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O índio quer ser amigo

O presidente da Bolívia, Evo Morales, aproxima-se de Jair Bolsonaro. A ideologia é o de menos. Ele precisa do Brasil para duas coisas: sustentar seu modelo econômico fracassado e perpetuar-se no poder
09.08.19

Com voz fina e colares coloridos, o presidente da Bolívia, Evo Morales, foi o responsável por um dos maiores vexames diplomáticos já impingidos ao Brasil. Encorajado pelo então presidente venezuelano Hugo Chávez, Morales enviou soldados para ocupar duas refinarias da Petrobras em seu país, em maio de 2006. Além da Petrobras, todas as empresas energéticas estrangeiras que operavam na Bolívia foram obrigadas a entregar suas propriedades para a estatal YPFB.

Agora o índio quer paz. Ele tem se distanciado do socialismo venezuelano. No final de julho, Morales não foi ao Foro de São Paulo, que reuniu partidos e movimentos radicais de esquerda em Caracas. Ao mesmo tempo, tem se aproximado de Jair Bolsonaro, que está no lado oposto do seu espectro ideológico.

O primeiro sinal de fumaça dessa mudança surgiu no início do ano, quando Morales veio para a posse de Bolsonaro em Brasília e o chamou de “irmão” no Twitter. Duas semanas depois, a Bolívia capturou o terrorista italiano Cesare Battisti, que fugira do Brasil, e o entregou para a Itália. No início de julho, Bolsonaro disse que esperava que Evo Morales não fosse ao Foro de São Paulo. Ao saber que foi atendido, festejou: “Ele é um dos que estão aí na velha guarda da esquerda do Brasil, mas está evoluindo”. O brasileiro também enalteceu os bolivianos por terem declarado interesse em comprar um avião KC-390, da Embraer.

Reprodução/TV NBRReprodução/TV NBRMorales parabeniza Bolsonaro na posse em Brasília, em janeiro: “irmão”
O que move Morales é o desejo de permanecer no poder. Em outubro, ele tentará um quarto mandato nas urnas. Mas o presidente boliviano nunca esteve tão cambaleante. Apesar de liderar as pesquisas de opinião com 35%, ele não deve vencer no primeiro turno e pode até perder no segundo. É uma situação bem mais delicada do que a das últimas três eleições presidenciais, vencidas no primeiro turno com mais de 54% dos votos. Morales também segue candidato apesar de a Constituição não permitir uma segunda reeleição e de os bolivianos terem votado em um referendo em 2016 contra sua pretensão.

Na atual campanha eleitoral, Evo Morales tem prometido incentivar a indústria e construir estradas. “Ele renunciou a todos os símbolos do passado, quando falava de nações indígenas, atacava o império americano, a corrupção, o capitalismo e defendia o socialismo. Agora, o importante é ficar na presidência, não importa com qual ideologia”, diz a cientista política boliviana Jimena Costa, que é deputada pela oposição.

Para vencer o pleito de 2019 e seguir governando por mais alguns anos, Morales sabe que precisará de dinheiro – e que a mufunfa vem principalmente do Brasil, o maior destino das exportações bolivianas. “Há dez ou quinze anos, a Bolívia exportava outros produtos, como batata, tomate e cebola. Mas hoje basicamente só exporta gás natural”, diz o economista Mauricio Ríos Garcia, de La Paz.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisInstalação da estatal YPFB: produção em declínio e renegociação com Brasil
Acontece que a exportação de gás natural para a Argentina deve cair bastante com a entrada em operação do polo energético de Vaca Muerta, que suprirá totalmente o mercado daquele país a partir de 2021. No Brasil, o contrato de exportação de gás natural com a Petrobras vence este ano e será renegociado. A estatal brasileira está tirando o pé dos negócios de transporte e distribuição de gás. Em julho, a empresa anunciou que venderá sua participação no gasoduto Brasil-Bolívia, que atende a indústria paulista.

Há mais problemas à vista para os bolivianos. Em dezembro, vencerá um contrato por meio do qual a Petrobras adquire 18 milhões de metros cúbicos por dia. “Provavelmente, os novos contratos não serão tão estáveis como os anteriores e terão valores mais baixos. E pode até acontecer que nenhuma outra companhia se interesse por isso”, diz o especialista em energia Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura Energética, o CBIE.

Heinrich Aikawa/Instituto LulaHeinrich Aikawa/Instituto LulaO boliviano Evo Morales visita Lula, em 2013: troca de afagos e de benefícios
O fim do monopólio da Petrobras na área de transporte e distribuição dilui a capacidade de Morales usar sua rede de amizades para obter benefícios à custa do governo brasileiro. “Como Lula tinha um projeto de hegemonia política na América do Sul, ele fez a Petrobras ceder para a Bolívia na questão da nacionalização do petróleo e do gás. Bolsonaro, ao contrário, está dando autonomia para a Petrobras, o que deixará a empresa menos refém de interferências políticas”, afirma Pires. Sem uma grande receita obtida com exportação de gás, a festa de Evo Morales pode acabar. “O socialismo só existe enquanto dura o dinheiro dos outros, e é exatamente isso o que está acontecendo agora”, diz Andrés Ortega, presidente do Partido Liberal Conservador de Bolívia.

Ao longo deste ano, autoridades bolivianas têm dado declarações para convencer os cidadãos de que o dinheiro vai continuar jorrando do subsolo, seja na forma de petróleo, de gás ou de lítio, usado em baterias e aparelhos de ar-condicionado. “Temos um lindo plano desenhado não somente com um olhar para 2025, mas para muito mais além. Isso, sim, vai mover a economia nacional e internacional”, disse Morales em discurso no Congresso, no último dia 6 de agosto, sobre a exploração do lítio.

Desde que assumiu a presidência, em 2006, Morales inflou a máquina pública, aproveitando-se dos altos preços das commodities, como a soja e os produtos derivados do petróleo. Em treze anos, o número de servidores públicos cresceu entre 40% e 50% e chegou aos atuais 300 mil. “O modelo econômico instaurado por Evo Morales foi muito baseado no aumento do gasto público. Como o presidente não pensa em mudar o sistema, precisa conseguir mais dinheiro com as exportações de gás”, diz o economista boliviano Hugo Marcelo Balderrama, da Universidade Privada do Vale, em Cochabamba.

TelámTelámMorales, à direita, na cúpula do Mercosul, em julho: em busca de legitimação e de bons negócios com os membros do bloco regional
Ao longo de três mandatos, Morales também incentivou o consumo interno, o que lhe garantiu aprovação popular durante vários anos. Uma das suas medidas foi forçar os bancos a emprestar com juros irrisórios. A taxa atual está em 0,004% ao mês. O crédito barato elevou o consumo e o PIB. Nos treze anos de governo de Morales, o PIB cresceu 4,9% ao ano. O efeito colateral é que essa política incentivou a importação. “Como as exportações de gás e de soja diminuíram por causa da queda dos preços internacionais, a Bolívia amargou grandes déficits comerciais nos últimos cinco anos”, diz o economista Alejandro Arana. As reservas internacionais despencaram de 15 bilhões de dólares em 2014 para menos de 8 bilhões de dólares atualmente. A dívida externa está no seu nível histórico mais alto.

Como bom bolivariano e socialista, Morales não perde o sono com gráficos macroeconômicos. Mas ele sabe muito bem da urgência de garantir bons contratos com outros países. Em julho, o boliviano esteve em uma reunião do Mercosul em Santa Fé, na Argentina. A Bolívia hoje é um estado associado do bloco, mas quer se tornar um membro pleno. “A economia boliviana está muito mais ligada ao Brasil e à Argentina do que a outros vizinhos”, diz o embaixador José Botafogo Gonçalves, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, o Cebri, com sede no Rio de Janeiro. “Se Morales mudar de abordagem e esfriar o discurso bolivariano, a entrada do seu país no Mercosul pode até ser considerada uma boa notícia.”

O outro lado da história é que, se acolherem o boliviano, os integrantes do Mercosul estarão favorecendo um demagogo sem qualquer intenção de se aposentar. “Se o bloco aceitar a Bolívia será uma incoerência gigantesca. Aí será preciso perguntar por que eles afastaram a Venezuela de Nicolás Maduro”, diz o ex-governador do departamento boliviano de Tarija, Mario Cossio Cortez. Em 2010, Cossio foi removido do seu cargo por Evo Morales e, ameaçado de morte, exilou-se com a família em Assunção, capital do Paraguai. “Morales é um candidato ilegal que quer eternizar um projeto totalitário com eleições fajutas. Se o Brasil e outros países condenarem seus atropelos, eles estarão fortalecendo também suas próprias democracias”, diz Cossio.

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