Pedro Ladeira/FolhapressFlávio Bolsonaro com Davi Alcolumbre: alianças insólitas no Congresso pela "estabilidade nacional"

Juntos e misturados

No Congresso Nacional, os extremos se unem em torno do acordão para esvaziar os órgãos de investigação e enfraquecer a Lava Jato
13.09.19

Em março deste ano, alguns deputados e senadores tiveram a ideia de criar uma nova frente parlamentar. O plano de formar um grupo organizado para defender a ética e a probidade na administração pública e combater a corrupção surgiu na sequência da eleição histórica que renovou como nunca antes as duas casas do Congresso. Tudo indicava que o caminho estaria aberto para mudar paradigmas. Engano. A frente tem esbarrado, cada vez mais, na rejeição da ampla maioria dos congressistas aos seus planos. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a proposta de emenda constitucional que impõe o fim do foro privilegiado ou com uma outra que, na prática, pretendia derrubar a decisão do Supremo Tribunal Federal segundo a qual crimes de corrupção relacionados a caixa dois e lavagem de dinheiro podem ser julgados pela Justiça Eleitoral. Por outro lado, projetos que os entusiastas do grupo abominam têm avançado com certa facilidade. É o caso da lei do abuso de autoridade e da flexibilização da fiscalização dos partidos. Dos quase 250 integrantes da frente, apenas uma pequena parcela, de não mais que dez parlamentares, se reúne com alguma frequência para traçar estratégias capazes de mudar o quadro. A luta, porém, é inglória. Pelos salões de carpetes verdes e azuis da Câmara e do Senado, a preocupação maior é outra – e se engana quem pensa que é a aprovação das reformas da Previdência e tributária. A pauta que une a maioria das excelências, da esquerda à direita, é a da sobrevivência política – e isso explica uma insólita concertação de parlamentares, de partidos da situação e da oposição, que, quando não operam abertamente para limitar os poderes dos órgãos de investigação e frear a Lava Jato, silenciam sobre as mais novas medidas que, em pouco tempo, podem jogar por terra os avanços conquistados nos últimos anos contra a impunidade e o desvio de dinheiro público.

Crusoé apontou, há semanas, os sinais do acordão que mira a estrutura que se fortaleceu na esteira da Lava Jato e levou à cadeia corruptos e corruptores de diferentes grandezas. O primeiro alvo foi o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, órgão de inteligência financeira que começou o ano sob a guarda de Sergio Moro no Ministério da Justiça, foi para a Economia após uma decisão da Câmara referendada pelo Senado e, agora, por obra do Palácio do Planalto, está com novo nome sob o comando do Banco Central – o órgão foi responsável pelo relatório que pôs o filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, sob a mira das autoridades por suspeita de corrupção. Depois do Coaf foi a vez da Receita, que também passou a ser alvo de queixas de figurões do poder, sofreu mudanças pontuais em sua hierarquia e, nesta semana, viu seu chefe, Marcos Cintra, ser demitido – a justificativa oficial foi a de que havia divergências em relação à criação de um novo imposto nos moldes da antiga CPMF, que ele defendia, mas há tempos sua cabeça estava a prêmio por causa, especialmente, da cooperação de auditores do Fisco com a Lava Jato. A ofensiva contra a Receita começou por pressão de ministros das altas cortes de Brasília incomodados por terem sido alvos, junto com familiares, de investigações fiscais. A Polícia Federal também entrou no radar das mudanças, e deve ter seu comando igualmente trocado – o atual diretor, Maurício Valeixo, escolha pessoal de Sergio Moro, pode ser substituído nas próximas semanas (leia mais aqui). Em outra frente, contrariando a bandeira que levantou durante a campanha, o presidente Jair Bolsonaro escolheu para o posto de procurador-geral da República alguém que vê com ressalvas os métodos da Lava Jato.

Em cada um dos passos desse grande movimento que sinaliza a existência de um acordão, a resposta do Congresso foi ou silêncio ou a aclamação, independentemente da coloração partidária. No dia 16 de julho, uma terça-feira, data em que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, despachou uma liminar suspendendo investigações baseadas em informações do Coaf ou da Receita, em outra medida entendida como parte da ofensiva, apenas um dos mais de 50 deputados presentes no plenário da Câmara tocou no assunto — e muito rapidamente. O mesmo ocorreu na semana do dia 19 de agosto, quando Jair Bolsonaro começou a mexer no comando da Receita (ele trocou o então número dois do órgão). Nas constantes ameaças de interferência na Polícia Federal, o silêncio também deu o tom entre os congressistas – ou alguém aí viu algum petista reclamar com estridência da tribuna sobre os movimentos do presidente? Em outras circunstâncias, seria possível esperar uma campanha da oposição contra as tentativas do Planalto de enquadrar os órgãos de investigação. Mas não foi o que se viu. Não houve críticas ou contestações em plenário nem mesmo reuniões para tratar do assunto. O anúncio do nome de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, na semana passada, revelou uma outra face desse curioso movimento: a decisão de Bolsonaro recebeu aplausos de quem está acostumado a torpedeá-lo. A presidente o PT, Gleisi Hoffmann, foi ao Twitter para dizer o seguinte: “Se tem uma coisa que o PGR indicado por Bolsonaro tem razão é essa: o sequestro do Brasil pela Lava Jato e seus aliados levou a economia do país à ruína”. Postura semelhante foi adotada pela ampla maioria dos partidos. Estranho? Não para quem há tempos quer estancar a sangria da maior operação anticorrupção da história.

Estaria o velho establishment político se reorganizando para reinstalar a cultura da impunidade? “Bolsonaro está entendendo agora o que todo mundo vinha falando em relação à turma das investigações. Toffoli deu sinal para ele (com a decisão do Coaf) e ele começou a pensar melhor. Só o Bolsonaro poderia enquadrar a Polícia Federal. O pessoal todo aqui acha bom”, afirma o notório deputado Paulinho da Força, do Solidariedade de São Paulo, uma das principais lideranças do Centrão e recorrente personagem de investigações policiais. O acordo é amplo, geral e irrestrito?  “Há acordos em cima de pautas específicas”, diz o líder do PT na Câmara, Paulo Pimenta, cujo partido apoiou, por exemplo, os movimentos do governo na Receita e no Coaf. “Tem uma percepção geral que a Receita extrapolou. Sobre o Coaf, não se pode mudar estrutura de estado só porque o Moro é ministro”, emenda, referindo-se à promessa feita por Bolsonaro antes da posse de dar ao ex-juiz da Lava Jato o comando do órgão de inteligência financeira. À direita no espectro político, parlamentares adotam linha semelhante. “Em nome do combate à corrupção nasceram todos os estados fascistas. Lava Jato entrou para a história, mas poderia ter sido melhor. As empresas quebraram. O modelo de punição do Ministério Público não foi bom para o país”, defende Elmar Nascimento, líder do DEM, partido que tem três ministérios na Esplanada (Agricultura, Casa Civil e Saúde), além dos comandos da Câmara e do Senado, com Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre.

Tânia Rego/Agência BrasilTânia Rego/Agência BrasilRodrigo Maia é um dos articuladores da “pacificação”
A semelhança nos discursos e a unidade de interesses se justificam pelo fato de praticamente todos os partidos do Congresso terem sido ou serem alvo de investigações. A situação de terra arrasada para quase todos — da petista Gleisi ao filho do presidente — acabou fazendo com que a interferência nos órgãos de controle virasse uma espécie de unanimidade. Quase que uma moeda de troca entre Executivo e Legislativo para além dos tradicionais cargos e emendas parlamentares. Um sinal claro de acomodação de interesses que, ao fim, garante certa estabilidade política em meio ao caos. Há um Executivo que interfere na dinâmica de órgãos como Receita, Coaf e PF, sinalizando ao Legislativo que ao menos tenta obter algum controle sobre eles. E um Legislativo que aplaude as medidas, evita pautas indigestas para o presidente e ainda  cria um ambiente favorável para que sua agenda econômica avance.

O Planalto tem deixado correr solto tudo aquilo que de certa maneira pode, pelas vias legislativas, ameaçar a estrutura dos órgãos de investigação. Até aquelas surgidas nas hostes do Congresso mais detestadas pelo presidente. Nesta semana, por exemplo, a oposição na Câmara conseguiu obter as 171 assinaturas necessárias para investigar a Lava Jato e propor, ao final, mudanças na legislação penal – uma das metas é modificar as regras das delações premiadas. A coleta de assinaturas foi comandada pela líder da oposição, Jandira Feghali, do PCdoB. O requerimento foi protocolado na noite desta quinta-feira. Durante o esforço oposicionista para obter os apoios necessários para a CPI, não houve resistências dos governistas à iniciativa. Já no Senado ocorreu o contrário. Lá, há tempos um grupo de senadores tenta abrir a chamada CPI da Lava Toga, para investigar suspeitas de desvios nos tribunais superiores. A proposta já foi engavetada mais de uma vez por Davi Alcolumbre. E a mais nova tentativa sofreu um revés curioso. A proposta de abertura da CPI enfrenta a resistência de quase todos os partidos e também do STF.

A despeito de todas as forças contrárias, um grupo composto por 15 dos 81 senadores ainda não perdeu as esperanças. Mas, nos últimos dias, viu o front oposto ser reforçado por ninguém menos que Flávio Bolsonaro, o primogênito do presidente da República. Como mostrou O Antagonista, em uma ação articulada com o presidente do PSL, Luciano Bivar, o filho 01 do presidente entrou no circuito para que senadores retirassem assinaturas do requerimento que pede a instalação da CPI. Com correligionários, chegou a aumentar o tom. A pressão fez com que Selma Arruda, do PSL, decidisse deixar a legenda. Flávio, aliás, tem sido a principal referência do Planalto na aproximação com as cúpulas dos outros poderes. Está alinhadíssimo com o próprio Alcolumbre e com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Também se aproximou de Gilmar Mendes. Chegou até a fazer uma visita à casa do ministro em Brasília. “É fato que temos uma visível integração entre Bolsonaro e os outros chefes de poder. Estão todos abraçados nesse acordo que tem como ponto-chave o enfraquecimento de quem investiga”, acusa o senador Alessandro Vieira, autor do pedido para abrir a comissão.

A tramitação dos vetos presidenciais sobre a lei de abuso de autoridade é mais um exemplo da postura do governo em relação às pautas caras aos investigadores e aos órgãos de investigação. Bolsonaro atendeu aos pedidos de uma parte relevante de seu eleitorado e vetou 36 itens do texto, considerado prejudicial ao trabalho de policiais, procuradores e juízes. Mas o Planalto não faz nenhuma articulação para que esses vetos sejam mantidos. A votação ainda não tem data para ocorrer, mas a tendência é que uma parte significativa dos vetos presidenciais sejam derrubados – o que tornaria sem efeito as canetadas do presidente. “Tem muitos movimentos acontecendo enfraquecendo o combate à corrupção”, resume a deputada paulista Adriana Ventura, presidente da Frente de Combate à Corrupção, aquela que começou a legislatura com todo gás e vê sua agenda se enfraquecer a cada dia no Congresso.

Agência SenadoAgência SenadoQuem pensa em guerra contra as instituições é contra o Brasil, defende Toffoli
A essas grandes movimentações somam-se outras que muitas vezes acabam passando despercebidas, mas que igualmente se inserem na troca de interesses que apontam para a existência de um grande acordo em curso. Na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, por exemplo, tramita um projeto de lei que pretende definir como crime de responsabilidade iniciativas de ministros do Supremo Tribunal Federal que possam ser entendidas como usurpação de competência dos poderes Legislativo ou Executivo. É algo que, em condições normais de temperatura e pressão, seria encampado sem maiores problemas por deputados e senadores e até pelo próprio governo. Mas não foi o caso. A partir de intervenções de Toffoli junto a parlamentares e integrantes do governo, uma ampla frente contrária ao projeto se formou na CCJ. Da direita à esquerda, passando pelo Centrão, também nesse caso uma incomum união de interesses se impôs.

O discurso da estabilidade acaba sendo uma justificativa padronizada para a aproximação das cúpulas dos poderes. O próprio Toffoli, nas conversas que vem tendo com parlamentares, repisa esse argumento. Recentemente disse que quem pensa em “guerra” entre as instituições não está a favor do Brasil — como se fosse uma guerra que estivesse em jogo, e não o poder dos órgãos responsáveis de investir contra corruptos em geral. A cantilena é reverberada pelos governistas. “Qualquer ato falho dos três Poderes joga o país no buraco. É preciso ter responsabilidade”, diz o deputado Marco Feliciano, hoje um dos parlamentares mais próximos de Jair Bolsonaro.

A ideia de que é preciso estabilizar o país é também uma das linhas mestras do discurso que Augusto Aras tem levado ao Senado, onde ele será sabatinado antes de ter seu nome submetido ao crivo do plenário. Nos encontros, o escolhido de Bolsonaro para a PGR tem tentado agradar todos os lados. Em conversas com senadores na terça-feira, 10, defendeu uma Lava Jato “positiva” e que não criminalize a política. No mesmo dia, jantou com integrantes do PP na casa do notório Ciro Nogueira, presidente do partido e um dos parlamentares mais enrolados na Lava Jato. Segundo alguns dos presentes, Aras foi aclamado por sua visão de “equilíbrio das instituições”. O procurador se reuniu ainda com a bancada do PT, diante da qual criticou o que chamou de “punitivismo” do Ministério Público. Falando a outro grupo de parlamentares, atacou a Lava Jato, que segundo ele destruiu “reputações e a economia”. O líder do MDB, Eduardo Braga, outro alvo da operação, será o relator da indicação e já sinalizou que seu parecer será favorável à aprovação. Ninguém duvida que Aras chegará perto da unanimidade.

O novo procurador-geral deverá ser apenas mais uma peça da engrenagem que o sistema fará girar a seu favor. O acordão segue a toda em Brasília, como disse a Crusoé, sob reserva, um importante líder do Centrão. Afirmou ele: “O acordão não é aberto. Não é transparente. Ele passa pelo Centrão, pela presidência das casas, pelo Judiciário. Consiste em segurar todas essas questões possíveis, para que não venham a complicar ninguém que esteja nesse nível. Quem mais tem problema (com a Justiça) é a esquerda, mas todos os partidos aqui têm essa vulnerabilidade. Então todos jogam. Segura um projeto tal, vem alguém com um interesse de alguém do Judiciário. E todo mundo vai se equilibrando”. Estabilidade. Equilíbrio. No dicionário de eufemismos de Brasília, esse é o novo significado para acordão. Pobre do Brasil.

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