A vingança de Marcelo Odebrecht
No auge das negociações do que à época era o maior acordo de colaboração com a Justiça já assinado no mundo, em outubro de 2016, o empresário Emílio Odebrecht alugou uma sala na cobertura do hotel Windsor, no Setor Hoteleiro Sul de Brasília, onde montou um escritório de crise para gerenciar a assinatura das 77 delações de seus executivos e o acordo de leniência de suas empresas. Enquanto analisava as propostas de penas e os benefícios oferecidos pela Procuradoria-Geral da República e definia os crimes a serem delatados, o patriarca da família dona da maior construtora da América Latina costumava comer sua salada caprese ao lado da filha, Mônica, do genro Maurício Ferro, vice-presidente jurídico do grupo, e de Newton Souza, então presidente da Odebrecht. A 1.400 quilômetros da sala bem arrumada e com buffet à vontade a partir da qual o patriarca guiava o acordo, Marcelo Odebecht, o herdeiro de Emílio, amargava havia mais de um de ano a prisão na carceragem da Polícia Federal de Curitiba. Comendo a quentinha servida pela PF e dividindo cela com outros criminosos, sem nenhuma mordomia como as de seus parentes bem acomodados no hotel da capital federal, Marcelo alimentava um ódio crescente por seus familiares. O motivo, dizem pessoas próximas a ele, era o sentimento de que havia sido abandonado. Afinal, era o único integrante da cúpula do conglomerado empresarial a estar preso e a assumir a maioria dos crimes cometidos pelo grupo criado por seu avô, Norberto Odebrecht.
A discrepância entre a situação dos quatro integrantes da cúpula da empreiteira – Emílio, Ferro, Souza e Mônica – e a de Marcelo resultou em uma briga familiar explosiva cujos desdobramentos nas últimas semanas trouxeram ainda mais problemas para o grupo. Ferro era visto como o fiel escudeiro de Marcelo e chegou a ser cotado por muitos para sucedê-lo no comando do grupo. A relação azedou, apurou Crusoé, entre julho e agosto de 2016, meses antes de a Odebrecht assinar seu acordo com a Justiça. O fato de Ferro ter ficado fora da lista de delatores foi um dos motivos, mas, segundo um ex-diretor da empresa, não seria apenas isso. “Há algo que só os dois sabem, porque foi uma mudança muito rápida, de um dia para o outro Marcelo passou a vê-lo como um inimigo”, conta.
A situação piorou ainda mais quando Marcelo deixou a carceragem da PF e foi para a prisão domiciliar. Foi quando ele teve acesso ao seu antigo computador e passou a pesquisar em seu banco de dados que guardava mais de 1 milhão de mensagens trocadas com outros executivos do grupo. Parte delas foi utilizada pelos investigadores para mostrar a participação de Ferro, o cunhado de Marcelo que virou seu inimigo figadal, em crimes que ainda não tinham sido devidamente mapeados. Em casa, o empreiteiro estabeleceu uma rotina para não deixar passar nada de importante. A partir de suas pesquisas minuciosas, ele separava o que considerava ser importante e, em seguida, enviava tudo para seus advogados, Eduardo Sanz e Nabor Bulhões. Os dados eram transformado em relatórios e encaminhados aos investigadores de Curitiba e de Brasília.
O caminho que pode levar a Odebrecht a explicar suas relações com o Judiciário está exposto no relatório produzido pelo escritório contratado pela Braskem. Anexado ao inquérito da Carbonara Chimica, o documento reúne e-mails e contratos relacionados ao repasse de 78 milhões de reais da petroquímica para o escritório Nilton Serson Advogados Associados – todas as contratações foram autorizadas por Ferro. Os pagamentos foram realizados entre 2006 e 2013 sob a alegação de que Serson atuaria em processos de interesse da Braskem. Até aí, tudo dentro da normalidade. Em tese, era um vice-presidente jurídico contratando um escritório de advocacia para trabalhar em processos. Mas a investigação interna foi além. A auditoria analisou os processos citados nos contratos com Serson e entrevistou advogados internos da Braskem para entender os motivos da contratação.
A conclusão foi a seguinte: “Não recebemos evidências de comprovação de prestação de serviços por Nilton Serson Advogados”. Ou seja, Serson recebeu 78 milhões de reais da Braskem, mas não há uma só prova sobre sua atuação em processos da empresa. Não bastasse, o atual diretor jurídico da Braskem, Maurício Bezerra, ouvido na investigação, disse que nunca esteve com Serson e creditou os contratos a uma relação direta com Ferro. “Informou que não sabia o critério de contratação utilizado por Maurício Ferro e que nunca tinha recebido qualquer trabalho elaborado por Nilton Serson”, registra o documento sobre o depoimento de Bezerra.
Na lista de contratos citada na investigação interna da Braskem há mais menções ao caso Copesul em que são atreladas decisões em cortes superiores ao repasse de valores da Braskem para o escritório de Nilton Serson. Um pagamento de 1,5 milhão em 2008 seria efetuado “quando provido o recurso de apelação da COPESUL, no processo nº 2006.71.00.016819-7”. Outros 2 milhões de reais, de acordo com o documento, “quando da decisão final e irrecorrível favorável à Braskem do processo acima, ou, ainda, da decisão favorável do leading case no STF”. Um leading case é quando o caso gera um precedente a ser seguido em decisões futuras. Um contrato de 2011, por sua vez, cita o pagamento para Serson de 1,5 milhão “quando da obtenção de decisão favorável à Braskem, no Supremo Tribunal Federal, denegatória de seguimento do Agravo de Instrumento, independentemente da interposição de eventual Agravo Regimental pela Fazenda Nacional”. Não fica claro, exatamente, que tipo de trabalho Serson prestou no caso que corria no Supremo e interessava ao grupo.
O relatório também cita pagamentos relacionados a um outro processo de interesse da Braskem sobre a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins a ser pago por empresas. O contrato previa o pagamento de 2 milhões de reais “pela adoção do STF de alternativa” ou o mesmo valor “para monitoramento/manutenção dos votos dos ministros do STF”. O que une todos os casos é o fato de a Braskem apontar os pagamentos como efetuados, mas afirmar que não encontrou provas sobre a prestação real do serviço. Fica a pergunta: por que, afinal, Serson recebeu valores por motivos pré-estabelecidos se aparentemente não prestou os serviços? Se prestou, quais serviços são esses que, segundo a investigação interna, não estão em nenhum dos processos? Em depoimento na última semana, quando perguntado se assinou algum documento relacionado aos processos, Serson disse que “fazia o que Maurício (Ferro) pedia” e atuava como consultor jurídico dele. Afirmou ainda ter atuado para “resolver problemas da Braskem” e em processos de fusões e incorporações de empresas à Braskem. Ele confirmou ter recebido os 78 milhões e disse ter devolvido 30% dos repasses para o cunhado de Marcelo. Indagado sobre a razão pela qual Maurício Bezerra, então diretor jurídico da Braskem, não recebeu nenhum parecer seu, ele disse que não chegou a conhecê-lo.
Na Erga Omnes, a PF apreendeu os celulares de Flávio. Crusoé teve acesso a essas conversas. Elas mostram mensagens em que o bacharel em direito (ele não tem carteira da Ordem dos Advogados do Brasil) se coloca como uma espécie de “resolvedor de problemas” em processos no Superior Tribunal de Justiça, no Tribunal Superior Eleitoral e no Tribunal de Justiça de São Paulo. Uma das conversas de Flávio Lúcio é com Joana Menezes Batista, advogada da Odebrecht que atuou na defesa de Marcelo Odebrecht e de outros executivos da empreiteira. Filha de Antônio Osório Menezes Batista, diretor de Administração dos Correios na época do mensalão do PT, Joana aparece como remetente de uma mensagem enviada em março de 2015 a Flávio. No texto, ela cita um mandado de segurança que tramitava no Superior Tribunal de Justiça e tinha relação com processos em que o pai figurava como parte devido aos desdobramentos do escândalo.
“Dra bom dia Me mande por email um memorial do seu pai ([email protected]) O ministro por incrível q pareça me ligou ontem e pediu p eu ir lá dia 31 (sic)”, respondeu Flávio após a advogada enviar o número do mandado de segurança. O nome do ministro que teria ligado não é citado na conversa. Após uma primeira decisão, a defesa de Antônio recorre e Flávio encaminha uma nova mensagem para Joana. “As contra razões foram juntadas e vai concluso amanhã para a vice presidência. É a Laurita a responsável”, diz ele em 20 de maio de 2015. No mesmo dia, Flávio envia uma nova mensagem. “Dra acabei de ler a peça eu acho q o relator deve ter lido outro processo. Esta tão claro Olha vamos trabalhar em cima Para mim as decisões esta sendo política e nao jurídica Tenho certeza que teremos outro resultado agora (sic)”, diz ele. “Por isso que tenho mais dificuldade em lidar com esse assunto”, responde Joana. Dois meses após enviar o número do mandado de segurança, a advogada agradece a Flávio pela vitória conquistada em um processo que envolvia seu pai. “Conseguimos. Obrigada”, diz Joana em 29 de maio de 2015. “Parabéns. Mande seu pai tomar uma por nós”, respondeu ele. Na mensagem enviada por Joana para agradecer, ela cola uma parte da decisão da ministra Laurita Vaz, então vice-presidente do STJ.
O tucano responde apenas com “Ok”. Em outra ocasião, no dia 9 de junho, ele pede para Cidão mandar o advogado Cristopher, que defende o tucano no processo do TJ envolvendo sua posse, entregar um dossiê no gabinete de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. “Manda o Cristofer ir no gabinete do Gilmar Mendes, e entregar o dossiê do TR (Toninho Ribas) e tbem citar aquele artigo da lei orgânica q fala de eleição indireta. Já está aguardando e não estiver no gabinete ele pega no café do STF. Mas não fala p o idiota falar, já falaram c o Sr. E de preferência sozinho”, diz o lobista. Na troca de mensagens não há nenhuma resposta sobre se o dossiê foi entregue. Esses diversos casos em que o ex-bandeirinha aparece atuando em processos judiciais não guardam relação com a Odebrecht, mas podem ajudar a entender por que ele recebia dinheiro da empreiteira. Os investigadores podem averiguar, por exemplo, se ele também prestava “serviços jurídicos” ao grupo.
Na semana passada, logo após a prisão de Maurício Ferro, houve um certo frisson entre ministros de tribunais superiores conhecidos por apoiar as investigações da Lava Jato. Alguns apostavam que Ferro logo seria beneficiado por alguma liminar, dada a sua proximidade histórica com gente importante das altas cortes. Do outro lado, o clima era de preocupação, justamente com a possibilidade de, a partir da detenção do cunhado de Marcelo Odebrecht, a Lava Jato acabar chegando às relações, digamos, heterodoxas da empreiteira com gabinetes de tribunais. No dia seguinte à sua prisão, Maurício Ferro ainda teve seus endereços devassados em mais uma fase da Lava Jato, desta vez por obstrução de Justiça. Também com base em trocas de e-mails com Marcelo Odebrecht, a PF mapeou sua atuação numa tentativa de atrapalhar as investigações nos primeiros anos da operação. A trama envolveria o ex-ministro José Eduardo Cardozo, advogados e até o banqueiro André Esteves, também alvo da ação. Perguntado pelos investigadores, Marcelo Odebrecht disse que foi Ferro quem comandou as iniciativas de bastidores da empreiteira quando a ideia ainda era fazer de tudo para evitar que a Lava Jato avançasse. As tentativas se deram em várias frentes, mas se mostraram frustradas. A despeito delas, a operação avançou a ponto de levar para a cadeia o próprio Marcelo, algo impensável até então. A história, como se vê, continua em aberto. E agora é Marcelo quem está com buffet à vontade em sua casa em São Paulo, enquanto Ferro experimenta a carceragem da PF em Curitiba. A vingança demorou, mas veio. E pode render muito mais.
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