A educação brasileira é prisioneira do século 20

15.06.18

As grandes potências lançaram-se numa corrida cabeça-a-cabeça (literalmente) por proeminência mundial no âmbito dos sistemas educacionais. Durante séculos, militares e diplomatas protagonizaram as relações internacionais. Hoje certamente são acompanhados no delineamento do poder global pelos estrategistas da educação.

O “talentismo” está sucedendo o capitalismo. Está é a projeção de Klaus Schwab, fundador do Fórum de Davos. Para ele, imaginação e capacidade de inovar – não recursos naturais, capital ou armamentos – são os vetores da “Era da Adaptação” em que mergulhamos.

Universidades europeias e americanas inauguram campi no Oriente Médio e na Ásia-Pacífico. Chineses e indianos lotam a pós-graduação nas escolas da Ivy League. Quando voltam para casa, “clonam” em seus países o que lhes interessa da educação de ponta em administração, economia e ciências exatas a que tiveram acesso no Ocidente.

Nessa linha, a educação também é um dos grandes divisores de água entre o dinamismo da Ásia, de que é exemplo a China, e o resto do mundo em desenvolvimento. De acordo com o ranking ‘Times Higher Education’ de 2018, das dez melhores universidades nas economias emergentes, sete estão na China.

Muitos estudiosos do desenvolvimento entendem que a vigorosa migração de atividade produtiva do Atlântico para o Pacífico é causa e consequência de uma abordagem educacional que prioriza o ensino de “STEM” (sigla em inglês para ciências, tecnologia, engenharia e matemática) em detrimento de disciplinas como história, arte ou sociologia. É inegável, contudo, que a capacidade de inovação dos EUA se deve tanto ao conhecimento das ciências exatas quanto ao das humanidades. Mark Zuckerberg, criador do Facebook e, claro, apaixonado por computação, era estudante de humanas em Harvard.

Há no mundo um embate “liberal-ocidental x asiático” nas filosofias de ensino. Mas tal disputa esconde algo que vai além da competição sobre o que e como estudar. A Coreia do Sul, por exemplo, é tida como caso paradigmático de ascensão socioeconômica turbinada por investimentos na educação – área em que, portanto, não deveria “mexer em time que está ganhando”. Ora, a prioridade estratégica sul-coreana para as próximas décadas é transformar radicalmente suas estruturas de educação de modo a preparar o país para a chamada “economia criativa”.

Nesses novos tempos, mesmo para um país reconhecidamente exitoso em educação como a Coreia do Sul, o desafio é muito maior do que sublinhar diferenças ideológicas com o vizinho ao Norte ou adestrar funcionários robotizados para seus conglomerados multissetoriais como Hyundai, LG ou Samsung.

A educação tem de interagir com ambiente pró-mercado, amplo acesso a capital de risco e valorização do empreendedor. A proatividade dos sul-coreanos numa área em que dominam – figuram no topo do ranking do Pisa, destinam 4% do PIB a Pesquisa & Desenvolvimento e são o quarto maior depositante de novas patentes – não deixa dúvidas. Estamos numa disputa que vai além da educação ou conhecimento e se dá no âmbito de “ecossistemas institucionais” mais ou menos aptos a prover inovação – e, consequentemente, prosperidade e poder.

Essa percepção no Brasil ainda é pequena. O país paga preço elevado pelas várias apostas que fez em conceitos típicos do século 20, período imantado por grandes sistemas ideológicos. De um lado, a economia coletivista orientada por núcleo dirigente de caráter assembleísta ou ditatorial. De outro, democracias representativas alicerçadas por mecanismos de mercado. Tais visões de mundo constituíram o jogo básico da Guerra Fria. Mais do que um período “cronológico”, o século 20 foi um “ar do tempo”. Noções como educação, eficiência, moral, papel da mídia, Estado, sociedade civil tinham sua definição eclipsada pelo embate ideológico binário.

O Brasil mergulhou no século passado, em especial a partir de 2003. Daí a instrumentalização do BNDES e das estatais para o “desenvolvimento endógeno” e “autônomo” – referencial do “Brasil potência” e a política externa “Sul-Sul” (eufemismo para terceiro-mundismo). Também é novecentista a pretensa dicotomia “objetivo social x interesse do mercado”.  A dinâmica da competitividade não permite tais coisas num contexto em que China e Índia integram a geoeconomia. No século 21, “conquistas”, “direitos” e “fatias de mercado” só podem ser entendidas como recompensas a resultar do jogo jogado todos os dias.

Nos meios acadêmicos brasileiros, numa constatação que até chineses achariam brincadeira, ainda se utilizam em pleno século 21 categorias como “operariado”, “burguesia”, “classe dominante”, “divisão internacional do trabalho” ou “imperialismo”. Dessa forma, não surpreende que o Brasil vá tão mal em índices que medem um dos principais resultados do investimento em educação : a capacidade de inovar.

Obviamente há inúmeros frutos da educação que não se prestam à quantificação. Mas para um país que se quer criativo e empreendedor ocupar em 2017 a 69ª colocação no Índice Global de Inovação é revelador.

Inovar surge da interação entre capital, conhecimento, empreendedorismo e um ecossistema que catalise tudo isso. Seria possível esperar do Brasil grandes inovações quando investimos apenas 1% de nosso PIB em Pesquisa & Desenvolvimento e concentramos 80% dos gastos com inovação em instituições governamentais? E nas universidades públicas muitos professores e alunos demonstram feroz resistência ideológica a laços estreitos com a livre iniciativa.

Nossa subperformance inovadora tem menos a ver com ciência, criatividade ou capacidade empreendedora e mais com camisas-de-força ideológicas, microeconômicas e institucionais. Os obstáculos que coíbem a inovação empresarial são os mesmos que bloqueiam nosso caminho à prosperidade.

É por isso que a chamada “Quarta Revolução Industrial” está a exigir uma nova educação menos parametrizada por ideologia e mais adaptável ao empreendedorismo. Torna-se estratégica a relação escola-empresa. Experiências de sucesso – na Ásia, Europa ou Américas, pouco importa –estruturam unidades educacionais em regiões geograficamente densas em empresas de base tecnológica, os chamados “clusters”.

A palavra educação hoje retoma a sua origem latina. Educar (educere) é liderar, extrair o melhor que cada um tem dentro de si. Ensinar é conduzir alguém a que possa construir, com seu próprio exercício de liberdade, a sua “sina” (destino).

Nesse novo contexto, substituem-se paradigmas. Educação tradicional não é mais garantia de entrada no mercado de trabalho. Com home-offices e concorrência transfronteiriça, diplomas ou símbolos semelhantes não são necessariamente diferenciais. As especialidades não são mais lineares – superpõem-se disciplinas e carreiras, profissões aparecem e desaparecem. Rotinas são substituídas. Previsibilidade dá lugar à criatividade.

O “mundo 4.0″, longe das tintas ideológicas do século 20, exige uma educação que se constrói sobre o tripé pertinência, atualidade e aplicabilidade. Todo o conhecimento é pertinente, mas há uma hierarquia de prioridades orientada nas necessidades de sociedade e mercados. A busca do que é “atual” é estonteante — dada a velocidade com que conhecimentos emergem e ficam obsoletos. E não há incompatibilidade entre teoria e prática, mas o conhecimento teórico tem de visar a uma intervenção na realidade.

Nesse universo, há enormes distorções ideológicas a superar no Brasil. A educação, para além de apenas um “direito”, é tarefa de responsabilidade compartida entre indivíduo, família, empresa e governo. Numa era digital-cognitiva, métodos quantitativos são compulsórios, mesmo para as mais abstratas ciências humanas. E é preciso incutir, desde a mais tenra idade, uma forma “econômica” de pensar (introjetar a equação custo-benefício).

Em muitas partes do mundo, anacronismos ideológicos estão se fossilizando rapidamente. Países redesenham políticas educacionais para o que realmente importa. No Brasil, e principalmente nas universidades, ainda se traça uma cartografia baseada em fronteiras esquerda-direita que não fazem mais sentido.

Tão logo as relegue ao passado, a educação no Brasil deixará de ser uma espécie de “prisioneira política” do século 20. Só assim teremos alguma chance na duríssima corrida global por talento ora em curso.

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