi se desfazendo logo nas semanas subsequentes à eleição, à medida que Alcolumbre passou a se alinhar a chamada velha guarda do Senado. Hoje, ela tem como próceres Renan Calheiros, o líder do MDB, Eduardo Braga, o presidente do PP, Ciro Nogueira, o líder do governo, Fernando Bezerra Coelho, a senadora Kátia Abreu e o líder do PT, Paulo Rocha. O primeiro passo do alinhamento ocorreu quando Alcolumbre propôs que Bezerra fosse o líder do governo. Depois, quando passou a rejeitar compromissos assumidos com antigos aliados durante a sua campanha interna. Não pautou, por exemplo, a proposta de emenda constitucional que estabelece o voto aberto para todas as votações da casa, não reduziu gastos, não reviu contratos suspeitos, não investigou a fraude na eleição para a presidência do Senado (em que foi inserido na urna um voto a mais) e manteve nos cargos todos os altos burocratas da casa ligados a Renan. Mas foi na sua aliança com a cúpula do STF que, de fato, se deu o divórcio com os seus outrora aliados. Enquanto o grupo que o elegeu defendia um embate com os ministros da corte, em especial os contrários à Lava Jato, Alcolumbre estabeleceu um pacto com eles e passou a barrar todos os pedidos que colocassem em xeque as atuações do togados. O caso mais evidente é a CPI da Lava Toga, idealizada para investigar alguns dos episódios suspeitos que os envolvem, como a mesada que Dias Toffoli recebe de sua esposa ou o modelo de negócio do Instituto de Direito Público de Gilmar Mendes.
“Davi é uma grande decepção”, disse a Crusoé Oriovisto Guimarães, do Podemos do Paraná, o mesmo senador que peitou Bandeira de Mello. Empresário bem-sucedido, é o segundo mais rico do Congresso. Tem patrimônio declarado de 239 milhões de reais, advindos de sua participação no Grupo Positivo, um gigante do setor de educação que ajudou a fundar nos anos 1970. Há cinco anos, passou o comando a sócios e filhos e, em 2018, decidiu entrar na política na esteira do acirramento do combate à corrupção que provocou uma das maiores renovações no Legislativo nacional – só no Senado, dos 54 eleitos, 46 são novatos (85% das cadeiras em disputa). Para ele, há um jogo combinado de proteção mútua entre o Congresso e o STF. “O foro privilegiado é o que une o STF e o Congresso. O Congresso depende do STF para que seus processos não andem lá e o STF depende do Congresso para que nada os atinja aqui”, disse.
O Muda, Senado passou a promover reuniões semanais e a elaborar estratégias de atuação conjunta. Fizeram, por exemplo, um abaixo-assinado pedindo ao presidente Jair Bolsonaro que vetasse integralmente a Lei de Abuso de Autoridade, aprovada pelo Congresso. Atuaram para que toda a proposta que instituía benefícios aos partidos, referendada pela Câmara, fosse desidratada no Senado. Também deram início a obstruções de votações-chave no plenário, como a que impediu a recondução de dois conselheiros favoráveis à Lava Jato no CNMP. Foi nessa votação, inclusive, que ganharam um aliado simbólico no processo: Randolfe Rodrigues, amigo e um dos principais articuladores da eleição de Alcolumbre na eleição interna de fevereiro. Randolfe rompeu com o antigo aliado depois que Alcolumbre pautou a votação sem ter, segundo ele, negociado a pauta com a maioria dos senadores. As conversas diárias entre ambos cessaram. Não se falam há mais de duas semanas. A Crusoé, Randolfe disse que foi Alcolumbre que se afastou do grupo que o elegeu: “Não fomos nós que rompemos com ele, foi ele que rompeu conosco”.
Nesta semana, o distanciamento em relação ao Muda, Senado ficou mais claro quando Alcolumbre e mais de 20 senadores da velha guarda se reuniram em um jantar na residência oficial do presidente do Senado, na segunda-feira, 23, para tratar da estratégia de defesa de Fernando Bezerra, alvo de uma operação da Polícia Federal na semana passada, em seus gabinetes no Congresso, autorizada pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso. Ele é suspeito de, juntamente com o filho, ter recebido mais de 6 milhões de reais de propina em obras públicas no Nordeste, como a de transposição do rio São Francisco. No jantar, do qual participaram integrantes do PT ao MDB, definiu-se que seria apresentado um recurso ao Supremo pedindo que a decisão de Barroso fosse validada pelo plenário. E mais: que todos levariam o documento pessoalmente ao presidente da corte, Dias Toffoli, no dia seguinte.
É a junção desses dois segmentos que se uniram para eleger Alcolumbre que deve ser determinante para confrontá-lo daqui em diante. Por sua vez, o presidente do Senado busca agora consolidar uma maioria que tem como eixo central as velhas raposas da casa. Com ela, quer aprovar uma emenda constitucional que permita sua recondução ao cargo em 2021 (delegou a elaboração e coleta de assinaturas da proposta ao senador Lucas Barreto, seu conterrâneo do Amapá). Aposta muito também na relação próxima com o Palácio do Planalto, para facilitar o acesso de senadores aos recursos federais, pavimentando desse modo o caminho para mais dois anos de gestão. “Com a estrutura que o Davi montou, ele já construiu uma maioria na casa”, disse a Crusoé o senador Ciro Nogueira.
É com essa mesma maioria que Alcolumbre pretende esvaziar a oposição interna. A instalação do Conselho de Ética nesta semana, depois de oito meses do início da legislatura, foi um sinal de que ele pretende retaliar. O próprio Alcolumbre indicou essa disposição a alguns senadores, em reunião recente no gabinete da liderança do PSDB para tratar de reforma tributária. Segundo os presentes, ele disse que entraria com representação contra parlamentares que fizeram declarações que considerou agressivas contra o presidente do Senado. Rumores sobre dossiês acerca da situação fiscal das empresas de senadores do grupo começam também a circular nos corredores da casa. Isso ajudaria a entender porque apenas dois integrantes do Muda, Senado conseguiram entrar no Conselho de Ética. Um dado, aliás, chama a atenção: dos 14 indicados pelos partidos para o Conselho, seis enfrentam processos por crimes como caixa dois, corrupção, lavagem de dinheiro e peculato.
Alcolumbre não quis falar com a reportagem sobre o Muda, Senado. Questionado, o líder do MDB, Eduardo Braga, disse desconhecê-lo. “O que é o Muda? Não posso falar sobre algo a que não fui apresentado”. O líder do PT, Paulo Rocha, criticou: “O discurso do novo na política é hipócrita.” Renan Calheiros falou mais longamente. “Deveria se chamar ‘Muda, Supremo’ porque o que querem é interferir em outro poder. Pela temática deles, esse deveria ser o seu nome. Querem mudar até o regimento do Supremo”, afirmou. Em seguida, teceu elogios a Alcolumbre: “Davi está conduzindo o Senado muito bem. A rejeição aos vetos da Lei de Abuso de Autoridade foi o momento mais significativo de sua presidência. Ele foi eleito em uma eleição indiscutível e hoje é o presidente do Senado. Não pode representar grupos. Ele tem sido amplo, por isso está indo bem”. Renan é Alcolumbre; Alcolumbre é Renan. Outros senadores avaliam que o grupo promove movimentações apenas para satisfazer os seus eleitores nas redes sociais.
O fato é que o embate deve intensficar-se. O Muda, Senado começou nesta semana uma aproximação com os movimentos de rua que foram determinantes para o impeachment de Dilma Rousseff. Na tarde de quarta-feira, 25, os senadores caminharam juntos até a praça dos Três Poderes para participar de uma manifestação organizada por 44 desses grupos. Nos discursos e nas faixas, o alvo principal era o STF. Alguns arremessaram tomates e ratos de borracha em direção ao prédio da corte, fortemente protegida por policiais. Em menor grau, Alcolumbre e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também foram criticados. Na manhã seguinte, os senadores se reuniram com representantes do Movimento Brasil Livre e do Vem pra Rua, dois dos maiores do país, para acertar uma aproximação. Horas depois dessa reunião, Deltan Dallagnol se reuniu com os parlamentares do Muda, Senado, na residência da senadora Selma Arruda, que deixou recentemente o PSL por discordar da pressão de Flávio Bolsonaro para que ela retirasse a assinatura da CPI da Lava Toga. A conversa durou 40 minutos. De acordo com um dos presentes, o procurador os municiou com “alguns segredos” sobre o STF.
Os senadores do Muda também pretendem estimular a formação de um grupo semelhante na Câmara, onde a agenda de combate à corrupção enfrenta dificuldades muito maiores. Por ter muito mais integrantes (513 deputados, contra 81 senadores), há grandes dificuldades de que algo similar seja organizado. O controle das lideranças partidárias sobre a bancada também é intenso, ao contrário do que ocorre no Senado, onde, como se costuma dizer em Brasília, “cada senador é uma entidade”. A renovação na Câmara também foi menor que no Senado (47% da Câmara, contra 85% do Senado) e os parlamentares que vieram na onda de apoio à Lava Jato evitam grandes confrontos políticos nesta área. É o caso da líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, e de Carla Zambelli, liderança do Nas Ruas, duas das mais governistas da casa. Há um grupo desorganizado na Câmara que apoia a agenda do Muda, Senado, mas ela não passa de 70 deputados (13% do total). Se a Câmara não mudar também, nada mudará no país.
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