O esporte, a guerra e a política

13.09.19

“Há o tempo de observar e o tempo de agir”. Essas foram algumas das muitas sábias palavras que ouvi de um querido mentor logo no início da minha carreira. Foram 24 anos defendendo o Brasil nas quadras e nas areias, e, apesar de ter sido treinada por vários técnicos de estilos diferentes, nunca me esqueci dessa frase. Talvez aos 17, 18 anos, quando escutei essa frase pela primeira vez, eu fosse nova demais para perceber a sua serventia por uma ótica mais objetiva e menos romântica. Hoje, no entanto, entendo sua aplicação e real dimensão não apenas no esporte, mas em um mundo extremamente polarizado onde aponta-se muito o dedo e raramente o lápis.

No vôlei de quadra, onde há doze jogadoras, há também um time grande por trás de toda a equipe distribuído em várias funções, como estatísticas e análise das melhores atletas em quadra, por exemplo. Toda informação ou estratégia de jogo nos é passada pelo técnico sem que tenhamos muito poder de questionamento ou opções de “correções de rota”. Se algo dentro de quadra não sai como é esperado, peças são trocadas e mudanças na equipe são feitas em curso, para que a estratégia escolhida pelo técnico e seus auxiliares seja melhor executada.

Já no vôlei de praia, a dinâmica é bem diferente quando o assunto é estudo e estratégia. Não há todo o aparato tecnológico que há na quadra e a “voz da razão e sabedoria” dos técnicos auxiliando não existe, uma vez que no vôlei de praia eles não podem ficar no banco. Costumamos  dizer que o vôlei de praia é “o mais individual dos esportes coletivos” e talvez seja exatamente por essa individualidade que somos praticamente forçadas a amadurecer como estrategistas. Não há muitas janelas para erros quando o assunto é uma batalha contra times com grande arsenal de jogadas e você tem que abrir mão de alguma peça, algum movimento, para não levar xeque-mate. No esporte, há muito trabalho, suor, vontade, dedicação e também muita matemática. Não importa o quão bem preparada fisicamente você esteja, não existe a possibilidade de conseguir neutralizar absolutamente todas as jogadas contra um bom time. Nessas ocasiões, é preciso observar, estudar, afunilar o poder de ação e saber onde o adversário é mais forte nos momentos decisivos. No esporte, guerras são praticamente impossíveis de serem vencidas apenas com ações, por mais fortes que sejam, sem observação lógica e detalhada.

Batalhas esportivas à parte, foi durante uma guerra real, a Segunda Guerra Mundial, que a humanidade foi apresentada a um dos maiores matemáticos do mundo, Alan Turing, o inventor da Máquina de Turing, o conceito precursor do computador moderno. Nossa dívida e gratidão a Turing, no entanto, vão muito além de seus esforços pioneiros em ciência da computação. Turing serviu as forças aliadas quebrando códigos militares usados pela Marinha alemã, criando um método chamado “A Bomba” — um dispositivo eletromecânico que podia decifrar as criptografias da máquina alemã Enigma, desenvolvida na Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial para codificar e decodificar mensagens. A tecnologia usada pelos alemães era alterada durante a guerra, quase que diariamente, tornando muito difícil o desafio de quebrar os códigos dos nazistas.

Sem os esforços de Turing e os de sua equipe, os Aliados continuariam enfrentando uma séria desvantagem contra a tecnologia superior das Forças Armadas alemãs, e, embora seja impossível quantificar o impacto exato das contribuições de Turing, alguns historiadores estimam que a guerra teria continuado por pelo menos mais dois anos e que mais 14 milhões de vidas teriam sido perdidas. Diante de números tão impactantes, o que muitas vezes é deixado de fora de textos e artigos sobre o matemático e sua invenção é como as forças aliadas tiveram que usar, de maneira extremamente estratégica, as informaçãoes providas pela máquina de Turing, que em questão de minutos informava a localização e a estratégia de ataque das forças alemãs no mar. Alguns navios das forças aliadas não foram poupados de ataques para evitar que os nazistas suspeitassem que suas mensagens criptografadas tinham sido finalmente decodificadas. Observação, estratégia e ação. (Não deixe de assistir ao filme O Jogo da Imitação que conta, com alguma licença poética, a saga de Alan Turing e sua equipe para quebrar os segredos da supermáquina de mensagens alemã).

Esporte, guerra e política. Eventos que podem parecer distintos em suas atuais essências, mas que podem mostrar similaridades na conjunção de estratégias, códigos, inteligência, batalhas e bombardeios. Muitos bombardeios. Ah, Brasil… Durante esta semana, o campo minado que se tornou a política nacional não foi poupado de mais uma explosão. A indicação de Augusto Aras como novo procurador-geral da República caiu como uma bomba para boa parte da base eleitoral  do presidente Jair Bolsonaro. Aras já criticou supostos excessos da Lava Jato e mostra certa proximidade com investigados da operação, além de ter um conhecido histórico de declarações polêmicas de apoio a pautas mais à esquerda no espectro político, o que o torna ainda mais controverso para a base político-ideológica que elegeu Jair Bolsonaro. Para contornar o clima polemizado envolvendo seu nome, Augusto Aras já convidou para integrar sua equipe procuradores com perfis mais conservadores e alinhados com a Lava Jato, como Thaméa Danelon e Ailton Benedito.

Outra crítica sofrida pelo presidente na escolha do novo PGR foi o fato de Bolsonaro não ter escolhido um nome da “sacrossanta” lista tríplice para o cargo, a mesma que muitos insistem que garante à sociedade a independência do Ministério Público Federal, e que nos deu Raquel Dodge — que, recentemente pediu para arquivar preliminarmente trechos da delação do ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro, que envolviam o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o irmão de Dias Toffoli, presidente do STF. Dona Raquel…da lista tríplice para a nossa lista negra.

Que o indicado à Procuradoria-Geral da República mostre compromisso com o Brasil através da manutenção e proteção da Lava Jato, patrimônio nacional. Depois de anos sequestrado por um projeto cleptomaníaco de poder que dinamitou a economia, minou as instituições e dividiu a sociedade como nunca se viu, o país tem a chance rara de discutir um novo rumo fora das respostas fáceis e erradas para problemas muito difíceis. Não podemos desperdiçar mais uma vez a oportunidade de repensar o país além de nomes. Senhor Augusto Aras, não temos mais tempo para decifrar códigos, já fomos bombardeados demais. O país da MP da Liberdade Econômica, da reforma da Previdência (passada em seis meses na Câmara), da queda nos índices de assassinatos e de outros ganhos em tão pouco tempo já está com seus bravos soldados no fronte. Chegou a sua vez de mostrar suas armas a favor do Brasil (desengavetar as delações que Raquel Dodge engavetou seria um excelente começo).

Em tempos de extrema dicotomia e imediatismo, as palavras de meu mentor no início da minha carreira soam como um alento, e é nelas que atualmente me refugio, ignorando os jargões e rótulos vazios das redes sociais que insistem em colocar o pensamento livre e independente em balaios com etiquetas: “Há o tempo de observar e o tempo de agir”. Em 2012, pouco antes de seu falecimento, recebi uma ligação de aniversário do meu inesquecível mestre. Conversávamos sobre outras guerras, figurativas e reais, quando ouvi pela última vez uma das vertentes de sua célebre frase, que até hoje se faz presente em outros campos da minha vida: “Ação sem observação não é determinação, é estupidez. Histeria não é coragem”. Que suas palavras e sabedoria nos guiem na eterna vigilância que o Brasil precisa, e nas ações que o verdadeiro progresso demanda. Salve, mestre! Grande estrategista da vida.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

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