Dida Sampaio/Estadão ConteúdoAugusto Aras: o preferido de Jair Bolsonaro para suceder Raquel Dodge

O consultor

Augusto Aras, o indicado de Bolsonaro para a PGR, já atacou a Lava Jato e fez festa para petistas enrolados com a Justiça. Documentos obtidos por Crusoé mostram que ele tem 60% de participação no escritório onde diz fazer apenas consultoria
06.09.19

“Sou advogado há 40 anos e só me tornei membro do Ministério Público Federal porque fui autorizado a continuar militando, quando isso era permitido.” A frase foi dita por Antônio Augusto Brandão de Aras, escolhido por Jair Bolsonaro para o posto de procurador-geral da República. Era junho de 2018. No Rio de Janeiro, Aras se associava ao Instituto dos Advogados Brasileiros, o IAB, entidade que tem em suas fileiras advogados conhecidos, inclusive de investigados na Lava Jato, como Alberto Toron. Apesar de também ser professor de direito da Universidade de Brasília e um dos 73 subprocuradores da República, foi na advocacia que Aras sempre se realizou profissional e financeiramente. Até que decidiu entrar, neste ano, na intensa disputa de bastidores para conquistar o presidente.

Desde que seu nome passou a circular pelo Palácio do Planalto, ele evitava falar sobre seu escritório, o Aras e Advogados Associados. Dizia estar afastado das atividades advocatícias havia quase dez anos. E repetia que vinha atuando apenas como “consultor” da sociedade que leva seu sobrenome. “Não tenho escritório de advocacia que eu frequente, eu não tenho militância, embora, repito, poderia ter escritório, poderia ter cliente, poderia advogar, poderia ter tudo isso. Mas na qualidade de professor da UnB (Universidade de Brasília), subprocurador com atividades na área penal, eu não tenho tempo para fazer isso e cumprir minha pauta funcional”, afirmou em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, no mês passado. O próprio site da banca registra que, em 2010, “o professor doutor Augusto Aras passou a ser consultor do escritório, permanecendo na sua direção o Dr. Roque Aras (pai do subprocurador) juntamente com os advogados Otto Pipolo e Fernando César Cunha, que expandiram as atividades desenvolvidas, solidificando parcerias em diversos estados e permitindo a plena atuação em todo o território nacional”.

Crusoé levantou o registro do escritório na Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, e constatou que Augusto Aras nunca deixou a sociedade. Com sede em Salvador, a banca foi registrada na seccional baiana da OAB, em 21 de junho de 1999, com Aras figurando entre os sócios. A partir daí, ela passou por seis alterações contratuais que envolveram a mudança de nome da sociedade, trocas societárias e até a abertura de uma filial em Brasília, em 2009. Aras aumentou significativamente a sua fatia na banca. De 1999 até a última alteração contratual, realizada há dois anos, ele ampliou sua participação de 25% para 60% do capital. É, portanto, o sócio majoritário do escritório do qual diz ser apenas consultor. O contrato social prevê que os dividendos devem ser distribuídos conforme a participação dos sócios. Há outros detalhes interessantes. Em seu site, o escritório registra o endereço da filial em Brasília: é uma sala comercial no Setor Hoteleiro Sul desocupada há quase dois anos. O endereço de fato é outro: uma casa no Lago Sul, região nobre da capital, onde os funcionários dividem o espaço com advogados de outros quatro escritórios. Procurado por Crusoé para falar sobre sua participação na sociedade do escritório, Aras respondeu por meio de sua assessoria que preferia “não comentar”.

A última alteração contratual do escritório, de dois anos atrás: 60% da sociedade
Formalmente, não há irregularidade no fato de Aras acumular as funções de subprocurador com as de advogado. Ele entrou para o MP em 1987, quando ainda era permitido a integrantes do órgão advogar. A proibição só veio depois, e passou a valer para os que entraram na carreira a partir de 1988. O problema é que, ao contrário de outros colegas que também podem advogar, Aras tem uma atuação mais marcante na advocacia do que como procurador. Há tempos isso causa um profundo mal-estar entre seus pares. Seu nome consta como advogado em centenas de processos em várias instâncias da Justiça, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, onde atua como membro do MP desde que virou um dos 73 subprocuradores-gerais, em dezembro de 2011. Como advogado, ele atuou em 17 processos na corte. Um deles está em tramitação até hoje. Não há nenhuma ação na área criminal, na qual ele e sua mulher, a também subprocuradora Maria das Mercês Gordilho, atuam pelo MP.

O processo ainda em andamento trata da execução do pagamento de precatórios a ex-policiais militares da Bahia. Nele, constam procurações de 2018 assinadas pelos ex-PMs em nome de Aras, que repassou a condução do caso a outros advogados por meio de substabelecimento com reserva de poderes. O instrumento é comumente utilizado por advogados e permite incluir novos defensores no processo ao mesmo tempo que garante a possibilidade de Aras reassumir o comando da causa quando quiser. Já no Supremo Tribunal Federal, seu nome aparece relacionado a 10 ações. Em duas, ele não deixou totalmente de atuar. Uma delas é um mandado de segurança em causa própria, ajuizado para questionar a resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, que vedou a atuação de procuradores como advogados em casos que exigem a participação do Ministério Público.

Na ação, Aras classifica de “estapafúrdia” a iniciativa do órgão e chega a compará-la a uma “punição”. “O impetrante poderá sofrer outros prejuízos de impossível reparação, na medida em que a clientela em geral não mais buscará os seus serviços profissionais, ante a incerteza de contar com o advogado de sua confiança, abalando, assim, o seu patrimônio maior, que é a credibilidade na respectiva área de atuação. É óbvio que a clientela buscará outros advogados”, diz Aras na peça. Na ocasião, ele argumentou que atuava em vários processos nas áreas de direito de família, sucessões, trabalhista e falência nos quais o MP poderia se manifestar – e nas quais, pela resolução do CNMP, ele estaria impedido de trabalhar como advogado. O ministro Eros Grau acolheu em parte os argumentos e o autorizou liminarmente a exercer a advocacia mesmo nos casos que envolvessem o Ministério Público. A tese de Aras, porém, acabou sendo rejeitada anos mais tarde. Mais especificamente em 2015, quando o processo passou para a relatoria de Luiz Fux, que assumiu a vaga de Eros Grau em 2011. Ele mandou suspender a liminar e arquivar o caso. Nas demais instâncias, o nome de Aras aparece relacionado a uma variada gama de processos, a maioria na Justiça estadual na Bahia. Em um dos casos, ele e seu filho representam um espólio que está para receber cerca de 46 milhões do estado.

A carteira da OAB de Aras: escritório tem “atuação nacional”
Embora tenha passado a sustentar que só era consultor, antes de entrar na corrida pela cadeira de procurador-geral Aras não fazia muita questão de esconder que tinha na advocacia a sua atividade prioritária. Sua atuação no MP era considerada pífia. Os colegas o viam como alguém inexpressivo, que dava expediente no gabinete da Procuradoria apenas para cumprir tabela. A guinada veio após a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018. Aras avaliou que a chegada do capitão da reserva ao poder seria o momento ideal para se lançar ao posto máximo da carreira. Como a função de procurador era secundária em sua vida, não via como entrar na lista tríplice criada pela Associação Nacional dos Procuradores da República, a ANPR, e considerada por todos os presidentes desde 2003. Ele era, ao contrário, crítico do modelo. Defendia que a lista representava o corporativismo exacerbado da categoria, que beneficiava apenas quem investe na política interna na instituição. Dizia que, para fazer a “disruptura” com o MPF, só um governo que propusesse um rompimento com o establishment político. O governo de Bolsonaro era a janela ideal para tentar o salto. Foi então que ele traçou uma estratégia de aproximação. Buscou um interlocutor privilegiado: o ex-deputado federal Alberto Fraga, do DEM do Distrito Federal, amigo de longa data do presidente (leia mais aqui). Fraga  agendou o primeiro encontro entre ambos no Palácio da Alvorada.

Foram, pelo menos, sete reuniões. As conversas nunca tiveram um norte comum. Bolsonaro intercalava perguntas pessoais, sobre família e futebol, com questões sobre o projeto de Aras para a PGR. Os temas mais presentes eram meio ambiente e identidade de gênero. Aras disse que a questão ambiental não podia ser ideologizada e que o debate sobre gênero é incompatível com a família brasileira. Diante do presidente, defendeu ainda que o radicalismo domina a atuação do MPF na área. Citou casos de obras paralisadas por anos por ação do órgão, que, a seu ver, precisa fazer mais do que reprimir ou simplesmente dizer não ao Executivo. A Procuradoria, portanto, tinha o dever de buscar a resposta mais correta para os problemas do país. Não podia contribuir para a existência de 14 mil obras paradas. Defendeu também o agronegócio e a ampliação das terras agriculturáveis. Tudo, claro, soou como música para Bolsonaro. Aras saiu das conversas elogiando o presidente. E fez chegar a ele os elogios. Disse não tê-lo visto como um homem tocado pela “mosca azul”. E que, muito ao contrário, é o mesmo homem da campanha, simples, “e com disposição de fazer o melhor para o país”.

A indicação estava praticamente certa, até que sua ligação com a esquerda veio à tona. Filho de Roque Aras, deputado federal baiano que combateu o regime militar, cresceu em um ambiente muito próximo à militância. Tanto que, em 2013, reuniu em sua casa no Lago Sul lideranças desse campo político para o lançamento de um livro sobre a oposição à ditadura. Compareceram, por exemplo, o ex-ministro José Dirceu e o ex-presidente do PT Rui Falcão. Bolsonaro não gostou de saber do evento. Vieram à luz, ainda, declarações antigas do procurador sobre a direita. Entre elas, uma em que disse que “essa política do medo tem consequências desastrosas, que é o crescimento de toda (…) uma doutrina de direita, uma direita radical, em que a lei é feita pelos opressores para que os oprimidos venham a cumpri-la”. Interlocutores de Bolsonaro até tentaram desfazer o problema, apontando uma transição do discurso dele para que fosse nomeado. De favorito na bolsa de apostas, Aras passou a ser carta fora do baralho.

A casa onde funciona a sucursal brasiliense da banca
Surpreendentemente, seu nome voltou com força nesta semana, conforme avançaram os movimentos na Praça dos Três Poderes que sinalizam um acordão entre o governo e os representantes das cúpulas do Legislativo e do Judiciário — uma medida para frear o avanço de importantes investigações e minar o poder de órgãos de fiscalização como a PF, Receita Federal e o antigo Coaf (que passou a se chamar Unidade de Inteligência Financeira). No MPF, e em especial no grupo da Lava Jato, sua indicação acendeu um alerta porque nunca ficou muito clara a sua avaliação sobre a operação. Nas entrevistas que deu, foi ambíguo quanto ao assunto. Já disse que foi das “grandes ferramentas para a mudança da cultura do país”, mas que ela não tomou os cuidados necessários para “preservar o mercado e a higidez da política”. A força-tarefa de Curitiba, berço da Lava Jato, silenciou sobre a escolha.

O tema Lava Jato foi, claro, assunto das conversas com o presidente. Bolsonaro quis saber a opinião de Aras sobre a operação. O procurador pôs um pé em cada canoa: tanto elogiou quanto criticou. Em uma das vezes, disse que a Lava Jato precisa ser amplificada dentro do próprio MP e, depois, estendida a um número maior de estados e municípios. Por outro lado, afirmou ser preciso conter os abusos e desvios que, em sua opinião, começaram com o excesso de personalismo de muitos que conduziram a operação. Não citou nomes. Quem acompanhou os encontros diz que o presidente nunca lhe perguntou o que achava sobre a situação de seu filho mais velho, Flávio. O atual senador é alvo de uma investigação por desvios de recursos de seu gabinete quando era deputado na Assembleia do Rio de Janeiro. A apuração acabou suspensa por uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Aras já indicou que, nas investigações que tramitam nos tribunais superiores, irá designar apenas subprocuradores, integrantes do topo da carreira do MPF. A medida representa uma mudança significativa, uma vez que os grupos de trabalho da Lava Jato na PGR sempre foram constituídos por procuradores de primeira e segunda instâncias, mais acostumados a lidar com investigações no dia a dia.

Agora o nome do subprocurador, de 60 anos, precisa ser chancelado pelo Senado. Ele terá que passar por uma sabatina na Comissão de Constituição e Justiça e, caso seja aprovado, a indicação será submetida ao plenário da casa. Precisa dos votos de 41 dos 81 senadores para finalmente ser empossado no cargo. O mandato de Raquel Dodge termina em 17 de setembro. Caso vença todas as etapas, Aras terá o poder de investigar autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, como o próprio Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ainda alvo de três inquéritos na corte. Como chefe do MPF, terá controle ainda sobre a gestão administrativa e financeira do órgão. O procurador-geral também é responsável por designar desde os chefes das unidades locais do MPF nos estados até os coordenadores das câmaras temáticas do órgão, colegiados que traçam as diretrizes da atuação dos membros da instituição em relação a temas como combate à corrupção, meio ambiente, populações indígenas e quilombolas e controle externo da atividade policial. Além disso, cabe a ele nomear o titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, responsável pela defesa dos chamados “direitos difusos”, que incluem a liberdade de expressão, a igualdade, acesso à Justiça, assistência social e até a reforma agrária. A PFDC tem um histórico de posições que batem de frente com o bolsonarismo, como a defesa do casamento gay. Será um teste de fogo para Aras.

Nos últimos anos, o país conheceu as diferentes nuances da força da caneta da Procuradoria-Geral da República, desde as “flechadas” em sequência contra políticos suspeitos de corrupção até uma atuação mais conservadora. Rodrigo Janot, que cunhou a célebre frase sobre as flechadas quando investigava Michel Temer (“Enquanto houver bambu, lá vai flecha”), deixou o posto em 2017 em meio a questionamentos sobre seus métodos, hoje em discussão no STF. Dodge, sua substituta, desacelerou o ritmo da Lava Jato (é possível contar nos dedos as vezes em que ela mencionou de viva voz o nome da operação) e criou atritos com as equipes de investigação de Curitiba, Rio e São Paulo. Augusto Aras chega em meio a dúvidas sobre a real intenção de Jair Bolsonaro e da cúpula dos poderes em Brasília quanto ao combate à corrupção. Nesta quinta-feira, 5, pouco depois do anúncio oficial do nome que escolheu, o presidente afirmou: “Não queremos um PGR que diga que pode fazer tudo, mas também não queremos aquele com quem não pode fazer nada”. A ver o que isso significará na prática.

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