Paulo Lisboa/Brazil Photo Press/Folhapress

A polícia na mira

Depois do Coaf e da Receita, a Polícia Federal vira alvo da ofensiva contra os órgãos de investigação. O ministro da Justiça, Sergio Moro, é a vítima colateral da trama
23.08.19

Uma declaração do presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira, 15, acendeu todos os alertas no Máscara Negra, como é conhecido o prédio que abriga a sede da Polícia Federal, na região central de Brasília. Sem consultar a cúpula da corporação, o presidente anunciou a troca do superintendente do Rio de Janeiro, que, segundo ele, seria demitido por questões de produção e gestão. Com a notícia ganhando as manchetes, a tática da polícia foi marcar território e deixar claro que, a despeito da tentativa de Bolsonaro, a prerrogativa de substituir o superintendente era do diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, escolhido para o cargo pelo ministro Sergio Moro, de quem é amigo. Como Crusoé noticiou, a estratégia foi divulgar uma nota, o quanto antes, deixando evidente que, sim, haveria a troca do superintendente, mas não pelos motivos anunciados por Bolsonaro, e que o escolhido para ser o novo titular não seria aquele que o presidente queria. Estava instalada mais uma crise em um ambiente que já não era dos melhores. Se a Receita Federal e o Coaf, o órgão de inteligência financeira do governo, já estavam sob pressão, com sinais de ingerência do Planalto para enquadrá-los, atendendo a interesses do próprio presidente e de figuras importantes do poder, como ministros da Suprema Corte, a inclusão da Polícia Federal no rol de alvos do tiroteio fez aumentar a suspeita de que há algo muito estranho no ar.

Bolsonaro não gostou nada da reação de Valeixo. Entendeu a nota divulgada pelo diretor-geral como uma afronta. Mas procurou não explicitar sua contrariedade de imediato. Se em um primeiro momento disse que quem mandava era ele e que o combinado era nomear o delegado Alexandre Saraiva, atualmente em Manaus, e não Carlos Henrique Oliveira, o escolhido de Valeixo, lotado em Pernambuco, horas depois o presidente sinalizou que não bateria o pé para fazer valer sua vontade. “Tanto faz para mim. Eu sugeri o de Manaus, e se vier o de Pernambuco não tem problema, não”, disse. Apesar da declaração, estava patente que ele não havia engolido a postura do diretor-geral. E que, mais cedo ou mais tarde, daria o troco. Foi exatamente o que aconteceu. Na manhã desta quinta-feira, 22, Bolsonaro voltou ao tema. Desta feita, deixou claro seu descontentamento. “Se eu não posso trocar o superintendente, vou trocar o diretor-geral”, disse. De novo, sobrou para Sergio Moro, que já vinha sendo paulatinamente enfraquecido pelo presidente – a decisão de Bolsonaro de demitir o presidente do Coaf, uma escolha pessoal do ministro, e de reestruturar o órgão era também um sinal do esforço para mostrar quem manda. “Se eu trocar hoje, qual o problema? Está na lei que eu que indico e não o Sergio Moro. E ponto final”, afirmou o presidente. “Ele (Valeixo) é subordinado a mim, não ao ministro. Deixo bem claro isso aí. Eu é que indico. Está bem claro na lei.”

Pegou mal. Nas horas seguintes, não faltaram especulações sobre o futuro de Valeixo. Ele poderia entregar o cargo a partir da declaração do presidente? Seria demitido? O próprio Sergio Moro, cuja autoridade acabara de ser posta em xeque mais uma vez pelo presidente, poderia se demitir? As bolsas de apostas em Brasília fervilhavam. Moro evitou falar. “Sem comentários”, dizia ao ser indagado sobre as declarações de Bolsonaro. Nos bastidores, porém, sabe-se que ele não está feliz. E, a pessoas próximas, já fala inclusive sobre qual seria o momento ideal para deixar o cargo. A um desses interlocutores, apurou Crusoé, Moro teria indicado que não é um bom negócio sair antes de o Supremo Tribunal Federal julgar o processo que tenta declará-lo suspeito para condenar o ex-presidente Lula. No posto, ele avalia, as chances de derrota são menores. Manter-se por enquanto na cadeira de ministro, por mais que os percalços estejam aparecendo em cascata, também seria uma forma de evitar danos maiores à Lava Jato em um momento tão sensível.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMoro: o entorno do ministro entende que Bolsonaro tem trabalhado para esvaziá-lo
Ainda não está claro quais serão as consequências da celeuma. O que se sabe, porém, é que a crise guarda relação direta com o entendimento de que está em marcha um acordão, articulado pelas cúpulas dos três poderes, para impor limites aos órgãos de investigação. Como mostrou a última edição de Crusoé, as tentativas de ingerência do governo nos principais órgãos de investigação envolvidos na Lava Jato se dão no mesmo momento em que setores do Judiciário, capitaneados pelo ministro Dias Toffoli, com o apoio dos presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, se organizam contra os “excessos” que avaliam haver na atuação dessas instituições.

O alinhamento de interesses passou a ficar mais explícito depois que o filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, foi beneficiado por uma decisão de Toffoli. Ao acolher um pedido dos advogados de Flávio e paralisar todas as investigações iniciadas a partir de dados da Receita e do Coaf sem autorização prévia da Justiça, Toffoli livrou o primogênito de Bolsonaro de uma apuração que caminhava para uma acusação formal por lavagem de dinheiro, peculato e organização criminosa. Os sinais de que há uma articulação sistemática em curso se acumulam. A Receita Federal, alvo da fúria de setores dos tribunais superiores desde a descoberta de que auditores estavam mapeando as transações financeiras de alguns ministros e seus familiares, continua na berlinda. O número dois do órgão foi demitido na segunda-feira, 19. A pressão para que outros dirigentes sejam trocados segue firme. O Coaf, como muitos queriam, deixou de existir como vinha funcionando até agora. Por meio de uma medida provisória assinada por Bolsonaro, mudou de nome – se chamará Unidade de Inteligência Financeira – e passou para a alçada do Banco Central. Seu presidente, Roberto Leonel, que integrou a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e fora levado para Brasília por Sergio Moro, caiu. No Congresso, foi finalmente aprovada a Lei do Abuso de Autoridade, um velho desejo dos detratores da Lava Jato que agora está sobre a mesa de Jair Bolsonaro aguardando a sanção presidencial.

As consequências da ofensiva sobre o resultado do trabalho dos órgãos de investigação podem ser avassaladoras. Sob a tutela do Banco Central, o antigo Coaf fica mais suscetível à ingerência dos seus principais clientes, os bancos, a quem cabe abastecer o órgão com informações sobre transações financeiras suspeitas. Por muitos anos, a obrigação de comunicar essas operações não foi levada ao pé da letra. Mais recentemente, o número de comunicações aumentou exponencialmente. Os informes ao Coaf triplicaram em cinco anos. Saíram de 1,2 milhão em 2013 para pouco mais de 3 milhões em 2018. E isso não ocorreu porque, de repente, os bancos decidiram, por si, ser mais criteriosos com as operações de seus clientes. Foi o temor de punição que os fez alterar as rotinas e ampliar o rigor. Por causa da Lava Jato, que poderia descobrir as movimentações por meio das quebras de sigilo e, mais tarde, questioná-los por não terem cumprido o papel de comunicar as suspeitas, os bancos aperfeiçoaram o trabalho de compliance. Passaram a buscar os padrões de transações praticadas em esquemas criminosos para regular seus computadores em busca de clientes enrolados. Foi assim, por exemplo, que em 2017 o Itaú encontrou as transações suspeitas em meio ao 1,2 milhão de reais que Fabrício de Queiroz, ex-motorista da Flávio Bolsonaro, movimentou. Agora, sob a estrutura do Banco Central, comandado por um presidente egresso do sistema financeiro, a preocupação é que esse rigor seja relativizado.

Agência BrasilAgência BrasilBolsonaro: Se eu não posso trocar o superintendente, vou trocar o diretor-geral”
Na Receita Federal o risco é semelhante. O órgão, curiosamente, foi enquadrado por excesso de eficiência. Como toda agência de tributos, sua função é fiscalizar a arrecadação e possíveis fraudes ou casos de sonegação fiscal. Dona do maior banco de dados do país, a Receita consegue analisar em profundidade as relações entre pessoas físicas e jurídicas com sinais de irregularidades. Na Lava Jato, por exemplo, o órgão teve papel fundamental no mapeamento de empresas de fachada utilizadas para transformar milhões de reais dos cofres públicos em dinheiro vivo destinado a políticos e afins. Os bancos de dados são tratados por máquinas programadas para seguir padrões de movimentações e transações que possam revelar fraudes. Seguindo o que preconizam tratados internacionais, o Fisco também dá suporte a grandes operações por meio de sua Coordenação-Geral de Pesquisa e Investigação, a Copei, e desenvolve estratégias de fiscalização tributária por meio da Subsecretaria de Fiscalização. Quando são encontrados indícios de outros crimes, como lavagem e corrupção, os dados são enviados ao Ministério Público.

Foi justamente porque esses sistemas vinham funcionando como deveriam que a Receita virou alvo da ira de poderosos em diferentes posições na cúpula do poder nacional. Os primeiros sinais de uma possível tentativa de interferência surgiram logo no início do atual governo. Funcionários de carreira estranharam a escolha de Marcos Cintra para a chefia do órgão. À diferença de seu antecessor, Jorge Rachid, Cintra não integra os quadros do Fisco. A desconfiança aumentou quando a instituição passou a ser atacada, especialmente por ministros do Supremo, em razão do vazamento de informações sobre um pente-fino que funcionários de carreira estavam fazendo nas declarações de renda de parentes de altos magistrados que possuem escritórios de advocacia. O primeiro a gritar foi Gilmar Mendes. Cintra foi criticado por não sair em defesa dos subordinados. O que era só uma suspeita passou a ganhar contornos mais fortes quando ele trocou o chefe da Copei, Gerson Schaan, por Ricardo Feitosa, em maio passado. Desde então, a pressão só tem aumentado. Na última semana, integrantes do segundo escalão da Receita ameaçaram entregar os cargos. Em uma reunião com Cintra, pediram a demissão de Feitosa, que, segundo eles, seria ligado a Gilmar. Eles também protestaram contra outras tentativas de ingerência que, aparentemente, estão a caminho. Por exemplo: o atual subsecretário de Fiscalização, Iágaro Martins, está com a cabeça a prêmio. Foi ele o responsável por ordenar que uma equipe de experientes auditores fizesse a análise que tanto irritou ministros da cúpula dos tribunais. O trabalho resultou em uma lista de 133 agentes públicos e familiares em cujas declarações foram encontrados indícios de irregularidades. Na lista, estão as mulheres de Dias Toffoli, Roberta Rangel, e de Gilmar Mendes, Guiomar Feitosa.

Na Polícia Federal, os sinais mais recentes vindos do Palácio do Planalto foram entendidos que mudanças podem estar também a caminho. Em conversas reservadas nos últimos dias, Maurício Valeixo, o diretor-geral, deixou claro que não vai aceitar interferência política. Disse que se o presidente da República insistir em indicar seus escolhidos para postos-chave da corporação, está disposto a entregar o cargo – no que seria seguido por uma série de outros colegas que ocupam posições de comando. Valeixo repete que a Polícia Federal se fortaleceu institucionalmente nos últimos anos, especialmente com a Lava Jato, e não pode correr o risco de voltar a se dobrar às vontades dos poderosos de plantão, sob pena de sua atividade fim ser prejudicada. Faz todo sentido. A Polícia Federal é um órgão de estado, e não de governo. Por muitos anos, no passado, a instituição se viu instrumentalizada e submetida às forças políticas dominantes. Com o passar do tempo, isso mudou. Os delegados passaram a ter mais autonomia. E se fortaleceram a ponto de virarem, eles próprios, garantidores da independência da polícia. A reação que eles ensaiam a Jair Bolsonaro é, dizem, um exemplo do amadurecimento da instituição.

O momento é crucial, e o resultado do jogo pode ser determinante para o futuro de investigações como a Lava Jato. Nos próximos dias, deverá ter finalmente um desfecho a corrida para a chefia da Procuradoria-Geral da República. Também nesse front, Bolsonaro já indicou que deseja ter alguém alinhado aos seus propósitos. Alguns dos nomes apontados como favoritos do Planalto acabaram não resistindo aos primeiros escrutínios públicos. Agora a ordem é anunciar o escolhido de supetão, de maneira a encurtar ao máximo o tempo de exposição e, consequentemente, de críticas. Será, certamente, mais um importante capítulo para a história do que, até aqui, se desenha como um preocupante acordão que tende a enfraquecer sobremaneira os órgãos de investigação. A ver se o presidente que se elegeu entoando o discurso do combate à corrupção acabará se vergando à cultura da impunidade atávica que o Brasil demorou tanto tempo para, ao menos, começar a mudar.

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