Divulgação"O povo amadureceu. Aliás, eu diria que a sociedade brasileira é muito mais avançada do que a classe política"

‘O PT é linha auxiliar do bolsonarismo’

Para o professor Denis Lerrer Rosenfield, Bolsonaro precisa dos petistas para tentar a reeleição. Apesar de defender o amigo Michel Temer, ele diz que a Lava Jato acabou com a ideia de que o crime compensa
30.08.19

Professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Denis Lerrer Rosenfield dedicou seus últimos dez anos a incursões pelo mundo da política. Aproximou-se, por exemplo, de Michel Temer. Também estreitou laços com generais. No governo Temer, foi um dos articuladores da reforma trabalhista. Viajou pelo Brasil negociando com organizações patronais e sindicatos. Dos bastidores, acompanhou episódios capitais da história recente do país, como a própria queda de Dilma e a ascensão do amigo emedebista, que pouco depois de deixar o Palácio do Planalto seria preso pela Lava Jato.

Atualmente, Rosenfield passa boa parte do tempo em viagens entre Porto Alegre, São Paulo e Brasília. Consultor de entidades empresariais, faz análises e escreve artigos. Trabalha, ainda, no projeto de um livro sobre Temer, de quem, por lealdade, como ele mesmo diz, não se afastou após a prisão. “Sou uma pessoa leal e não vou deixar um amigo porque, por acaso, ele foi preso”, diz ele. Embora faça ressalvas à prisão do ex-presidente, nesta entrevista a Crusoé o professor de filosofia diz que a Lava Jato acabou com a ideia de que o crime compensa e defende que a ética não pode ter partido. A seguir, os principais trechos.

O sr. já fez uma leitura filosófica do atual governo?
Uma das coisas centrais para Jair Bolsonaro é a distinção que ele faz de amigos e inimigos. O tempo todo, o presidente precisa demarcar quem são as pessoas de confiança, as quais foram reduzidas a um grupo de fiéis e familiares, e quem são os adversários. Dessa forma, Bolsonaro se enquadra muito bem no que um filósofo e cientista político alemão, Carl Schmitt, escreveu no livro A concepção do político. Schmitt foi um dos teóricos do nazismo, é verdade, mas também tem seguidores na esquerda, incluindo maoístas. Para Schmitt, um dirigente político precisa procurar inimigos. Se não os tem, então deve inventá-los. O confronto deve ser buscado sempre, o que deixa a política em constante movimento. Nós ainda estamos no oitavo mês do governo Bolsonaro, mas é como se estivéssemos na iminência de novas eleições. Só que ainda faltam mais de três anos para o próximo pleito presidencial. Essa antecipação do calendário eleitoral não faz o menor sentido.

Quem são, afinal, os inimigos de Bolsonaro?
Todos aqueles que discordam dele, de uma maneira geral. Mas, principalmente, o PT. A sigla é importantíssima para Bolsonaro. Ele tem plena consciência de que, se nas eleições de 2022, ele for para o segundo turno com o PT, vencerá de novo. Para o presidente, eles são o inimigo ideal. O partido está desorientado e fraco. Não tem programa algum. Tudo o que eles querem é tirar Lula da prisão, mais nada. É um partido que não se apresenta. Para Bolsonaro, se o PT não existisse, seria preciso criá-lo.

Demarcar amigos e inimigos é uma necessidade nova no Brasil?
Não. O PT tinha essa mesma concepção de política. Era o nós contra eles. Amigos e inimigos. Conservadores e os chamados progressistas. Essa forma de atuar pode ser de direita ou de esquerda, pode ser usada na democracia ou em regimes autoritários, não importa.

E o governo, como fica?
Para o presidente, governar tornou-se um ato paralelo, que não é o centro de suas preocupações. Ele se recusa a fazer articulação política, a negociar com o Parlamento. Quando faz isso, é de uma maneira muito tangencial. O diálogo não faz parte da concepção política dele. O que concentra suas energias é o seu projeto político para 2022.

Como o sr. vê a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada brasileira nos Estados Unidos?
Do ponto de vista da sua lógica de poder, faz todo o sentido. A intenção é, mais uma vez, demarcar amigos e inimigos. Eduardo Bolsonaro já estava empenhado em fazer essa distinção no plano mundial. Foi ele quem organizou uma subsidiária internacional do conservadorismo em um evento em Foz do Iguaçu, no final do ano passado. Em Washington, ele poderá continuar esse projeto de atrair amigos, aproximando-se de conservadores americanos e do presidente Donald Trump. Do ponto de vista da lógica de Estado, por sua vez, a nomeação de Eduardo não faz nenhum sentido. Trata-se de um presidente favorecendo o filho, um flagrante claro de nepotismo.

As críticas de Bolsonaro à chapa peronista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner também entram nessa estratégia?
Bolsonaro poderia ter demonstrado uma preocupação de estado ao comentar as eleições no país vizinho. A questão a ser levantada, então, seria parecida com a do ministro da Economia, Paulo Guedes. O próximo governo vai favorecer o Mercosul? Seria uma pergunta justa, porque a Argentina é um dos nossos principais parceiros. Mas, para Bolsonaro, o que importa é se a Cristina ganhará ou não as eleições. Ela está incluída no mesmo grupo de inimigos, com Lula e o Foro de São Paulo. Bolsonaro quer unir o inimigo externo ao inimigo interno.

Quais são os principais obstáculos ao projeto de Bolsonaro de se reeleger em 2022?
O problema para ele será se surgir uma candidatura forte de centro. São dois os maiores perigos à espreita. Um deles seria se o vice, Hamilton Mourão, saísse como candidato. Por enquanto não há indicações disso. O outro seria se o ministro da Justiça, Sergio Moro, se aproximasse de João Doria, governador do estado de São Paulo. Esses dois acabariam dividindo os eleitores de Bolsonaro.

DivulgaçãoDivulgação“Para se reinventar, o PT teria de fazer um movimento para o centro do espectro político, assim como o Lula fez na sua primeira eleição, em 2002”
O ex-juiz Sergio Moro personifica o combate à corrupção. O que seria de Bolsonaro sem ele?
Bolsonaro deverá continuar empunhando a bandeira da moralidade pública, mesmo com as investigações contra familiares e pessoas próximas a ele. Tem muita gente que acredita no presidente e que vai continuar dando apoio, independentemente do que estiver ocorrendo na prática. O que pode mudar isso é se acontecer uma ruptura forte com Sergio Moro. Se ela ocorrer, a bandeira de moralidade do presidente ficará prejudicada. Mas se Moro seguir no governo, o presidente não será muito afetado.

Por que a bandeira da moralidade pública se tornou algo tão importante nas eleições brasileiras?
Esse é um valor republicano. Não é algo que possa ser de um partido ou de outro. Quem historicamente fez campanha falando em ética na política foi o PT. Quando o PT perdeu essa bandeira por causa dos escândalos de corrupção, a sociedade manteve esses valores. Esse foi o grande ganho social que o Brasil teve. Apesar da decadência do PT, a sociedade civil seguiu lutando pelos valores de ética na política. O povo amadureceu. Aliás, eu diria que a sociedade brasileira é muito mais avançada do que a classe política.

Como assim?
Veja o sucesso da Crusoé, o sucesso de O Antagonista. Por que isso aconteceu? Hoje temos uma sociedade que acordou, que tem valores muito claros. Não são princípios que estão em um partido ou em outro. Eles estão na sociedade, nos organismos e nos movimentos que ela criou. Em época eleitoral, como os partidos querem votos, é natural que eles usem a bandeira da moralidade para conquistar eleitores.

Por que a sociedade brasileira está mais avançada que a política?
O Brasil tem uma tradição patrimonialista muito forte. Isso significa que muita gente se apropriava dos recursos públicos em proveito próprio, da família ou de sua empresa. Isso faz parte da nossa história. A mudança que aconteceu é que hoje vivemos em uma sociedade cada vez mais regida pelos contratos. Quem assina um simples contrato de aluguel sabe que precisa fazer o combinado, respeitar as cláusulas. São inúmeras as relações privadas entre as pessoas, em que é preciso seguir o que se determinou entre as partes. A partir do momento em que essas pessoas veem na televisão que aqueles que foram eleitos não têm qualquer respeito pelos contratos, isso cria uma discrepância, que gera uma revolta.

O objetivo da lei de abuso de autoridade é enfraquecer a Lava Jato?
Boa parte dos deputados que está apoiando essa lei quer se proteger, é claro. Mas o problema não é esse. A questão é ver se o projeto está ou não de acordo com o Estado de Direito. Ele fortalece a democracia? As instituições? Se as respostas forem afirmativas, então as intenções desaparecem. São circunstanciais. A meu ver, foram cometidos abusos no passado. No âmbito da Lava Jato, entendo que foi necessária uma atuação ao arrepio da lei. Até defendi isso, porque era imperativo mudar a realidade. O problema é que a exceção não pode virar a regra. Algo que funcionou não precisa necessariamente ser usado no presente. Temos instituições. Não faz sentido recorrer à prisão preventiva se o caso não segue os critérios para tanto ou só porque deu na telha do juiz ou do promotor. Se não há o risco de o acusado fugir do Brasil, de ele destruir provas, então não há como justificar esse expediente. Pegar alguém e colocar algemas só para fazer uma foto também não está correto. Colocar uma pessoa três dias na prisão para forçá-la a confessar não é prisão preventiva, é coerção. Não é uma questão de ser contra ou a favor da Lava Jato. É preciso ver o que é bom para o Estado de Direito.

O sr. não faz essas críticas por ter sido uma espécie de conselheiro do ex-presidente Michel Temer, que também acabou tolhido pela operação?
Primeiro, essa expressão de “conselheiro do presidente Temer” é de uso apenas do O Antagonista. No ano passado, eles repetiram várias vezes isso referindo-se à minha pessoa. Dito isso, o segundo ponto é que eu acredito e continuo acreditando que o Temer foi o melhor para o Brasil. Ele tirou o país da recessão. Baixou a inflação e os juros. Fez a reforma trabalhista, a terceirização do trabalho. Realizou a reforma do ensino médio. Saneou a Petrobras. Tornou a discussão pública sobre a Previdência algo transparente, o que ninguém tinha feito. O governo atual está concluindo esse trabalho feito pelo Temer, que infelizmente não pode concluir isso por causa daquela delação, entre aspas, do Joesley (Batista) com o (ex-procurador-geral da República Rodrigo) Janot que terminou inviabilizando a reforma da Previdência. Ou seja, tiraram uma frase de contexto, falaram de um tal porão (no Palácio do Jaburu) que não existe. Eu conheço bem lá. São salas de reuniões. E terminaram prejudicando o país. O que vamos observar no futuro será um resgate do governo Temer. Nesse sentido, eu diria que trabalho, sim, para ele. Mas informalmente. Eu não tive nenhum cargo. Recusei, inclusive. Mas trabalhei para o Brasil. Minha posição é republicana. Para mim, não interessa se o culpado é o Temer ou o Lula. Quero que a lei seja aplicada.

O sr. recebeu por trabalhar para Michel Temer?
Não recebi nada por isso. Foi apenas um apoio informal. Eu falo “trabalho” no sentido metafórico da palavra. Quer um exemplo? Fui bastante ativo na reforma trabalhista. Na época, não quis falar sobre isso porque eu operava também. Negociei a reforma trabalhista com interlocutores. Viajei pelo Brasil a pedido do presidente. Fiz isso juntamente com o (ex-ministro do Trabalho) Ronaldo Nogueira, visitando os sindicatos de trabalhadores e as confederações patronais. Visitamos a Confederação Nacional da Indústria, a Confederação Nacional da Agricultura e sindicatos como o Conlutas no Centro do Rio de Janeiro. Foi uma atitude absolutamente republicana.

O que mais o sr. fez no governo Temer?
Fui uma das pessoas que aproximaram o presidente do Exército. No final do período dele como vice-presidente e depois na Presidência, quem estabeleceu a mediação fui eu. Não ganhei nada por isso. Trabalhei para o Brasil, a fim de tirar o país do período de instabilidade que foi criado pela administração anterior.

Divulgação/Nilton SantolinDivulgação/Nilton Santolin“O crime compensava. Isso acabou com a Lava Jato”
De onde vem a sua boa relação com o Exército?
Vem de dois episódios. Há quase dez anos, o general Eduardo Villas Bôas era chefe do Estado-Maior do Comando Norte. Fui para uma conferência no Pará, em que ele também participava de uma mesa, e nos conhecemos. Outro episódio foi quando o Sérgio Etchegoyen me convidou para uma conferência na Escola do Exército. Ele me conhecia dos meus artigos e perguntou se eu gostaria de visitar a Amazônia. Respondi que sim e visitei boa parte dos pelotões de fronteira.

O sr. foi mesmo cotado para o Ministério da Defesa?
Sim. Fui convidado para ser o ministro da Defesa em um jantar na casa do general Villas Bôas. Não aceitei por razões pessoais e familiares. Apoiei diretamente o general Joaquim Silva e Luna.

O que há de mais surpreendente nas entrevistas que Temer lhe deu e que servirão de base para um livro sobre a passagem dele pelo governo?
A ideia de um livro foi suspensa temporariamente, mas pretendo conversar novamente com o meu editor. O Temer tem interesse e eu quero retomar o processo. Nós continuamos amigos e jantei com ele há alguns dias. Sou uma pessoa leal e não vou deixar um amigo porque, por acaso, ele foi preso durante três dias de forma arbitrária. Da mesma forma, isso vale para o ex-ministro Moreira Franco.

O que o sr. descobriu de interessante conversando com o Temer?
Ele estabeleceu uma afinidade muito boa com o presidente russo, Vladimir Putin. Havia uma empatia muito grande entre os dois. Quando Temer estava na Rússia, Putin o acompanhou no ballet Bolshoi. Depois eles estabeleceram relações bastante diretas entre os dois países. Quando surgiam temas como o boicote à carne brasileira, ele reportava diretamente ao Putin, que sempre o atendia. Uma vez, em um jantar na casa do Temer em São Paulo, ele me mostrou uma vodca que o Putin tinha lhe dado. Como eu sou um apreciador de vodca, olhei a garrafa e disse: “Mas Michel, essa vodca é polonesa!”.

Qual era a marca da vodca?
Belvedere, uma marca bastante conhecida.

Como era a relação entre Temer e Dilma Rousseff?
Era bem complicada. De quebra de confiança recíproca. Mas o que levou ao impeachment da Dilma não foi isso. Uma segunda-feira, ele me disse: “O processo (de impeachment) não vai acontecer. O Eduardo Cunha (então presidente da Câmara) se entendeu com o PT”. Segundo ele, o PT iria retirar a representação contra o Cunha no Conselho de Ética e iria defendê-lo na presidência da Câmara. O negócio, então, estava tranquilo. Em seguida, fui fazer uma visita ao general Villas Bôas, então comandante do Exército. De repente, um auxiliar legislativo nos contou: “O Eduardo Cunha vai dar início ao processo de impeachment”. Todos fomos olhar a televisão para ver alguma notícia. Peguei o telefone e liguei para o Temer. Aí ele me disse: “O PT rompeu com o Cunha, que acabou de me contar que vai reabrir o processo de impeachment”.

Em depoimentos para a Lava Jato, delatores alegaram que se renderam à corrupção porque não havia outra forma de fazer negócios. Eles foram sinceros?
Não é bem assim. As pessoas agem por imitação. Isso foi teorizado por um criminalista e filósofo do direito francês do século 19 chamado Gabriel Tarde. No seu livro A filosofia penal, ele mostra que as pessoas repetem o comportamento das outras por afinidade, gosto ou tradição. Se os bons exemplos prevalecem, a sociedade se organiza bem. Se os maus exemplos predominam, então a sociedade se desestrutura. Se um menino de uma favela vê o traficante ganhando dinheiro e saindo com todas as meninas do bairro, ele vai querer imitá-lo, é claro. Muitos empresários e políticos brasileiros olharam em volta e viram que outros estavam ganhando contratos e enriquecendo. Também constataram que ninguém era preso. Então eles copiaram isso, porque também queriam ser bem-sucedidos. O crime compensava. Isso acabou com a Lava Jato. Nas últimas eleições, Bolsonaro foi o bom exemplo. Na história dele, não havia nada de corrupção. Pode-se discutir o seu histórico como parlamentar, mas Bolsonaro era um homem íntegro. As denúncias em relação aos filhos vieram depois e agora precisam ser investigadas. Mas não se pode condená-los antes do fim do processo.

Se a economia não voltar a crescer, as pessoas continuarão dando importância para a moralidade pública?
Se a economia continuar precária, isso vai prejudicar muito Jair Bolsonaro nas próximas eleições. O brasileiro vai votar com o bolso, sim. Há 13 milhões de desempregados. Muita gente não tem o que comer. Não vai adiantar ficar falando de moralidade para pessoas de barriga vazia. O discurso da moralidade pública ficará totalmente de lado.

O senhor vê alguma possibilidade de o PT retornar ao poder?
É muito difícil isso acontecer. O PT não tem projeto nenhum para a sociedade brasileira. Está completamente atrelado à figura do Lula, que está preso e condenado. Para se reinventar, o PT teria de fazer um movimento para o centro do espectro político, assim como o Lula fez na sua primeira eleição, em 2002. Mas eles continuam radicalizando. A Gleisi Hoffmann (presidente do partido) continua respondendo ao Lula. Do ponto de vista partidário, essa política é autoritária, porque historicamente o PT sempre se caracterizou por decisões colegiadas. Agora, só segue o Lula. Ele está inviabilizando o partido e, ao fazer isso, está ajudando Jair Bolsonaro. O PT é uma linha auxiliar do bolsonarismo hoje.

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