Leticia Moreira/Folhapress"Merkel é alemã e sente que ainda tem culpas a expiar pelo período nazista. Mas o que ela fez foi um erro e um crime."

‘Nunca comprei a caricatura do radical’

O escritor João Pereira Coutinho tenta decifrar Jair Bolsonaro e explica por que tanto o conservadorismo quanto a social-democracia estão em crise
09.08.19

O jornalista e escritor português João Pereira Coutinho é um conservador assumido. Mas não do tipo que defende a moral da família ou quer banir a ideologia da identidade de gênero. Esses assuntos pouco lhe importam. Ele é da tradição conservadora que vê com ceticismo qualquer um que acumule muito poder e que defenda ações enérgicas para construir um mundo melhor.

Em 2014, Coutinho publicou o livro As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários, um refinado manual para quem quer conhecer os conceitos dessa corrente de pensamento e seus principais formuladores. Em um mundo em que se valoriza a juventude, o inconformismo e as utopias revolucionárias, Coutinho prefere reconhecer a importância da experiência individual e dos benefícios já conquistados pela sociedade.

Sua visão não é ideológica, mas pragmática. Perguntado por Crusoé sobre quais seriam, afinal, os valores conservadores, ele responde: “Não faço ideia. Os socialistas é que têm cartilhas dogmáticas em que a igualdade está sempre no topo. Isso é politicamente absurdo porque as circunstâncias são mais importantes do que qualquer dogma”.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, em Lisboa, e colunista do jornal Folha de S.Paulo, Coutinho, de 43 anos, acompanha a política europeia, a americana e os fatos mais relevantes do Brasil. Para ele, o presidente Jair Bolsonaro seria melhor definido como neoconservador. “Como os neoconservadores americanos, Bolsonaro também defende a religião, a família, demonstra um feroz anticomunismo e nutre um horror ao multiculturalismo”, diz. A seguir, a entrevista:

Como conservador, o sr. entende que há uma crise do conservadorismo no mundo?
Sim. Há uma crise e isso pode ser constatado claramente pelo desempenho do Partido Conservador, na Inglaterra, e do CDU, a sigla de Angela Merkel, na Alemanha. Merkel poderia ser descrita como a última grande líder conservadora europeia. Ela foi bem até o desastroso discurso de 2015, em que exortou todos os migrantes a viajarem para a Europa. Entendo o gesto humanitário. Merkel é alemã e sente que ainda tem culpas a expiar pelo período nazista. Mas o que ela fez foi um erro e um crime. Nos Estados Unidos, o Partido Republicano se transformou no Partido de Trump. A crise é evidente.

Por que o conservadorismo está nessa situação?
A culpa é dos próprios conservadores. Os partidos conservadores tradicionais, pelo menos os da Europa, foram incapazes de responder aos desafios políticos de seu tempo. Eles ignoraram os problemas e as ansiedades reais da população em assuntos como segurança, o impacto da imigração e as disrupções causadas pela economia global. Dessa forma, acabaram perdendo espaço para os partidos nacionalistas, populistas, às vezes reacionários, que conseguiram oferecer soluções. Pode-se dizer que eram soluções simplórias, irrealistas, utópicas, às vezes até iliberais. Mas eram soluções.

Quais são os valores conservadores?
Não faço ideia. Os socialistas é que têm cartilhas dogmáticas em que a igualdade está sempre no topo. Isso é politicamente absurdo porque as circunstâncias são mais importantes do que qualquer dogma. A igualdade pode ser um valor conservador. Ou a liberdade. Ou a segurança. Ou nenhum deles. O que importa, do ponto de vista conservador, é atuar no mundo de forma cética e prudente, porque o conhecimento humano é falível e os seres humanos são imperfeitos por definição.

Como o sr. classificaria o presidente brasileiro Jair Bolsonaro?
Há uma palavra adequada para ele: neoconservador. Como os neoconservadores americanos, Bolsonaro também defende a religião, a família, demonstra um feroz anticomunismo e nutre um horror ao multiculturalismo.

Quais são as diferenças entre neoconservadores e conservadores?
Nas palavras de Irving Kristol , o ‘pai’ dos neoconservadores, um neoconservador é um liberal que foi assaltado pela realidade. E que realidade foi essa? Basicamente, a conclusão empírica de que as políticas ditas progressistas estavam a falhar após a Segunda Guerra Mundial. Se a ideia era combater a pobreza com subsídios do estado, isso só gerava mais pobreza e dependência. Na política externa, os neoconservadores acusavam os conservadores (os “paleoconservadores”, como eles diziam) de não levar a sério a ameaça comunista. E, em termos de valores e costumes, os neoconservadores também tinham críticas aos conservadores libertários, que nada tinham a dizer sobre a degradação moral dos Estados Unidos – pornografia, aborto, drogas e contracultura.

Poderia dar exemplos de outros políticos neoconservadores?
Por paradoxal que pareça, Franklin Delano Roosevelt, por quem os neocons têm grande respeito. O que Roosevelt fez na Segunda Guerra Mundial é o que os neoconservadores entendem como sendo a promoção da democracia fora das fronteiras da república americana. É evidente também que George W. Bush merece lugar especial no panteão neocon, depois das aventuras desastrosas no Oriente Médio.

Divulgação/Clara AzevedoDivulgação/Clara Azevedo“O que importa, para um conservador, é atuar de forma cética e prudente”
O neoconservador Bolsonaro seria também um radical?
Nunca comprei a caricatura do Bolsonaro radical, fascista ou revolucionário. Evito esse tipo de simplificação por dois motivos. Primeiro, porque tenho mais confiança nas instituições democráticas e na maturidade da democracia brasileira do que muitos brasileiros. Não é por acaso que o maior temor de Bolsonaro é ser uma “rainha de Inglaterra”. Você imaginaria Benito Mussolini dizendo isso? O Duce lamentando constrangimentos institucionais? Ou Adolf Hitler? Claro que não. A primeira atitude de qualquer um desses dois seria a de fechar o Congresso e prender os deputados. Em segundo lugar, não caí nessa história porque é preciso não confundir a retórica, que é ignorante e histérica, com a realidade. A mesma análise vale para o presidente americano Donald Trump. Ele pode ser um completo boçal, mas, na realidade, qual foi a reforma fascista que Trump implementou? Zero. Nenhuma.

Jair Bolsonaro poderia ser considerado um liberal?
No sentido clássico? Não creio. Como um neoconservador, ele tem uma desconfiança da liberdade em várias dimensões, seja econômica, social ou cultural. Esse receio nunca o abandonou. Nem com a influência do Paulo Guedes.

O que o leva a crer que Jair Bolsonaro desconfia da liberdade em várias dimensões?
A cabeça de Jair Bolsonaro é estruturalmente patrimonialista. Para ele, o estado continua a ser o agente central da vida brasileira. Veja a forma desconfiada como ele olha para as privatizações. O mesmo raciocínio vale para qualquer opinião sobre as opções de vida entre adultos. Boris Johnson, o conservador que acaba de se tornar o novo primeiro-ministro britânico, disse um dia em entrevista: “Eu sou a favor do casamento gay e não consigo ver por que se faz tanto barulho por isso”. Você imaginaria Bolsonaro dizendo uma coisa dessas, subscrevendo o velho motto “viva e deixe viver”?

Como o sr. classificaria os eleitores de Jair Bolsonaro?
Creio que o sucesso eleitoral de Bolsonaro, para além das razões circunstanciais de rejeição ao PT, também se explica pelo fato de várias tribos terem visto nele uma versão delas próprias. Os reacionários gostam do flerte com a ditadura militar. Os liberais entusiasmaram-se com as promessas de privatização. Os conservadores, com o tradicionalismo dos costumes. A eleição de Bolsonaro foi uma espécie de rodízio de carne: havia um pouco de tudo para todos.

Como vê a eleição de vários políticos de direita na América do Sul?
Vejo como uma reação quase epidêmica ao fracasso dos governos de esquerda na região. Nesse sentido, o caso da Venezuela serviu de aviso e de propulsor da mudança. Como defender a via socialista e revolucionária quando o desastre está ali ao lado?

Como explicar que, mesmo com o desastre do socialismo bolivariano na Venezuela, a esquerda dos Estados Unidos tenha ficado mais radical e socialista?
Honestamente, acho que não há nenhuma relação entre uma coisa e outra. Venezuela? Who cares? Houve um tempo em que a América Latina era importante na geopolítica da Guerra Fria. Mas, com a queda do Muro de Berlim, há precisamente 30 anos, a América Latina já não conta para nada. Se contasse, Maduro já não estaria no poder. A radicalização da esquerda americana é um fenômeno interno, acadêmico, intelectual. E, claro, uma consequência da crise financeira de 2008.

De modo geral, a esquerda ficou mais revolucionária?
A crise da esquerda explica-se pelo abandono do seu eleitorado tradicional. Mas também se explica pela forma obsessiva como trocou esse eleitorado pelas políticas de identidade. Essas abordagens podem ser ótimas para ganhar “likes” nas redes sociais, mas não vencem eleições. As eleições não se ganham com as minorias. Ganham-se com as maiorias.

Divulgação/Clara AzevedoDivulgação/Clara Azevedo“Com a queda do Muro de Berlim, há precisamente 30 anos, a América Latina já não conta para nada”
Vislumbra que futuro para o Partido Democrata nos Estados Unidos, que parece estar ficando mais radical?
É o velho fenômeno do espelho. O Partido Democrata radicalizou-se e, como resposta, o Partido Republicano também se radicalizou. Isso levou o Partido Democrata a radicalizar-se ainda mais e o Republicano a responder na mesma moeda. A política americana está tomada pela histeria dos extremos. Quem se beneficia? Donald Trump, claro, que será reeleito em 2020.

A social-democracia e a esquerda moderada também estão em uma fase ruim?
Os partidos de centro-esquerda desapareceram da paisagem. E a Europa é, novamente, o melhor exemplo. E por quê? Pelas mesmas razões que os conservadores tradicionais evaporaram. Eles deixaram de dar respostas ao seu eleitorado. A classe trabalhadora inglesa hoje vota em Nigel Farage, do Partido Brexit. Seus colegas franceses escolheram o Reunião Nacional, de Marine Le Pen. Os italianos, Matteo Salvini, da Liga. E por aí afora. Não é por acaso que uma pensadora de esquerda que gosto de ler, Chantal Mouffe, acaba de publicar um ensaio em que defende a necessidade de um populismo de esquerda, que não ignore os trabalhadores.

Como morador de Portugal, como vê a ida de milhares de brasileiros para o seu país?
Vejo com prazer. Depois dos anos da crise, e com a economia crescendo, tem sido incrível. Se os portugueses são uma raça em vias de extinção, demograficamente falando, que venham os irmãos mais novos a insuflar alguma vida.

O que querem os europeus hoje? Fronteiras seguras? Crescimento econômico? Mais integração?
Eles desejam tudo isso. E também querem sentir que o destino está nas suas mãos e não em pequenos comitês de Bruxelas. O Brexit foi apenas a reação mais brutal contra a pós-democracia europeia. Mas o Brexit não será um caso isolado se a União Europeia persistir nas suas fantasias federalistas. Espero que isso não aconteça. Caso contrário, a Europa estará novamente em guerra no espaço de uma geração.

Até quando teremos de lidar com extremos dominando a cena política? Ou esse é um caminho sem volta?
Momentos de extremismo sempre existiram e, se quisermos ser filosóficos, a democracia os potencializa. Aliás, segundo um dos críticos mais ferozes dessa forma de governo, Platão, o corretivo cíclico da democracia é a tirania. Espero que Platão não esteja certo nesse quesito. Agora, que o extremismo atual é distinto de outras formas de extremismo, isso é evidente. Os “Pais Fundadores” dos Estados Unidos também se confrontaram com esses extremismos. James Madison os chamava de “facções”. Mas eles acreditavam que o governo representativo e que a extensão geográfica do novo país acabaria por dissolver esses focos de incêndio. A internet é o dado novo na textura das democracias. E, sobre a influência da internet no destino da democracia, faço minhas as palavras de um antigo premiê chinês que teria dito, na década de 1970 e a respeito da Revolução Francesa: “Ainda é muito cedo para dizer”.

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