Vagner Rosário/Crusoé"Com todo o respeito ao Judiciário, vemos ganhar fôlego decisões que vão prejudicar o andamento das investigações"

‘A Lava Jato está sendo desidratada’

O procurador Deltan Dallagnol diz que a sociedade parece cansada da pauta anticorrupção, o que favorece a ação dos detratores da operação, vê esquemas "sofisticados" no Judiciário e afirma que, quanto à sua entrada na política, o futuro a Deus pertence
20.09.19

Quem se acostumou a ver o procurador Deltan Dallagnol falante nas entrevistas coletivas ao final de cada fase da operação, atacando sem meias palavras a corrupção sistêmica incrustada nos órgãos públicos brasileiros e com disposição para confrontar quem contestava os métodos de investigação da Lava Jato, pode ter alguma dificuldade para reconhecê-lo agora. Cinco anos e meio depois do histórico 17 de março de 2014, dia da prisão do doleiro Alberto Youssef e marco da maior investida contra corruptos da história do Brasil, e agora no centro da crise surgida com o vazamento de mensagens roubadas que trocava por meio do aplicativo Telegram, Deltan parece mais magro e muito cansado. O procurador aparenta não ter mais o mesmo vigor de outrora e calcula cada frase que vai pronunciar, temendo novas complicações no Conselho Nacional do Ministério Público, onde é alvo de procedimentos administrativos e reclamações disciplinares.

O coordenador da Lava Jato no Paraná recebeu Crusoé nesta semana, na sede da força-tarefa, no centro de Curitiba. Falou sobre tudo que envolve a operação neste momento em que ela sofre o maior de todos ataques. Além das mensagens roubadas — que, diz ele, transformam-se em mordidas que fazem sangrar a operação e atraem “tubarões” interessados em matar a investigação —, o procurador falou sobre o aparente acordão em curso em Brasília, a nomeação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República e explicou por que o Poder Judiciário e o setor bancário passaram incólumes pelas dezenas de fases da operação. Para Deltan, há corrupção nos tribunais, sim, mas escondida em esquemas sofisticados. Sobre os bancos, embora admita tratar-se de um front pouco explorado, ele diz que há investigações em curso, apesar de avançarem mais lentamente. A seguir, a íntegra da entrevista, concedida ao final de um dia de expediente, pouco antes de o procurador seguir para casa na companhia de dois seguranças destacados para protegê-lo.

Depois de passar por governos do PT e do MDB, partidos com os quais travou e ainda trava grandes embates, a Lava Jato continua, mas justo agora tem sofrido suas principais derrotas, em um governo eleito com a bandeira do combate à corrupção. Como o sr. analisa este momento da operação?
A corrupção política sempre prosperou em nosso país. Não é de hoje ou ontem, é de um século atrás, com coronelismo, voto de cabresto etc. Escândalos como o dos anões do orçamento, o caso PC Farias… A Lava Jato é o rompimento de uma história de impunidade das elites que, em parte, são corruptas e desenvolveram um capitalismo de compadrio. A Lava Jato, que, mais do que um processo, é uma atitude que passou a guiar vários agentes da lei, com grande força da sociedade, surgiu como um dos grandes movimentos da história, irrefreável. Mas várias vezes, ao longo desses anos, as pessoas perguntavam quando essa pauta iria cansar. Acho que a pauta do combate à corrupção cansou. Soma-se a isso o fato de nossos processos em Curitiba não envolverem pessoas da cúpula do poder, o que dava mais visibilidade. Quando isso ocorre, vêm os vazamentos de mensagens de forma deturpada. Isso cria um clima para ataques e retrocessos. Surge uma brecha, e a sociedade está atenta a outras pautas. Assim, os donos do poder encontram espaço para a reação. Quando eles percebem que a Lava Jato foi possível por meio de instrumentos que eles mesmo criaram, tentam modificá-los, e é o que estamos vendo agora.

A reação parece partir dos Três Poderes. Decisões do STF, mudanças legislativas e ações do Executivo com mudanças em órgãos estratégicos. Acredita haver um acordão em curso para barrar as investigações?
Ao longo da Lava Jato, muitas vezes se falou em acordão para abafar as investigações, sempre buscando significar um movimento de parte das elites no poder para barrar as apurações. Quando você observa a história do Brasil, percebe que as elites sempre se rearranjaram para se manter no poder e para continuar a fazer o que sempre fizeram. O movimento de Independência não foi de cidadania, foi das elites se rearranjando. O movimento pela República também. A construção da cidadania no Brasil é lenta e se fortaleceu muito. O maior legado da Lava Jato é o fortalecimento dessa cidadania. Mas esse rearranjo das elites sempre aconteceu. A relação entre dinheiro e poder político é muito estreita. Dinheiro significa número de votos. Muitos políticos estão lá porque receberam grandes valores de empresas atingidas pela Lava Jato. Temos várias lideranças, que tiveram esquemas revelados pela Lava Jato, com força para promover essa reação. Existem muitos movimentos reativos. No Congresso, eu falaria da lei de abuso de autoridade, da tentativa de criação da CPI da Lava Jato, da lei de financiamento eleitoral, da desidratação do projeto anticrime. No Judiciário, há entendimentos que, com todo o respeito aos tribunais e a sua importância para a democracia e às instituições, vemos ganhar fôlego para prejudicar o andamento das investigações e dos processos. Como a decisão que deve ser tomada pelo STF de proibir prisão após segunda instância, a que impede troca de informações com Coaf e Receita e a anulação da sentença do caso Bendine (refere-se a Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil). Isso gera um ambiente desfavorável para as investigações.

A decisão do ministro Dias Toffoli que proibiu o compartilhamento de dados do Coaf e da Receita foi um pedido do próprio filho do presidente Jair Bolsonaro. Não é um paradoxo, já que o presidente foi eleito exaltando o combate à corrupção?
Nós gostaríamos que esse tipo de decisão, que ao nosso ver é equivocada e cria um ambiente menos propício para o avanço do combate à corrupção, não acontecesse em qualquer governo e que os Três Poderes da República, depois de tudo que a Lava Jato revelou, trabalhassem arduamente para que esses fatos não se repitam. Se nada for feito, essa grande corrupção vai se repetir, e logo. Porque o ambiente não mudou e porque a Lava Jato está sendo desidratada.

Internamente, no Ministério Público Federal, houve mudanças. A Lava Jato passou por Rodrigo Janot, Raquel Dodge e agora Augusto Aras. O que esperar dessa nova gestão?
O mesmo que espero de qualquer procurador-geral da República: que ele atue de modo a preservar o que tem sido feito. Só no último ano, a Lava Jato recuperou 2 bilhões reais em acordos e tem outros em negociação. A Lava Jato tende a fazer até o final do ano mais denúncias do que já fez em qualquer outro ano. É um trabalho que ainda continua com todo o fôlego e, agora, depende do PGR, mantendo equipe, recursos humanos e materiais. Espero ainda que ele atue de maneira independente nas investigações e processos que tramitam no STF, de modo firme contra a corrupção, e espero que possa existir um trabalho coordenado entre a primeira e a última instâncias, para que possamos prestar o melhor serviço possível para a sociedade. Isso falando só de Lava Jato. O PGR também desempenha outras funções importantíssimas.

O senhor enviou um e-mail para colegas de MPF que foi interpretado como se estivesse referendando o nome de Augusto Aras e a escolha fora da lista tríplice.
Meu e-mail começa dizendo o contrário, que nós lutamos pela lista tríplice. Eu fiz uma série de manifestações em favor dela, inclusive após a escolha do procurador-geral, e vamos continuar lutando pelas listas, que são um processo saudável de filtragem e permitem que a sociedade conheça o histórico e os planos dos candidatos a procurador-geral. Contudo, escolhido o novo PGR e com todos indicativos apontando para sua confirmação no Senado, temos um jogo jogado. Agora, a grande questão não se trata de escolher o melhor PGR possível, mas sim de como ter o melhor trabalho possível, em favor da sociedade, com o procurador-geral escolhido. Foi nesse sentido que relatei que fiz contato com o novo PGR, com o objetivo de apresentar a intenção de fazer um trabalho coordenado — e ele expressou o seu apoio e compromisso em manter e até reforçar a atuação da Lava Jato.

Vagner Rosário/CrusoéVagner Rosário/Crusoé“A acusação e o juiz atuavam de forma independente, mas contatos sempre existiram, do mesmo modo que é lícito e legítimo contato entre advogados e juízes”
O sr. se predispôs a ser candidato à PGR, levando seu nome a colegas?
Nunca coloquei meu nome entre os colegas. Se pretendesse essa função teria participado do processo de formação da lista tríplice.  O melhor papel que tenho para desempenhar para a sociedade é aqui na Lava Jato, em Curitiba.

Que norte a força-tarefa mira daqui para a frente?
A Lava Jato poderia seguir por vários outros ângulos. Mas o STF limitou o trabalho da Lava Jato em Curitiba à Petrobras, Transpetro, BR Distribuidora, Belo Monte e mais alguns outros casos. Fora disso, temos declinado outros casos para outros juízes. Sementes da Lava Jato foram espalhadas pelo país. Desejamos que elas possam cair em solo fértil, crescer e se multiplicar como aqui. Isso aconteceu no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o trabalho vem sendo intensificado, mas é um processo que precisa ser expandido. Aqui (em Curitiba), temos algumas áreas de atuação, mas volta e meia alguma coisa é tirada daqui, como aconteceu no caso do Guido Mantega. Respeitamos a decisão, mas, a nosso ver, ela é equivocada. Temos áreas da Petrobras a serem exploradas: a área de afretamento, de trading, o setor de marketing da Petrobras e casos de pessoas com foro que vieram para cá.

Um dos setores nos quais a Lava Jato ainda não avançou como era de se esperar é o Judiciário. Esse poder está imune à corrupção?
Não está imune à corrupção. Nenhum setor, nenhum órgão, está imune à corrupção. Acredito, sim, que exista corrupção no Judiciário. Ao longo da vida, já vimos indicativos disso, inclusive em investigações, relatórios do próprio Coaf relativos a movimentações incompatíveis de pessoas vinculadas ao Judiciário. Agora, temos algumas hipóteses para explicar o fato de delatores não terem trazidos nomes do Judiciário. Uma delas seria a existência de filtro por parte de advogados que atuam frequentemente perante tribunais e poderiam barrar os delatores. Para evitar, sempre exigimos dos colaboradores que entregassem todos os fatos em relação a tudo sob pena de perder todos os benefícios. Mesmo assim, apareceu pouca coisa relacionada ao Judiciário. Outra hipótese é de que a corrupção no Judiciário é muito mais sofisticada. Ela estaria ligada, por exemplo, a escritórios de advocacia relacionados às vezes a parentes que teriam uma influência especial ou a uma abertura de entrada, a pagamentos de patrocínios milionários e assim por diante. A Lava Jato de Curitiba não tem competência para investigar esse tipo de crime, mas sempre buscou avançar. Quando surgiram indicativos de crimes de pessoas com foro privilegiado, enviamos tudo para as instâncias competentes.

E o sistema financeiro?
Temos que distinguir dois tipos de infrações. O primeiro é o envolvimento dos bancos, gerentes, de modo consciente na prática de crimes. Quando o gerente sabe que a pessoa é um lavador profissional, recebe os recursos e contribui para a lavagem. É um envolvimento criminoso. Nesse sentido, a Lava Jato já buscou apurar participação de pessoas e bancos em crimes. Já teve fase focada em corretoras de câmbios, já foram acusados gerentes e pessoas vinculadas ao Banco do Brasil e Caixa. Mais recentemente tivemos como alvos pessoas do Banco Paulista, inclusive próximos à direção do banco. No Rio de Janeiro já tivemos uma fase que envolveu pessoas do Bradesco. Tivemos uma fase relacionada ao banco BTG Pactual. Um segundo tipo de infração é mais sutil, ligado a falhas no sistema de compliance que permitiram a lavagem de dinheiro por meio do sistema financeiro. Esse tipo de irregularidade é muito mais sutil. Em relação a esse ponto, existem algumas apurações que vêm sendo feitas. Mas elas são quase inéditas, porque nunca vimos esse tipo de atuação sobre bancos antes no país. Ficou público recentemente que temos caminhado nesse sentido.

Há dois meses mensagens roubadas do Telegram são divulgadas. Qual tem sido o impacto disso na Lava Jato?
A veiculação dessas mensagens, em conjunto com a descontextualização, edições e falsas acusações, resultou em tumulto no trabalho, uma necessidade de levantamento de informações de anos atrás para tentar entender as acusações, até para tentar mostrar que realmente aconteceu. Isso gerou necessidade de aplicação de recursos humanos, materiais, de tempo, que são limitados. Além disso, houve mensagens que mostraram linhas e estratégias de investigação e revelaram informações sigilosas. Isso tudo prejudica o andamento e o futuro dessas investigações. Em terceiro lugar, essas mensagens com autenticidade não comprovada produzem mordidas na operação, fazem a operação sangrar, e quando ela sangra aparecem os tubarões e aquelas pessoas que antes estavam inibidas. Essas pessoas passam a reagir buscando destruir instrumentos de investigação, inibir a atuação dos agentes de estado e, dentro do revanchismo, atacar pessoalmente os protagonistas desse processo.

Vagner Rosário/CrusoéVagner Rosário/Crusoé“A Lava Jato alcançou o que nenhuma investigação, processo ou movimento alcançou na história em termos de rompimento da impunidade dos capitalistas de compadrio, dos donos do poder”
Em nenhum momento vocês, integrantes da força-tarefa, acharam que era temerário utilizar um aplicativo comercial para falar sobre temas tão sensíveis em investigações envolvendo pessoas tão poderosas?
O Telegram era tido como um dos aplicativos mais seguros que existiam. Era amplamente utilizado não só em Curitiba, mas por procuradores de todo o Brasil. Então era possível depositar a confiança de que as mensagens seriam mantidas de modo privado ou em ambiente restrito. E mais, ainda que eventualmente houvesse um vazamento, nós nunca fizemos nada errado. Sempre agimos de acordo com a lei. Eventual acesso serviria só para reforçar a credibilidade da operação. Agora, o que aconteceu foi um ataque criminoso. Quando isso acontece não se culpa a vítima, mas o criminoso. Aquilo com que a gente não contava é que haveria o ataque e, em cima dele, a deturpação, a descontextualização e a fabricação de falsas acusações sobre essas supostas mensagens.

Como o senhor responde a acusação de que houve uma forma de parceria entre juiz e procuradores?
A acusação e o juiz atuavam de forma independente, mas contatos sempre existiram, do mesmo modo que é lícito e legítimo o contato entre advogados e juízes. No sistema brasileiro, e na tradição jurídica brasileira, isso é normal e corriqueiro. Assim como advogados fazem seus pedidos e vão despachar com os juízes, nós do mesmo modo buscamos atuação de excelência e sempre íamos despachar com o juiz, para convencê-los dos nossos argumentos. Qual é o limite? O limite sempre foi a busca da verdade e busca dos valores da Justiça. O nosso sistema permite ao juiz uma proatividade na busca da verdade, por isso se fala do princípio da verdade real. Além disso, nosso Código de Processo Penal prevê a possibilidade de o juiz fazer busca e apreensão e determinar colheita de depoimento por iniciativa própria. Quando, por exemplo, o MP faz contato com o juiz para estabelecer data da busca e apreensão, isso é correto e corriqueiro, é desse modo no Brasil inteiro. Porque quem emite a decisão é o juiz, é uma ordem dele e ele precisa estar disponível no dia do cumprimento da medida. Quando isso veio à tona nas conversas vazadas, foi altamente criticado. Isso mostra o grau de desconhecimento sobre o nosso sistema.

As mensagens roubadas mostram o sr. falando de uma possível candidatura ao Senado. Ainda tem essa pretensão?
Lembro de ter feito essa reflexão e o The Intercept, antes de publicar, me mandou a mensagem inteira, mas publicaram editada e cortaram trechos. Várias pessoas me incentivaram a sair candidato a senador na eleição de 2018. Fiz uma reflexão sobre isso e cheguei à conclusão de que a melhor contribuição que teria a dar ao país seria na Lava jato. Fiz essa reflexão e concluí que ela era baseada não em riscos pessoais, mas sim em critérios de interesse público. Se, em algum momento, tivesse entendido que era o caso de seguir carreira política, eu teria me afastado da Lava Jato antes de fazer qualquer contato com partidos políticos.

Ainda considera possível seguir carreira política?
O futuro a Deus pertence.

Em mais de cinco anos de Lava Jato, há algo de que se arrepende? O sr. é bastante atacado, por exemplo, pelo famoso PowerPoint do Lula.
É engraçado que as pessoas quando fazem esse tipo de pergunta focam no caso Lula. Esse caso representa menos de 3% do total. Quando foi feita a coercitiva do ex-presidente, ela era a de número 118. Já tínhamos feito 117 com os mesmos critérios. Quando se olha para o trabalho feito, quando se é juiz de jogo jogado, que olha para uma realidade com uma visão retrospectiva, sempre são observados aspectos que poderiam ser aperfeiçoados. Mas a grande questão é olhar o conjunto da obra. A Lava Jato alcançou o que nenhuma investigação, processo ou movimento alcançou na história em termos de rompimento da impunidade dos capitalistas de compadrio, dos donos do poder. Isso não é mérito do agente público A ou B. É mérito das instituições e do exercício da cidadania da sociedade brasileira.

O ex-presidente Lula, preso em Curitiba, disse que o sr. e o ministro Sergio Moro são “chefes de quadrilha”. O que diz sobre mais esse ataque?
Não vou entrar em polêmicas ou bater boca com investigados da Lava Jato.

A Lava Jato corre o risco de ser totalmente anulada?
Vou ser bem franco, não tem risco de ser anulada de modo completo, apesar de outras operações terem tido esse fim, como a Satiagraha e a Castelo de Areia. É um passado de que não temos saudade. O que sustenta a Lava Jato são os resultados que ela alcançou. Algumas teses jurídicas são sempre possíveis de se construir para um lado e para o outro. O que acredito que vá frear as pessoas e instituições de emplacar uma tese que anule tudo é o fato de os resultados serem uma conquista da sociedade brasileira.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO