Reprodução/redes sociaisCristina com Alberto Fernández, em campanha: eles falam em renegociação com o FMI

A Argentina não aprende

O retorno de Cristina à Casa Rosada não deve ser a reedição de suas políticas desastradas, mas seus crimes com certeza ficarão impunes
16.08.19

Os percalços legais de Cristina Kirchner começaram no final de 2015, assim que ela deixou a cadeira de presidente de Argentina. Foi aí que um punhado de juízes decidiu levar a sério as denúncias que se acumulavam contra seu governo e cuidou de acelerar as investigações. Desde então, Cristina já foi parar no banco dos réus, teve bens embargados por três magistrados diferentes e precisa mendigar autorização judicial toda vez que quer visitar a filha Florencia Kirchner em Cuba. Agora senadora, a ex-presidente responde a processos por lavagem de dinheiro, associação ilícita, acobertamento de atentado terrorista, administração fraudulenta e enriquecimento ilícito. Só não foi presa preventivamente porque goza de foro privilegiado.

Essa pressão já foi dissipada. Agora Cristina está mais preocupada em voltar em grande estilo ao governo. No domingo, 11, a chapa na qual ela concorre como vice-presidente foi a vencedora das eleições primárias, com 47% dos votos. O resultado surpreendente, quinze pontos percentuais à frente do atual presidente, Mauricio Macri, deixa a dupla Alberto Fernández-Cristina Kirchner na posição de favorita para as eleições gerais de outubro. Com a economia em queda livre, a vantagem pode ser ampliada e o pleito ser decidido ainda no primeiro turno.

Como os juízes argentinos são muito dependentes do Executivo, o ânimo para seguir no encalço dos corruptos já despencou. “A Justiça na Argentina não é muito independente. Agora, o mais provável é que os juízes que investigam os casos federais de corrupção engatem marcha lenta”, diz o advogado Ricardo Monner Sans, presidente da Associação Civil Anticorrupção, que apresentou as primeiras denúncias contra Cristina, quando ela ainda estava na Casa Rosada.

Se a chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner se consagrar nas urnas em outubro, Monner Sans acredita que a ex-presidente voltará a ter acesso aos seus bens. Outra possibilidade é a de que Fernández indulte sua vice, o que pode acontecer antes até de ela ser condenada em algum processo. O próprio candidato que encabeça a chapa já defendeu a medida, em várias entrevistas. Ele já disse que, caso seja eleito, os juízes dos casos de Cristina terão de dar explicações e poderão ser submetidos a um julgamento político. Uma evidente ameaça.

Néstor J. Beremblum/Agência Eleven/FolhapressNéstor J. Beremblum/Agência Eleven/FolhapressCristina Kirchner no banco dos réus no Tribunal Federal de Comodoro Py, em Buenos Aires: investigações devem entrar em marcha lenta
Para quem estava a um passo da porta da cela, não há conquista maior que a garantia da impunidade. E Cristina pode se vangloriar, porque foi dela toda a maquinação que pode perdoá-la. Em maio, a ex-presidente fez um anúncio insólito dizendo que tinha escolhido o peronista Alberto Fernández para ser o candidato presidencial em sua chapa. Ela seria apenas a vice. Apesar de não ter carisma e de estar com os dias ociosos, Fernández se mostrou um hábil articulador e unificou o peronismo. “Ele tem boas pontes com todas as cabeças do establishment peronista, o que inclui governadores, deputados, senadores, prefeitos e membros de outros partidos. O que estamos vendo agora é um direcionamento para o centro peronista, em um movimento parecido como que tivemos após a crise de 2001 e 2002”, diz o historiador Fernando Devoto, da Universidade Nacional de San Martín. A comparação remete a um período turbulento da história dos nossos vizinhos: na crise experimentada por eles no início do século, ao equiparar o valor do dólar com o peso, o governo ficou sem reservas e proibiu os saques nas agências bancárias, a população foi para as ruas protestar e, em cinco meses, cinco presidentes se alternaram no poder.

Seis em cada dez argentinos acreditam que, se a derrota de Macri for confirmada, Cristina é quem dominará a Casa Rosada. Somente 11% pensam que Alberto Fernández tomaria as decisões, segundo o Centro de Opinião Pública da Universidade de Belgrano. Mas há, sim, a possibilidade de que Alberto Fernández faça um governo com suas próprias marcas. “É certo que Cristina Kirchner terá um papel preponderante. Nesta eleição, ela mostrou que continua sendo uma figura central na política argentina”, diz o cientista político argentino Patricio Giusto, diretor da consultoria Diagnóstico Político, em Buenos Aires. “Se assim quiser, no entanto, Alberto Fernández poderá consolidar sua posição no poder. Ele tem todas as condições para fazer isso. Não creio que ele será um fantoche da ex-presidente, como muitos vaticinam.”

Fernández tem ascendência em diversos setores do peronismo porque já perambulou por vários deles. Nos anos 1990, ele foi superintendente de Seguros do governo de Carlos Menem, que abriu a economia do país. Também esteve vinculado com o ministro da Economia da época, Domingo Cavallo, o defensor da paridade entre o peso e o dólar. Após a crise de 2001 e 2002, em que a Argentina declarou a moratória, ele foi convidado por Néstor Kirchner para ser seu chefe de gabinete. Aos poucos, passou a ser conhecido como uma pessoa com boas relações, por exemplo, com o jornal Clarín, conhecido crítico das administrações kirchneristas, e com a embaixada dos Estados Unidos. Quando assumiu a presidência em 2007, Cristina Kirchner o manteve no posto. Um ano mais tarde, ela impôs tarifas pesadas de exportação para o setor rural. Também nessa época, desentendeu-se com o Clarín e com o próprio Fernández, que abandonou o governo em 2011.

Dessa época surgem mais indícios de que ele pode não se submeter integralmente às vontades da vice, caso ambos confirmem as previsões e se elejam. Livre das amarras oficiais após ter deixado o gabinete da então presidente, Alberto Fernández soltou a língua. Condenou a manipulação dos dados de inflação, a lei para controlar a imprensa, os limites para a compra de dólar e os ataques contra juízes. “Acho que não é preciso matar o kirchnerismo. É preciso superá-lo”, disse ele em um programa de televisão, em 2015. “O peronismo ao longo da democracia foi de tudo. Foi conservador com Ítalo Luder. Foi neoliberal com Carlos Menem. Foi conservador-popular com Eduardo Duhalde. Foi progressista com Néstor Kirchner. E foi só patético com Cristina. Foi patético, foi o partido da obediência.”

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisAo suceder o marido Néstor Kirchner na presidência, em 2007, Cristina Kichner (de costas) manteve Alberto Fernández como chefe de gabinete
Advogado formado na imponente Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, de onde saíram quinze presidentes argentinos, ele conta com nomes de sua própria confiança para preencher os cargos em uma futura administração. Há economistas liberais e peronistas de todas as cepas. “De início, haverá uma distribuição de tarefas. Como as questões econômicas e financeiras são complexas, tudo deverá estar em torno dele no começo”, diz o cientista político argentino Julio Burdman. “Se tudo pode mudar mais adiante, com um papel maior de Cristina, não há como saber”.

Na repartição dos cargos, o esperado é que a ala mais radical da ex-presidente fique com as pastas de segurança interna e projetos sociais. Economia e relações internacionais devem ficar com nomes da máxima confiança de Fernández. Ele se diz contrário a uma nova moratória com o Fundo Monetário Internacional, que emprestou 57 bilhões de dólares para a Argentina. O que ele propõe é uma renegociação com a instituição, que sempre foi execrada por Néstor e Cristina Kirchner. “Os peronistas têm dito que é preciso fazer a economia crescer antes, para que essa dívida possa ser paga, o que abre espaço para interpretações”, diz a economista Patricia Krause, de São Paulo.

Em uma visita em julho a Lula na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, Fernández falou em revisar o Acordo entre a União Europeia e o Mercosul. “A verdade é que logo depois (de anunciado o fechamento do acordo) a França está rechaçando. Se a segunda economia da Europa rechaça, em que consiste esse acordo? O que mais me preocupa é que o acordo condena a Argentina a um processo de desindustrialização muito grande. Precisamos levantar as indústrias para devolver o emprego à Argentina. A maior obsessão que tenho é que não haja um só argentino sem trabalho”, disse.

A sorte para o Brasil é que um acordo assinado em julho permite que os demais países do bloco não dependam da Argentina para colocar em vigor o tratado de livre-comércio. Bastaria para isso apenas a sua assinatura formal e o aval do Parlamento Europeu. A partir daí, cada país do Mercosul que tiver a autorização de seu Congresso já ficará livre para aplicar as suas regras tarifárias.

Casa RosadaCasa RosadaO presidente Macri ao anunciar um pacote populista na última semana: gasolina congelada por 90 dias e bônus para funcionários públicos
Uma Argentina mais arredia e protecionista, contudo, pode atrapalhar em outros pontos. Um deles é a adoção de entraves burocráticos para as exportações brasileiras, que já caíram 40% desde janeiro. No ano passado, o Brasil exportou 15 bilhões de dólares em produtos para a Argentina e importou 11 bilhões. Mais de 90% do que o Brasil manda para lá são produtos manufaturados, como automóveis, caminhões e peças. Um estremecimento na relação poderia, portanto, significar um problema para os negócios de empresas brasileiras.

Outro motivo de preocupação é quanto à assinatura de novos tratados pelo Mercosul. “Ao garantir uma flexibilidade dentro do acordo com a União Europeia, a diplomacia brasileira se blindou contra possíveis mudanças políticas em outros países. A questão é que uma posição protecionista da Argentina poderá afetar o andamento de outras negociações”, diz a cientista política Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais na ESPM, em São Paulo. Em um evento nessa quinta-feira, 15, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que se a Argentina tentar causar problemas, o Brasil pode tomar medidas mais bruscas. “E se a Kirchner quiser fechar (o Mercosul para acordos externos)? Se quiser fechar, a gente sai do Mercosul. E se quiser abrir? Então vou dizer bem-vinda moça. Senta aí”, disse Guedes.

A reviravolta na Argentina é um sinal de que a tradição do país, em maior ou menor grau, está mesmo é no protecionismo, no intervencionismo estatal, na impunidade e nas rusgas eternas com o FMI. Enfim, no peronismo que se recusa a morrer. A se confirmarem as projeções, Macri terá sido a exceção que não resistiu por muito tempo. Ao assumir o poder no final de 2015, ele tentou controlar a inflação com um anúncio de corte de gastos e com atração de investimentos externos, mas foi pouco eficiente em reduzir o déficit das contas públicas. Os obstáculos para a compra e venda de dólar foram retirados, mas a guerra comercial entre Estados Unidos e China afastou os investidores de mercados emergentes e pressionou o dólar para cima. Sem conseguir esfriar a inflação, Macri determinou em abril um congelamento dos preços de alimentos, medida que sempre atacou. Na quarta-feira, 14, em um gesto desesperado, ele falou que o valor do litro da gasolina ficará congelado por 90 dias. Distribuiu bônus para funcionários públicos e desempregados e prometeu um aumento do salário mínimo.

Nos últimos dias, uma piada frequente na internet dizia que, se alguém vai de viagem para a Argentina, perceberá que tudo lá muda em 20 dias. Mas, se voltar a passeio 20 anos depois, então a impressão será a de que nada mudou. Faz sentido.

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