RuyGoiaba

Oh, não, mais um texto sobre ‘Bacurau’

20.09.19

“É sério que você vai usar sua coluna na Crusoé para falar desse filme que só dá rima rica?”, pergunta meu 0,5 leitor. Sim, é sério, meu caro 0,5 leitor. Ninguém aguenta mais ler sobre Bacurau; na imprensa e nas redes sociais, tudo o que pode ser dito sobre o filme — e o contrário — já foi dito. Mas este texto, para manter a rima com “bacanal”, terá um diferencial: não vi o filme nem pretendo vê-lo tão cedo. Já falaram tanto dele que me dispensaram de ver.

(Vou mais longe. Não ver/ler/ouvir aquilo que se critica é o único modo 100% seguro de escapar da sufocante tirania das “intenções do autor”. E, como diz um amigo, assistir ao filme, gostar ou desgostar dele, prejudica o distanciamento necessário a uma análise que se pretende desapaixonada. O resto é preconceito de vocês, que não acreditam em reiki nem em crítica pela imposição de mãos, para sentir as vibrações da obra. Fecha parêntese.)

Na verdade, a intenção não é escrever sobre o filme, e sim sobre as reações curiosas que ele tem suscitado. Minha anticrítica é a seguinte, dois-pontos:

1) A distinção entre representação e realidade foi para o beleléu

Leio que Bacurau, baseado em um clichê clássico dos westerns (cidade é ameaçada por forasteiros), é um filme violento e, sendo assim, incentiva a violência. Essa ideia já é, em si, idiota. Está no mesmo nível de argumentar que 50 Tons de Cinza — que acho um livro péssimo, mas não vem ao caso — “incentiva a submissão feminina” ou do velho clichê de que videogames provocam violência. Jogos e obras de ficção tratados como MANUAIS ou, no mínimo, conselhos do que fazer diante de determinadas situações: vocês estão fazendo errado. E aposto que ainda se acham no direito de rir da velhinha que xinga a atriz X na rua porque ela interpretou a vilã da novela.

(Não é exclusividade nossa, mas é o tipo de idiotice que o Brasil adora importar. Lá fora, há toda uma discussão sobre Coringa, com Joaquin Phoenix, cujo roteiro explica a transformação do personagem em um psicopata pelos sofrimentos de sua vida pregressa. O argumento é que, em uma época de massacres, não se pode “justificar” ações de assassinos dizendo que, coitadinhos, eles sofreram tanto na infância. Ou seja, é gente alegadamente com mais de dois neurônios condenando um filme por dar MAU INZEMPLO.)

2) Os chihuahuas têm sede de sangue

“Olhe aqui, eu sei direitinho a diferença entre realidade e representação, tá? Bacurau é uma metáfora da barbárie que assola o Brasil e da reação necessária ao atual estado de coisas.” Muito bem, pequeno gafanhoto, notável sofisticação intelectual a sua. Na verdade, lá no fundo, você também acha que Bacurau incentiva a violência — só que para você isso é bom. Não há diálogo com fascistas; violência é resistência, e acabaremos todos assassinados se não resistirmos. Enfie o “mais amor por favor” e o “ninguém solta a mão de ninguém” lá onde o sol não bate; aqui é guerra, tá pensando o quê?

O engraçado é que tenho lido esse tipo de coisa em perfis de certa elite de esquerda que é tão elite quanto a “esquerda cirandeira” que condena: acredito que, em caso de motim canibal, o povo faminto teria certa dificuldade para distinguir entre uma perninha de gente rica e outra. Também vi pessoas respondendo que, bom, se “reação à violência” justifica tudo, as milícias do Rio também devem se sentir justificadas, assim como o bolsonarismo (“reação à violência dos 60 mil homicídios por ano”). E o que aconteceu com quem fez comentários desse tipo? Claro: foi desamigado, bloqueado, talvez levasse um jato de Baygon na cara se essa possibilidade existisse no mundo virtual.

Os floquinhos de neve dizem querer uma violência purificadora, uma reação à altura da barbárie ou lá o que seja, mas sua pele é tão fina que não suporta nem UM comentário negativo em rede social. Bacurau talvez ofereça o tipo de catarse de que eles precisam, mas a distância entre o, ahn, “ímpeto revolucionário” desse povo na internet e a realidade é a mesma que há entre Robespierre e um chihuahua particularmente estridente. Sorte nossa.

3) “Falem mal, mas falem de mim!”

O que eu acho mais bonitinho nessa história toda é o otimismo de quem diz “ah, goste-se ou não de Bacurau, pelo menos o cinema brasileiro voltou a ser discutido, e é isso que importa”. Meu amigo: se você está falando da imprensa, o papel aceita tudo, e a internet tudo e mais um pouco. Se é das redes sociais, outro dia mesmo testemunhei nelas acaloradíssima discussão sobre um vídeo em que, aparentemente, a cantora pop Demi Lovato soltava um pum — depois ficou provado que era montagem. Absolutamente NADA neste mundo é desimportante o suficiente para não suscitar alguma treta de internet.

Mas vamos festejar com bandas e fanfarras: finalmente, o cinema nacional voltou a ser relevante nas redes a ponto de provocar tanto debate quanto um peido da Demi Lovato. (Longe de mim sugerir que as duas coisas estejam no mesmo nível artístico, é claro. Mas um dia a gente chega lá.)

***

A GOIABICE DA SEMANA

Hoje é semana de tríplice empate, e tem goiaba para todos os gostos e matizes ideológicos. Temos Jair Bolsonaro festejando o afundamento de dois navios na costa de Pernambuco, para turismo de mergulho, e vaticinando que “muitos naufrágios virão pelo Brasil” (tu o disseste, Jair). Temos também aquela turma que acha um horror as fake news do “kit gay” e da mamadeira de piroca espalhando que Michel Temer — nosso satanista favorito — admitiu que houve “golpe” em sua entrevista ao Roda Viva (não, ele não admitiu).

E temos Augusto Aras, o novo PGR, prometendo disseminar a “boa Lava Jato”. A operação parece ter atingido o mesmo status do colesterol, que tem do bom e do ruim: em breve dirão que o colesterol bom é ainda pior.

Reprodução/TV CulturaReprodução/TV CulturaO ex-presidento Temer no centro do pentagrama invertido –digo, do Roda Viva

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