Agência Brasil

A Lava Jato do Rio está na mira

Por que o braço fluminense da maior investigação anticorrupção da história do país tem mobilizado tantas forças para detê-lo
15.06.18

Foi em meio às descobertas da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba que os investigadores encontraram as pistas que dariam origem a mais uma complexa frente de investigação, desta vez com epicentro no Rio de Janeiro. Os sinais estavam nos desvios milionários na construção do Comperj, um complexo petroquímico da Petrobras, e na reforma do estádio do Maracanã para a Copa de 2014. As duas obras ficaram a cargo de empreiteiras investigadas por participação no petrolão e, a exemplo das demais que já haviam surgido de baciada no Paraná, tinham graves indícios de superfaturamento e desvios. Remetida à capital fluminense, essa ponta da investigação acabou por originar a Operação Calicute, em novembro de 2016, que levou para a prisão o ex-governador Sérgio Cabral. Era só o começo. Como desdobramento das primeiras descobertas, na sequência vieram várias outras operações. O braço da Lava Jato no Rio se fortaleceu. Se a força-tarefa de Curitiba notabilizou Sergio Moro, no Rio as dezenas de inquéritos apresentaram ao país o juiz Marcelo Bretas, com caneta tão pesada quanto a do colega do Sul.

Sérgio Cabral, personagem onipresente nas investigações, viu-se condenado cinco vezes até agora e contabiliza penas que somam 100 anos de prisão. Os seus parceiros de negócios, incluindo políticos, doleiros e empresários, foram igualmente presos. À medida que avançava, porém, a Lava Jato do Rio foi se tornando alvo de violentas reações no Judiciário – reações maiores do que as experimentadas pela sua gêmea de Curitiba.

As ordens de prisão expedidas por Marcelo Bretas a partir dos pedidos da força-tarefa montada para conduzir as investigações no Rio têm sido sistematicamente atacadas em Brasília. De maio para cá, já foram mais de duas dezenas de decisões para tirar da cadeia alvos do braço fluminense da Lava Jato. Os habeas corpus partiram do ministro Gilmar Mendes que, em seus despachos, fez questão de aplicar reprimendas ao magistrado e aos investigadores fluminenses. Em uma dessas decisões, por exemplo, o ministro do Supremo admitiu que não caberia a ele julgar o habeas corpus de Orlando Diniz, ex-presidente da Federação do Comércio do Rio (Fecomércio-RJ), porque ainda restavam etapas nas instâncias inferiores a serem cumpridas e uma regra do Supremo veda esse tipo de “atalho”. Mesmo assim, Gilmar afirmou que abriria uma exceção, porque a decisão de Marcelo Bretas configurava “abuso de poder”. O ministro arrematou dizendo que as acusações eram sobre fatos de anos atrás e, por isso, Orlando Diniz não representava riscos à investigação. O habeas corpus foi concedido.

Adriano Machado/CrusoéO ministro Gilmar Mendes já concedeu mais de 20 habeas corpus para liberar presos da Lava Jato do Rio (Rosinei Coutinho/STF)
Isso foi em 31 de maio. Quatro dias depois, Gilmar Mendes pensou de forma diferente. Estava em questão um pedido de habeas corpus feito pela Defensoria Pública de São Paulo sobre a situação de um homem de 56 anos, condenado e preso na cidade de Franca em 2017. Os fatos remetiam a 2013, quando o homem roubou 140 reais de um taxista, usando uma faca. A Defensoria pedia prisão domiciliar humanitária porque o detento ficou cego, depois que um tumor cerebral lhe causou um acidente vascular, tem paralisia dos membros, é cadeirante, tem HIV e precisa da ajuda de colegas de celas até para suas necessidades mais comezinhas. Gilmar Mendes decidiu que não cabia libertar o preso. Por quê? Porque era preciso aguardar a decisão das instâncias inferiores e, nesse caso, não havia “flagrante hipótese de constrangimento ilegal”. O habeas corpus foi negado.

As ordens de Gilmar Mendes para soltar investigados são a camada mais visível da disputa entre Brasília e Rio. Tudo começou quando o empresário da área de transportes Jacob Barata Filho foi preso pela Lava Jato em 2017 – e solto três vezes por Gilmar Mendes. A mulher do ministro, Guiomar Feitosa, é sócia do escritório de Sérgio Bermudes, que tem em sua carteira de clientes no Rio ninguém menos que Jacob Barata Filho. Além disso, Gilmar foi padrinho do casamento da filha de Barata com um sobrinho de Guiomar. A força-tarefa do Rio decidiu comprar a briga e pediu, formalmente, a suspeição e o afastamento do ministro. Para isso, citou a proximidade de Guiomar com o acusado e o fato de Francisco Feitosa, cunhado de Gilmar Mendes, ser sócio de Barata numa empresa de ônibus no Ceará. Além disso, o empresário é defendido na esfera criminal por um advogado que atua em favor do próprio Gilmar Mendes em outros processos. O pedido de suspeição foi levado ao Supremo pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot. Raquel Dodge, a atual titular do cargo, se manifestou contra o pleito.

Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio, é um dos pivôs da guerra (Reprodução/TV Globo)
O pedido dos procuradores para afastar Gilmar dos processos de Jacob Barata Filho deflagrou a guerra particular entre o ministro e a Lava Jato do Rio, mas existe algo a mais nessa disputa. A força-tarefa fluminense começou a cutucar um quisto: as relações multimilionárias entre advogados ligados a ministros e empresários interessados em decisões dos tribunais superiores. Orlando Diniz, aquele que foi solto por Gilmar para evitar “abuso de poder”, esteve à frente da maior contratação já vista de escritórios de advocacia do Rio, de São Paulo e de Brasília – alguns deles ligados a gente importante do Judiciário.

Nos últimos anos, a Fecomércio do Rio gastou incríveis 180 milhões de reais com uma salada de bancas que inclui o advogado do ex-presidente Lula (68 milhões de reais), um filho (25 milhões de reais) e um sobrinho (4,7 milhões) de ministros do STJ e a banca da mulher de Sergio Cabral, Adriana Ancelmo (19 milhões de reais), entre outros felizardos. É até difícil imaginar a quantidade de demandas judiciais que poderia explicar tanto dinheiro gasto com escritórios de advocacia, mas a principal disputa da Fecomércio nos tribunais não era nada de outro mundo: tinha por objetivo manter Orlando Diniz no cargo da entidade e, assim, no controle do orçamento bilionário da entidade (e das contratações).

Some-se a isso a operação “Câmbio, desligo”, na qual os investigadores pediram a prisão de mais de 40 doleiros – entre eles, Dario Messer, dono do título de “doleiro dos doleiros”. A ordem partiu do mesmo Marcelo Bretas. A operação causou arrepios em políticos e empresários poderosos do Rio e de Brasília. Tudo graças ao entendimento de que, a partir desse pedaço da Lava Jato, pode surgir a segunda Lava Jato, uma vez que essa rede de doleiros controlava um emaranhando de 3 mil empresas com contas em pelo menos 52 países. Contas pelas quais teriam passado 1,6 bilhão de dólares. A hipótese óbvia é de que, por trás desse esquema, haja figuras que ainda não foram fisgadas pela maior investigação anticorrupção da história do Brasil.

Reprodução/TV GloboO empresário Jacob Barata Filho tem ligações estreitas com a família de Gilmar (Reprodução/ TV Globo)
Com tantas e variadas prisões (e solturas), as trocas de tiros entre Gilmar Mendes e a Lava Jato do Rio ganharam intensidade. O ministro fala em conluio entre os juízes e procuradores da Lava Jato. Chegou a dizer até que as prisões seriam um método de tortura para a obtenção de novas delações. O juiz Marcelo Bretas contra-atacou, mas de maneira comedida. Em um dos processos enviados ao Supremo, ele beliscou Gilmar dizendo que corrupção não é um crime menor. No Twitter, onde costuma aparecer com alguma frequência, ele deu um recado cifrado, embora claríssimo: “Com leis ruins e juízes bons ainda é possível governar. Mas com juízes ruins as melhores leis não servem para nada”. A frase é atribuída a Otto von Bismarck, o estadista que unificou a Alemanha no século XIX.

Outro capítulo do embate aconteceu na esteira da revelação de que o IDP, o Instituto Brasiliense de Direito Público, era patrocinado pela Fecomércio. O IDP tem como sócio Gilmar Mendes, que soltou Orlando Diniz, que presidiu a Fecomércio, que deu dinheiro ao IDP. A Lava Jato do Rio acionou a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, para que ela peça, de novo, a suspeição de Gilmar Mendes. Desta feita, nos processos que envolvem Orlando Diniz. O pedido cita reportagem de Crusoé sobre o tema.

Nessa guerra que opõe Brasília ao Rio de Janeiro, há um elemento adicional. Trata-se de uma inspeção programada para esta semana no Rio de Janeiro. Um dos alvos da medida é o desembargador Abel Gomes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Gomes tem importância fundamental para a Lava Jato. Ele é o relator da operação no tribunal e, portanto, encarregado de confirmar ou cassar as decisões de Marcelo Bretas. O dado pitoresco é que a inspeção será feita por Ney Bello, desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, que já foi juiz auxiliar no gabinete de Gilmar Mendes e é o candidato dileto do ministro à próxima vaga no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Na prática, um desembargador ligado a Gilmar vai fiscalizar os atos de um desembargador a quem estão subordinadas as decisões de Marcelo Bretas, desafeto de Gilmar. A inspeção analisará cinco habeas corpus negados por Abel Gomes. Quatro deles tinham como interessado Jacob Barata Filho. Em abril, Gilmar já havia determinado a abertura de inquérito para apurar se houve abuso de autoridade na transferência de Sérgio Cabral do Rio para Curitiba. Na ocasião, o ex-governador foi fotogrado com os pés acorrentados. Ali Mazloum, também juiz do gabinete de Gilmar, foi designado para tocar o caso. E é Gilmar, evidentemente, quem vai dar o veredicto.

A defesa do Estado de Direito não explica tanto empenho de Brasília para deter o braço fluminense da Lava Jato. Mas a defesa de um certo tipo de direito pode emprestar sentido a essa história que está longe do seu epílogo.

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