MarioSabino

Somos um país de loucos

09.08.19

Numa conversa muito simpática em Brasília, ouvi que o Estado deveria cuidar apenas da Justiça e Segurança Pública, todo o resto ficando a cargo do mercado. Valeria para o mundo inteiro. Quando se examina de perto a paisagem brasiliense, dá mais vontade de reduzir o Estado a quase nada. Mas sou um fatalista: acho que as nações, assim como os indivíduos, fazem escolhas próprias nem sempre coincidentes. Algumas conscientes, outras inconscientes. A Europa Ocidental escolheu ser mais estatista, e não se pode dizer que não tenha dado certo. Os Estados Unidos escolheram ser menos estatistas, e deram muito certo. Evidentemente, da mesma forma que ocorre com cada pessoa, as escolhas nacionais podem ser objeto de dúvida. Quando as incertezas são grandes, os indivíduos tendem a dar um tempo, se essa parada lhes é permitida, ou apenas a angustiar-se, na falta de outro caminho. As nações democráticas, por sua vez, promovem eleições regularmente. Elas servem para ajustar ou até mesmo alterar completamente as opções nacionais por vontade da maioria. Há sempre um componente existencial em cada eleição.

O Brasil fez uma escolha por um governo declaradamente de direita na última eleição presidencial. Milhões estão surpresos, até entre os eleitores de Bolsonaro, porque achavam que certa agenda da esquerda, inculcada há décadas nas escolas e nos meios de comunicação, parecia natural como o ar que se respira. Não é. Desculpe a tautologia, mas a direita costuma ser mais conservadora nos costumes e liberal na economia. As grosserias e provocações de Jair Bolsonaro são apenas uma má moldura para o quadro. O que a esquerda tenta fazer é fundir moldura e quadro. Está no seu papel, e o presidente contribui enormemente para que a fusão ocorra.

Meu ponto, contudo, é outro, não Bolsonaro. Ou melhor, inclui Bolsonaro, Lula e os demais presidentes eleitos na história da nossa triste república. Ao passar e repassar pela Esplanada dos Ministérios, perguntei-me com insistência: até que ponto as escolhas do Brasil são suficientemente conscientes? De fato sabemos o que estamos fazendo ao seguir nesta ou naquela direção? Como eu disse, algumas escolhas podem ser inconscientes, mas não todas, do contrário seria loucura. Numa farsa teatral escrita pelo inglês Thomas Brandon, autor popular no século XIX, uma personagem diz: “I’m Charley’s aunt from Brazil, where the nuts come from”. A graça está no trocadilho “nuts”, que tanto pode significar “castanhas” como “maluco”. Na verdade, estou mais propenso a crer que somos um país de loucos, de alto a baixo, à maneira de Simão Bacamarte, protagonista de O Alienista, de Machado de Assis, publicado dez anos antes de a peça de Brandon ser encenada (teria o inglês ouvido falar da obra do brasileiro?).

No alto, temos o exemplo do Supremo Tribunal Federal. Os sintomas são consistentes: inquérito sigiloso e inconstitucional que censura jornalistas, habeas corpus de ofício para malandros, investigações do Coaf e da Receita Federal suspensas, usurpação do papel da segunda instância para impedir que o condenado Lula seja enviado para um presídio de verdade, aceitação de provas criminosas para incriminar os mocinhos e soltar os bandidos da Lava Jato… Sim, eu sei que cálculos privados e partidários movem alguns ministros, mas ainda assim é loucura, e cada vez mais sem método. Inclusive porque significa rasgar dinheiro, ao causar insegurança jurídica e afugentar investidores.

No Dicionário de Psicanálise, Elizabeth Roudinesco e Michel Plon escrevem no verbete dedicado à loucura: “Extravagância, perda do sentido, transtorno do pensamento, divagação do espírito, domínio da paixão: tais são as figuras desse mal que afeta os homens desde a noite dos tempos, e cuja origem se buscou às vezes na magia (possessão diabólica ou divina), outras vezes no cérebro ou humores (medicina hipocrática), e outras nos movimentos da alma (psicologia)”. Eles também citam René Descartes, o do “penso logo existo”, que fez um paralelo entre a dúvida filosófica a respeito da existência e certa loucura interna ao pensamento: “E como eu poderia negar que estas mãos e este corpo são meus, a menos que me compare com certos insensatos cujo cérebro está a tal ponto turvado e ofuscado pelos negros vapores da bílis, que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres, que estão vestidos de ouro e púrpura quando estão totalmente desnudos, ou que imaginam que são de cântaro ou têm um corpo de vidro”. Quando se verifica que a Constituição Federal foi reduzida, na prática, a um artigo inexistente — “Ministros do STF podem tudo”—, como não definir tal extravagância como “domínio da paixão” ou coisa de “cérebros turvados e ofuscados” de gente que pensa estar “vestida de ouro e púrpura quando estão totalmente desnudos”?

Na base da pirâmide, a loucura se manifesta por meio da ignorância — ou por meio da manutenção de tantos cidadãos na ignorância e, portanto, sem capacidade para fazer escolhas racionais (e nacionais) em sentido mais amplo, premidos que são por necessidades imediatas. No aeroporto de Brasília, antes de passar pelo detector de metais para embarcar no voo de volta a São Paulo, perguntei à funcionária se eu precisava mesmo tirar os sapatos. Dependendo da regulagem,  a máquina apita ou não para determinados itens. Deu-se o seguinte diálogo:

“Não tire, não, vamos torcer para não apitar, pensamento positivo”, ela disse.

“Mas não está regulada para apitar?”

“Vá em frente, tem de ter fé. Passe bem no meio, andando rapidinho.”

Obedeci. A máquina não apitou e fiz o sinal de positivo.

“Está vendo, é preciso ter esse pensamento”, ela respondeu, com ares de pitonisa que viu sua profecia ser cumprida.

A funcionária, é óbvio, não sabe para que serve exatamente o detector de metais, mas aprendeu como driblá-lo. E provavelmente não conectaria os pontos se eu tivesse explodido o avião. Decerto está longe de ser exceção. A ignorância, mesmo quando é adorável como no episódio da funcionária, tem contornos da loucura porque leva a que se viva alienado dos motivos que produzem a realidade concreta (nada a ver com o conceito de alienação marxista, por favor). Dito de maneira mais simples, a ignorância, assim como a loucura, não estabelece relações de causa e efeito — ou estabelece falsas relações de causa e efeito. Eu diria que, não raro, é um descolamento comparável ao dos malucos não furiosos. Como é possível esperar escolhas suficientemente conscientes nesse universo?

A minha reflexão não terá nenhuma serventia, no caso de a nossa loucura ser insanável (sobre o diagnóstico em si, já não tenho mais suspeitas). Continuaremos a passar rapidinho pelo detector de metais, bem no meio, para que ele não apite. Como ministros do STF podem tudo, talvez um dia eles até decidam abolir de ofício os detectores nos aeroportos. Consta que um dos ministros já se irritou ao ter de passar por essa medida de segurança. Compreende-se. O que é explodir um avião perto de implodir um país?  I’m Mario Bacamarte from Brazil, where the nuts come from.

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