MarioSabino

Podcasts contra Hitler

20.09.19

De segunda a sexta, sou obrigado a ouvir gravações da minha voz, o que está longe de ser exatamente uma boa experiência: não gosto do meu timbre, minhas cordas vocais já mostram os primeiros sinais de envelhecimento, não consigo casar o ritmo das frases com a respiração e, percebo agora, estalo a boca. Tudo isso seria de somenos se eu tivesse realmente algo de relevante a dizer sobre o nosso dia a dia. Continuarei tentando.

Faço podcasts porque o gênero entrou no cardápio obrigatório dos sites de notícias. Se você não faz podcasts, reclamam. Felizmente, os meus colegas de O Antagonista+ são ótimos quando falam. Têm naturalidade e sempre discorrem sobre temas que chamam a atenção. Podcasts são um desdobramento de programas de rádio e, ao que parece, ideais para escutar no carro. Ando muito pouco de carro, e prefiro ouvir música enquanto estou ao volante. É uma forma de fugir por um momento do pesadelo da política brasileira. Tendo a crer que os meus podcasts duram três quarteirões, no máximo, se o trânsito estiver livre.

Comecei por podcasts para chegar a Thomas Mann, o escritor alemão. Montanha Mágica, Os BuddenbrooksDoutor Fausto, Carlota em Weimar, Tônio Kroeger. Eram romances quase obrigatórios de se ler. A condição de escritor muito lido, admirado e ganhador do Nobel quando o Nobel não era dado a compositores fez de Thomas Mann uma das vozes mais poderosas contra o nazismo. Refugiado nos Estados Unidos, ele gravava uma vez por mês discursos contra Hitler, que eram transmitidos em ondas longas para a Alemanha pela inglesa BBC. Ondas longas eram as únicas que, do exterior do Reich, alcançavam o território alemão e os países sob o jugo nazista. Thomas Mann sempre iniciava os seus discursos com um épico “Ouvintes alemães!” — título do livro que reúne as suas falas.

Os discursos foram transmitidos de 1940 a 1945. Eram escutados clandestinamente, óbvio, e consta que até Hitler estava entre os seus ouvintes. Thomas Mann certamente ficaria espantadíssimo com o fato de hoje um podcast gravado num telefone poder ser ouvido por uma multidão em questão de segundos, não importa o lugar do mundo. No prefácio à primeira edição, de 1942, que reúne 25 discursos, ele conta como a sua voz chegava aos alemães:

“No início, as transmissões eram realizadas da seguinte maneira: eu telegrafava meus textos para Londres, onde eram lidos por um funcionário da BBC que falasse alemão. Por minha sugestão, um método mais complicado, porém mais direto e, portanto, mais simpático, foi logo adotado. Tudo o que tenho a dizer é agora gravado no Recording Department da NBC, em Los Angeles; a gravação é enviada a Nova York por via aérea e então transferida, por telefone, para outra gravação em Londres, onde é executada diante do microfone. Dessa forma, não apenas minhas palavras, mas minha própria voz são ouvidas por aqueles que se atrevem à escuta clandestina.”

A coletânea dos seus discursos, lançada no Brasil pela Zahar, é emocionante mesmo para quem nunca leu ou lerá Thomas Mann. A primeira locução data de outubro de 1940. Vou reproduzir o primeiro parágrafo (quem sabe você se anime a comprar o livro):

“Ouvintes alemães! É um escritor alemão que vos fala, um escritor que, assim como sua obra, foi proscrito pelos governantes alemães, e cujos livros, mesmo que tratem daquilo que é mais alemão, de Goethe, por exemplo, só podem falar a povos estrangeiros e livres na língua deles, enquanto para vocês têm de permanecer mudos e desconhecidos. Minha obra retornará a vocês um dia, estou certo, mesmo que eu próprio não possa mais fazê-lo. Mas enquanto eu viver, e mesmo como cidadão do Novo Mundo, continuarei a ser um alemão e a sofrer pelo destino da Alemanha e por tudo aquilo que, por vontade de homens brutais e criminosos, aconteceu ao mundo nos últimos sete anos, moral e fisicamente. A inabalável convicção de que isso não pode ter um bom final sempre me inspirou declarações preocupadas nesse últimos anos, algumas das quais, creio, chegaram até vocês. Agora, com a guerra, não há mais, para a palavra escrita, qualquer possibilidade de atravessar a trincheira que a tirania abriu em torno de vocês. Por isso, agarro com satisfação a oportunidade que as autoridades inglesas me oferecem de contar a vocês, de tempos em tempos, o que vejo aqui nos Estados Unidos, o país grande e livre onde encontrei um lugar para morar.”

Os discursos radiofônicos de Thomas Mann — os melhores podcasts já gravados até agora — são grandiloqüentes, mas também mostram vez ou outra uma ira de rede social. Em abril de 1945, ele se lança contra a celebração de Hitler pela morte do presidente americano Franklin Delano Roosevelt. Um Thomas Mann furibundo lembra que até os japoneses, aliados dos nazistas e causadores de batalhas cruentas no Pacífico contra os americanos, haviam demonstrado respeito ao desaparecimento do líder inimigo. Eis um parte da ira:

“É bastante vergonhoso, seu estúpido assassino dos povos, que ele tivesse de ir e você ainda viva! Como é possível que você ainda viva? Enquanto ele se transformou em espírito, você é somente um fantasma. Esconda-se ainda por algum tempo no buraco que seus colaboradores cavaram! Seus dias estão contados, eles já estavam contados quando esse adversário se levantou contra você, e mesmo morto lhe será terrível.”

Hitler morreu no buraco e Thomas Mann nunca mais voltou a morar na Alemanha. Dizia-se portador de um “germanismo cosmopolita”, que se manifestara desde cedo e se acentuara durante o exílio. Ele também receava deixar-se usar politicamente, para depois ser “desmoralizado, extenuado, suspeito em toda parte” e “então encontrar o final de um tolo”. Thomas Mann, no entanto, seria desmoralizado, extenuado, suspeito em toda parte nos Estados Unidos que lhe eram tão caros e o acolheram — ele finalmente se naturalizou americano depois de ter sido destituído da cidadania alemã. Por causa da perseguição macartista, Thomas Mann acabou se estabelecendo na Suíça, onde morreu no que chamava de seu “segundo exílio”.

Apesar de ser um conservador de estirpe prussiana (bem como um moralista que tentava refrear a própria homossexualidade), Thomas Mann entrou para a lista negra do macartismo por ter criticado a insensatez do Comitê de Atividades Antiamericanas. Ele ainda cometeu o pecado de dizer que havia uma diferença entre o comunismo soviético e o nazismo alemão. Jamais flertou com o totalitarismo de ambos os regimes, mas não enxergava no primeiro o que via o segundo: um “diabólico nihilismo”. Passou, assim, a ser chamado de comunista e perseguido como tal. No livro Os Irmãos Mann — As Vidas de Heinrich e Thomas Mann, lançado no Brasil pela Paz e Terra muitos anos atrás, o inglês Nigel Hamilton transcreve o trecho de uma carta que o autor escreveu ao biógrafo Walter H. Perl, em 1950:

“Jamais poderei endossar o Estado totalitário. Mas, aqui, uma porção de pessoas se encontram a caminho de se tornarem mártires — a saber, aqueles que se opõem à destruição da democracia, processo que está em pleno curso com o pretexto de protegê-la. Não lhe soa assustadoramente familiar, assustadoramente parecido com a Alemanha?”

O extremista de direita, o bolsonarista, o socialista fabiano, o comunista, o isentão aqui agora tem de gravar mais um podcast.

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