O presidente Michel Temer em Brasília: os problemas do porto ainda o atormentam (Adriano Machado/Crusoé)

A operação salva-Temer

A história de como o presidente operou pessoalmente para abafar um processo que o envolvia em propinas no Porto de Santos. Inclui um encontro secreto em São Paulo e uma chantagem de 5 milhões de reais
15.06.18

Michel Temer tinha acabado de deixar a presidência da Câmara dos Deputados. Era fevereiro de 2001. O cacique do então PMDB tinha um problema para resolver. Ele ficara sabendo que, em um processo de separação em curso na Justiça de São Paulo, seu nome havia sido envolvido em uma trama complicada. Em documentos juntados aos autos, Temer aparecia como o vértice principal de um triângulo de propinas cobradas no Porto de Santos, já àquela altura um feudo do seu grupo político. A confusão começou quando Érika Santos, à época uma estudante de psicologia de Brasília, decidiu encerrar um relacionamento de três anos com Marcelo de Azeredo, indicado por Temer para presidir a Companhia Docas de São Paulo (Codesp), encarregada da administração do maior porto do país. Erika queria uma pensão de 10 mil reais de Marcelo. Ele se negava a pagar. A briga virou um processo. Para demonstrar que Marcelo tinha, sim, condições de arcar com a pensão, os advogados de Érika juntaram aos autos documentos que ela conseguira copiar do computador pessoal dele. Esses papéis, segundo os advogados, constituíam a prova cabal de que Marcelo, apesar de não ter muitos bens em seu nome, era um homem de posses. Os advogados diziam nos autos que a maior parte da renda dele vinha de “caixinhas e propinas”.

Era ali que começava o problema de Temer – um problema do qual ele conseguiu se manter distante por anos, mas que voltou com força com a Operação Lava Jato e, hoje, está no centro de um inquérito em curso no Supremo Tribunal Federal que tem tirado a sua tranquilidade, a pouco mais de seis meses do fim do mandato. Os papéis incluíam registros de seis operações que, segundo Érika sustentava perante o juiz, davam a Marcelo de Azeredo – e a seus parceiros de empreitada — uma considerável renda. Todas as transações envolviam supostas propinas cobradas de empresas que mantinham relações comerciais com o Porto de Santos. Integravam a lista de pagadores, por exemplo, o grupo Libra, que tinha acabado de ganhar a concessão de dois terminais, e uma tal de Rodrimar, pouco conhecida à época. As planilhas que Érika encontrou nos computadores do ex detalhavam a divisão da propina entre três beneficiários: MA era o próprio Marcelo de Azeredo, MT era Michel Temer e L era um sujeito então identificado apenas como “Lima”. Na partilha, MT ficava sempre com 50% dos pagamentos, MA com 25% e L com os 25% restantes. Só o Grupo Libra teria repassado 1,2 milhão de reais, dos quais 640 mil teriam ficado com Temer. Das empreiteiras encarregadas de construir os terminais ferroviário e de grãos do porto, o trio teria recebido 3,1 milhões. Em outro negócio, envolvendo a empresa responsável pela coleta de lixo no porto, a receita era mensal, segundo os documentos: 26.750 reais para Temer e 13.130 reais para Lima e Marcelo.

Érika Santos: ela trocou a periferia de Brasília por Paris (Reprodução)
Embora fosse um personagem alheio à briga do casal, o processo de separação virara um grande fardo para Temer. O temor do então deputado era que os papéis vazassem, como de fato vazaram e deram origem a reportagens publicadas pouco depois. Mas a preocupação maior era com os reflexos das planilhas da propina na própria Justiça. Era preciso se mover, e rapidamente, para resolver a encrenca. Quando o assunto veio a público, Temer negou peremptoriamente que tivesse relação próxima com Marcelo de Azeredo. Negou até que o tivesse colocado no cargo. Disse, sem mais detalhes, que Marcelo havia sido indicado para o cargo de presidente da Codesp e que a ele coube apenas o papel de consultar a bancada do PMDB. Como ninguém se opôs, afirmou, encaminhou a indicação ao então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, seu grande parceiro. Disse ainda que, tão logo tomou conhecimento do processo e das acusações nele contidas, teve a iniciativa de pedir a Padilha para substituir Marcelo de Azeredo na presidência do porto. O que o hoje presidente da República não contou, e que Crusoé revela nesta reportagem, é que nesse meio tempo houve uma intensa operação de bastidores – com participação direta dele — para tentar abafar o caso.

Temer queria fazer chegar a Marcelo de Azeredo a mensagem de que era preciso resolver o imbróglio o quanto antes. Só não gostaria de fazer isso diretamente, para não se expor. Também não queria que nenhum de seus assessores diretos cumprissem essa missão. Surgiu, então, a ideia de recorrer a um personagem insuspeito, sem ligação explícita com ele, para transmitir o recado. A essa altura, o então deputado chamou a seu gabinete, na Câmara, o jornalista José Amílcar Tavares Soares, um velho amigo em quem confiava. Explicou que precisava deixar claro a Marcelo que ele tinha de pôr um ponto final no processo movido pela ex-mulher, sob pena de comprometê-lo política e criminalmente. E pediu que Amílcar fosse o portador da mensagem. O roteiro foi previamente combinado. Temer, pessoalmente, cuidou de passar as orientações. Esmiuçou o que o amigo jornalista deveria dizer a Marcelo de Azeredo. A ideia do ultimato era clara. Marcelo deveria retribuir a nomeação para o cargo sendo leal a Temer. Tinha, portanto, que obedecê-lo. Assim foi feito, exatamente como combinado. José Amílcar tomou um avião e viajou de Brasília a São Paulo. Quando ele chegou à capital paulista, o encontro com Marcelo de Azeredo já estava marcado. Seria em um hotel da região dos Jardins.

O jornalista José Amilcar em visita ao Planalto em junho do ano passado: ele e Temer se conhecem há três décadas (Reprodução)
Amílcar foi recebido no aeroporto por Júlio Bono, um coronel da reserva que, até morrer em 2010, foi uma espécie de faz-tudo de Temer. Bono tinha sido o responsável por agendar o encontro. A conversa foi durante um café da manhã, no restaurante do hotel. O jornalista, com jeito, tratou de repassar a mensagem de Temer, que não era lá das mais sutis. “Se Michel quiser, te detona”, afirmou. Marcelo de Azeredo abriu o jogo. Disse que a ex-mulher estava lhe pedindo muito dinheiro para desistir do processo. “Ela quer 5 milhões”, afirmou. O jornalista repetiu a orientação que recebera de Temer. Era para resolver. Se Erika pedia dinheiro, era para pagar. “Se ela detonar o Michel, você vai junto”, disse Amílcar. Marcelo de Azeredo, o MA das planilhas copiadas por Érika, entendeu bem o recado. E prometeu que daria um jeito de solucionar, e logo, a querela com a ex-mulher. “Vou resolver”, disse. O jornalista saiu do encontro com a sensação de dever cumprido. E, conforme Marcelo saberia mais tarde, cuidou de reconfortar Temer no retorno a Brasília com a notícia de que seu apadrinhado no Porto de Santos cumpriria a ordem e daria um jeito de fazer um acordo com Érika.

A escolha de José Amílcar para a tarefa não foi aleatória. O jornalista tinha uma relação de bastante proximidade com Temer. De tanto se falarem, tinham se tornado amigos. A ponto de se frequentarem em eventos privados. Há poucos anos, por exemplo, Temer fez questão de comparecer ao aniversário de uma das filhas de Amílcar, em São Paulo. Estava acompanhando por ninguém menos que José Yunes, investigado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público pela suspeita de ser um dos operadores de propina do agora presidente da República. Em outra oportunidade, coube ao baiano Amílcar a tarefa de providenciar, a pedido de Temer, uma casa para que ele pudesse desfrutar de alguns dias de descanso na praia de Trancoso, no sul da Bahia, na companhia de sua então namorada, Marcela. Respeitado entre os políticos, e com excelente trânsito nos gabinetes de Brasília, José Amílcar hoje tem uma empresa de assessoria. Procurado por Crusoé para falar sobre o episódio em que levou a mensagem de Temer a Marcelo Azeredo, Amílcar primeiro evitou o assunto. Depois, ante a insistência do repórter, confirmou: “Michel estava muito preocupado e pediu que eu fosse até Marcelo. Eu realmente estive com ele, e ele disse que iria atender o pedido de Michel para resolver o problema com a ex-mulher”.

Marcelo Azeredo no final da década de 90: ele prometeu resolver o problema com Érika (Raimundo Rosa/AT)
Ao final, as coisas foram acontecendo como Temer queria. Poucos dias se passaram e Érika Santos destituiu os dois advogados que vinham defendendo seus interesses na separação litigiosa – os mesmos que haviam incluído no processo as explosivas planilhas com o detalhamento da divisão da propina no porto. Seguiu-se à decisão de desconstituir a dupla de defensores um esforço para dizer que a inclusão dos documentos no processo não passava de um grande mal-entendido. Os advogados, segundo Érika, teriam juntado os papéis sem o seu consentimento. Um acordo pôs fim à disputa. A ação perdeu a razão de existir. Mas como, por lei, um juiz que no curso de um processo vir indícios de crimes deve enviá-los para conhecimento do Ministério Público, as planilhas juntadas “por engano” foram encaminhadas a procuradores. Deram origem a dois processos na Justiça Federal de São Paulo para investigar a conduta de Marcelo de Azeredo: o primeiro apurou os indícios de corrupção e lavagem de dinheiro e o segundo, mirou na sonegação fiscal (a quebra do sigilo de Azeredo demonstrou que as movimentações bancárias dele eram incompatíveis com seus ganhos oficiais). Nenhum dos processos foi adiante. No de sonegação fiscal, Marcelo Azeredo pagou o imposto devido e a ação foi mandada ao arquivo.

A parte da história relativa a Temer, que era deputado federal e gozava dos benefícios do foro privilegiado, foi remetida para o Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Mas também não prosperou. Em 2011, foi arquivada pelo ministro Marco Aurélio Mello. O caso teve uma reviravolta quando eclodiu a delação da JBS, há pouco mais de um ano. Na esteira das revelações dos executivos do frigorífico, vieram indícios de que Temer e seu grupo político eram beneficiários também de dinheiro suspeito de empresas ligadas ao setor portuário. O fio da meada era a Rodrimar, operadora do Porto de Santos — aquela mesma cujo nome já aparecia nas planilhas do processo de Marcelo e Érika. A partir daí, tudo passou a fazer ainda mais sentido. Inclusive nomes que, lá atrás, não significavam tanto. Como o do tal “Lima”, destinatário de 25% das propinas, que a Polícia Federal hoje acredita ser o coronel João Baptista Lima Filho, amigo de longa data de Temer e também apontado como operador do presidente. Por ordem do ministro Luís Roberto Barroso, o caso antigo foi desarquivado e anexado ao inquérito que, como desdobramento da delação da JBS, investiga se Michel Temer se beneficiou de um megaesquema de propinas que funcionaria há mais de duas décadas no Porto de Santos.

Parte das planilhas: indício de propina rachada entre Temer, Lima e Marcelo
Nesse mesmo inquérito, também por ordem de Barroso, Temer teve seus sigilos bancário e fiscal quebrados. Como parte da investigação, no ano passado a Polícia Federal enviou 50 perguntas ao presidente. Em uma delas, os investigadores quiseram saber, especificamente, sobre a relação de Temer com Marcelo de Azeredo. “Vossa Excelência tem conhecimento do envolvimento de Marcelo de Azeredo em atos de corrupção ou outros crimes, durante sua gestão na Codesp? Vossa Excelência foi citado como envolvido nestes fatos? Se sim, o que Vossa Excelência tem a esclarecer sobre tais denúncias?”, indagaram. Ao responder as questões, por escrito, Temer defendeu Azeredo e mencionou o acordo em que ele e Érika encerraram o litígio. Escreveu o presidente: “Não tenho conhecimento do envolvimento do Sr. Marcelo de Azeredo em nenhum ato criminoso. Sei que em uma ação, salvo engano de reconhecimento de união estável, foi alvo de acusações por parte da autora da mesma ação que, segundo fui informado, terminou em acordo entre as partes. Lembro-me que na inicial dessa demanda foram feitas afirmações desairosas a meu respeito. Este fato levou-me a adotar medida judicial que resultou na retratação da ofensora. Não me recordo de maiores detalhes, pois transcorreram (há) trinta ou mais anos”.

A investigação está em curso. O trabalho da Polícia Federal, que até aqui não incluía o episódio que Crusoé agora traz à luz, deve ser encerrado até a primeira semana de julho. Com o resultado do inquérito em mãos, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, decidirá se oferece mais uma denúncia contra Temer – o que, em última instância, pode levá-lo a deixar a cadeira de presidente antes da hora caso o Congresso desta vez autorize a abertura de um processo criminal contra ele no Supremo. Marcelo de Azeredo e Érika Santos certamente seguirão como personagens relevantes do caso. Depois do acordo sigiloso que firmaram, ambos mudaram de ares. Érika, que quando conheceu Marcelo morava na cidade-satélite de Sobradinho, nos arredores de Brasília, foi morar em Paris. Tornou-se blogueira de moda. Nas redes sociais, ela aparece posando com roupas, óculos e bolsas de grifes badaladas. Também se exibe em viagens a destinos estrelados mundo afora. Marcelo virou empresário. Hoje, é sócio de três empresas – duas delas, de consultoria. Até o ano passado, ele era proprietário também de um buffet no Jóquei Clube de São Paulo.

Jefferson Coppola/Veja(Jefferson Coppola/Veja)O coronel Lima: suspeito participar de transações suspeitas com Temer desde os anos 1990 (Jefferson Coppola/VEJA)
Indagada sobre o acordo firmado com o ex-marido, Érika Santos não respondeu às perguntas de Crusoé. Marcelo de Azeredo não foi localizado. O presidente Michel Temer negou que tenha enviado um emissário para falar com Marcelo. “A única ação do presidente Michel Temer neste caso foi interpelar Érika Santos, que protocolou oficialmente documento no processo em que classifica de apócrifa e anônima a planilha atribuída a Marcelo Azeredo e nega que ela tenha sido retirada do computador de seu ex-companheiro”, afirmou a assessoria do gabinete presidencial. Na decisão em que ordenou a prisão do coronel Lima e de outros investigados no caso, o ministro Barroso afirmou haver “fortíssimos indícios de esquema contínuo de concessão de benefícios públicos em troca de recursos privados, para fins pessoais e eleitorais, que persistiria por mais de vinte anos no setor de portos, vindo até os dias de hoje”. Tudo junto e misturado, sobram sinais do tamanho da tormenta estacionada no horizonte de Temer.

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