Agência BrasilRaquel Dodge: demissão coletiva de equipe da Lava Jato da PGR por "incompatibilidade"

O acordão mostra a cara

Procuradores deixam a PGR em protesto contra Dodge, Moro volta a ser espezinhado e a PF está em vias de ter um novo diretor: o esforço para conter a Lava Jato nunca esteve tão perto de seu ponto de ebulição
06.09.19

Os dois grandes prédios arredondados e espelhados que abrigam a sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, foram projetados por Oscar Niemeyer com uma base quase imperceptível, para dar a ideia de que estão em permanente estado de flutuação. Na terça-feira à noite, porém, uma decisão da chefe máxima do órgão, Raquel Dodge, fez a estrutura balançar — metaforicamente, é claro — como poucas vezes havia acontecido. O motivo: um documento encaminhado por Raquel Dodge ao Supremo Tribunal Federal, no qual, depois de sete meses analisando a delação premiada do ex-executivo da OAS Léo Pinheiro, ela propôs o arquivamento de trechos que mencionavam o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e José Ticiano Dias Toffoli, irmão do presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli.

Foi o suficiente para que, menos de 24 horas depois, a equipe responsável pelos casos da Lava Jato na PGR pedisse para sair alegando “incompatibilidade” com Dodge. O ambiente já estava ruim havia algum tempo. O braço da Lava Jato na PGR andava um tanto travado, e as travas eram atribuídas exatamente ao estilo excessivamente comedido, para dizer o mínimo, da procuradora-geral. Em julho, o então coordenador da operação abandonara o posto. Em março, dois chefes da equipe de perícia fizeram o mesmo. Poucos diziam, mas a leitura, internamente, era a de que Dodge vinha melando a operação ao mesmo tempo em que fazia campanha para ser reconduzida por mais dois anos ao cargo, cujo mandato termina no próximo dia 17.

Essa percepção está diretamente relacionada ao episódio que levou ao quase-motim dos procuradores: os beneficiários diretos da decisão de Dodge de arquivar parte da delação de Léo Pinheiro eram dois de seus principais cabos eleitorais no processo de sucessão – durante o qual, até o anúncio do nome de Augusto Aras pelo Palácio do Planalto, ela sempre manteve esperanças. Rodrigo Maia e Dias Toffoli defenderam a sua manutenção de todas as formas. Para eles, Dodge tinha o perfil ideal para o momento, por aliar experiência com um jeito, digamos, mais compreensivo de enxergar os casos que chegam à Procuradoria Geral.

Agência SenadoAgência SenadoToffoli: irmão citado por Léo Pinheiro
Além de Maia e Toffoli, Dodge tinha outros advogados relevantes. Como o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que teve um inquérito arquivado por ela recentemente, o notório Renan Calheiros, também agraciado por suas decisões, e até o ministro Gilmar Mendes, a voz mais estridente contra a Lava Jato no Supremo. O perfil da procuradora, juntamente com o rol de defensores da sua permanência, fez com que o Palácio do Planalto chegasse a considerar de fato o nome dela. Isso ajudaria a evitar problemas de Bolsonaro com as cúpulas do Legislativo e do Judiciário, das quais o presidente vem se aproximando cada vez mais, com sinais fartos de um plano mais amplo destinado a dar um “freio de arrumação” naquilo que os poderosos de plantão entendem como uma onda de abusos dos órgãos de investigação.

As evidências desse aparente acordão surgiram com mais força a partir da decisão de Dias Toffoli, em julho, de suspender todas as investigações que tinham por base relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, órgão de inteligência financeira do governo. A canetada solitária em meio ao recesso do Judiciário beneficiou diretamente o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente e alvo de uma investigação conduzida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro que investiga um esquema de desvio de dinheiro em seu gabinete, quando era deputado estadual. Por sua vez, o Planalto passou a atender uma antiga demanda de parte do STF e do Congresso e deu partida a movimentos que resultaram em mudanças no Coaf, renomeado e transferido para o Banco Central, na Receita e, mais recentemente, na Polícia Federal.

Sergio Moro, visto pelas cúpulas dos poderes como o símbolo maior da Lava Jato e da máquina que estaria colocando reputações em xeque, passou a ser esvaziado. Inclusive pelo próprio presidente. Se Bolsonaro havia prometido dar a ele o Coaf, sete meses depois ele veria seu indicado para o órgão, Roberto Leonel, ser demitido. Sucessivas declarações de Bolsonaro reforçaram a impressão de que o ministro foi, de repente, levado à berlinda. Nessa toada, a Polícia Federal, subordinada ao Ministério da Justiça, entrou na roda. Primeiro, com indicações do presidente de que pretendia indicar o novo chefe da corporação no Rio. A reação do próprio Moro e da cúpula da PF não foi boa. Bolsonaro achou que sua autoridade estava sendo questionada e, então, passou a cogitar a troca do diretor-geral da polícia, Maurício Valeixo, homem de confiança de Moro.

Fátima Meira/Futura Press/FolhapressFátima Meira/Futura Press/FolhapressMoro: silêncio após declaração do presidente
Entrou em cena, mais uma vez, um script que vem se repetindo nas últimas semanas. Após tentar mostrar que a relação com Moro estava boa (o presidente o chamou de “patrimônio nacional” em um evento no Planalto na semana passada), as estocadas voltaram. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, ele disse que o ministro chegou “ingênuo” a Brasília e defendeu que a PF precisa de uma “arejada”. Em bom português, disse que a cúpula do órgão, escolhida a dedo por Moro, precisava ser substituída.

A declaração do presidente deixou Moro ainda mais exposto. Na quarta-feira, em uma solenidade no ministério que seria seguida por uma entrevista coletiva, o ministro ficou por poucos minutos. Indagado sobre Valeixo, não respondeu. Em privado, ele também tem se negado sistematicamente a falar sobre o assunto. Quem o conhece diz que ele está enormemente desapontado, e em vias de tomar uma decisão mais radical – só tem dúvidas sobre o momento certo para fazê-lo. O único alento para o ministro foi o acolhimento, por parte do presidente, de todos os vetos que sugeriu à chamada lei de abuso de autoridade, um velho sonho dos críticos da Lava Jato. É incerto, porém, se o gesto será suficiente para agradá-lo.

Na PF, poucos acreditam que Bolsonaro possa voltar atrás e desistir de retirar Maurício Valeixo da direção-geral. A leitura reinante é a de que o presidente, com seu temperamento quase infantil, nunca irá digerir o fato de ter sido “confrontado” no episódio em que a corporação reagiu ao seu plano de trocar o comando da superintendência no Rio de Janeiro. Há dúvidas apenas em relação ao momento em que a substituição do diretor-geral ocorrerá. Alguns acreditam que será já, e outros apostam que Bolsonaro vai esperar um momento oportuno para efetuar a mudança. Para o primeiro grupo, a ida do delegado Anderson Torres, atual secretário de segurança-pública do Distrito Federal, está certa. Delegados ouvidos por Crusoé afirmam que o convite já teria até sido feito.

Anderson Torres com Flávio Bolsonaro: favorito para substituir Valeixo na PF
À época em que Anderson foi nomeado secretário, o governador Ibaneis Rocha, do MDB, disse que a indicação partiu do ex-deputado federal Fernando Francischini, de quem ele fora assessor na Câmara dos Deputados. O próprio Jair Bolsonaro também teria chancelado a escolha. Com passagens pelas diretorias de Inteligência e Combate ao Crime Organizado da PF, Torres tem uma relação de amizade com o presidente e já se reuniu com ele algumas vezes. Na corporação, ele é visto como um delegado de perfil operacional e não chega a ser apontado, ao menos por ora, como uma possível ameaça a grandes operações como a Lava Jato.

Entre os que aguardam a troca para outro momento, a interpretação é a de que também nesse caso Bolsonaro utiliza sua tática de fritura prévia cujo objetivo é criar um cenário propício para a decisão final. O presidente estaria apenas aguardando um mote para tomar a decisão. As apostas sobre qual seria o estopim ideal são muitas. Mas a principal tem relação com o inquérito que investiga o atentado a faca contra Bolsonaro. O caso está próximo a ser encerrado e a investigação deve concluir que Adélio Bispo não contou com a ajuda de mais ninguém. Bolsonaro já criticou a condução da investigação, especialmente pela falta de evidências sobre a existência de um mandante. O anúncio da conclusão do inquérito é visto como um momento ideal porque poderá servir de cortina de fumaça para a demissão. Debaixo de fogo cerrado, Valeixo sairá de férias nos próximos dias.

Em todos os cenários, o ministro Sergio Moro é visto como o fiel da balança. Com pesquisas recentes mostrando que sua aprovação é muito superior à do próprio Jair Bolsonaro, o ministro se fortalece na queda de braço. Valeixo é amigo pessoal de Moro e sua saída poderia ser o último capítulo da relação desgastada entre o ministro e o presidente. No governo, poucos acreditam que Moro conseguirá segurá-lo. A dúvida é sobre como será o dia seguinte: se a corporação aceitará a interferência direta de Bolsonaro ou se irá se rebelar. Na última vez que houve uma tentativa de ingerência, na gestão de Fernando Segovia, escolhido por Michel Temer, os delegados que investigam políticos se posicionaram. Segóvia acabou perdendo o cargo. A previsão é de tempestade.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO