Quando o inimigo erra, não atrapalhe

02.08.19

Há duas semanas publiquei um texto na Crusoé que mostrava a nova – e radical – ala do Partido Democrata e como essa ala jovem com políticas extremas está trazendo uma divisão perigosa para o partido. Nesta semana, a divisão ficou ainda mais exacerbada durante os dois debates presidenciais das primárias democratas. Candidatos pautados perigosamente por essa ala mais jovem e que têm conseguido enorme exposição na mídia bateram de frente com os candidatos considerados moderados e com o antigo espírito do partido. Durante duas noites, o partido mostrou de vez uma ruptura com o discurso ponderado de ex-presidentes democratas como JFK e até Bill Clinton, que durante sua administração procurou articular e trabalhar em parceria com os republicanos para que medidas importantes passassem no Congresso.

Direto de Detroit, os americanos puderam acompanhar os debates entre os candidatos que estão claramente dividos em dois grupos: os moderados, com alguns ataques pessoais ao atual presidente, mas com propostas econômicas viáveis, e os socialistas, que apresentam planos não apenas utópicos, mas que têm deixado o eleitor democrata médio atônito com a total falta de conexão com o mundo real e com as dificuldades que precisam ser vencidas na sociedade americana.

No palco, além dos já costumeiros ataques ad hominem a Donald Trump, nenhum dos principais candidatos se destacou isoladamente ou pareceu confortável em defender, veementemente, posições que giraram entre a real crise na fronteira sul do país – e a necessidade de uma reforma nas leis de imigração – até a criação de programas inviáveis para a saúde que custariam aos cofres federais mais de 30 trilhões de dólares, e tudo isso sem taxar a classe média. Houve também alguns surpreendentes confrontos com ataques às políticas e práticas da administração Obama, o que pode ser uma tática arriscada para alguns nomes, já que o ex-presidente é amplamente popular entre a maioria do eleitorado democrata. Com tanto fogo amigo, o Partido Republicano segue até agora tranquilo para noticiar os frutos da boa economia e entoar em uníssono como parlamentares democratas não conseguem discutir propostas para o país e pensam no impeachment de Trump, proposição que morreria de qualquer maneira no Senado com maioria republicana.

Para o eleitor democrata de centro e moderado, infelizmente, o cenário pós-debate não é animador. Nomes ponderados como John Delaney, Steve Bullock, Tim Ryan e John Hickenlooper serão provavelmente eliminados para os próximos debates. A partir de agora, para continuar seguindo na corrida presidencial e fazer parte do terceiro conjunto de debates, que será realizado nos dias 12 e 13 de setembro em Houston, o Comitê Nacional Democrata estabeleceu regras mais rígidas. Os candidatos precisarão ter 130.000 doadores para suas campanhas e registrar pelo menos 2% em quatro pesquisas. Eles têm até 28 de agosto para alcançar esses números e, se dez candidatos ou menos se qualificarem, o debate será em apenas uma noite. Sete candidatos já atingiram os dois limites de qualificação e estão garantidos no próximo confronto democrata: Joe Biden, Cory Booker, Bernie Sanders, Pete Buttigieg, Beto O’Rourke, Kamala Harris e Elizabeth Warren. Três dos candidatos moderados que mencionei acima – John Hickenlooper, do Colorado, John Delaney, de Maryland, e Tim Ryan, de Ohio atingem, coletivamente, 2% em uma pesquisa e farão muita falta ao debate intelectualmente honesto com uma oposição madura e necessária em toda democracia.

Até o próximo encontro, os democratas qualificados para a próxima fase terão que decidir sobre pontos que, até aquise mostram confusos dentro do partido. Alguns candidatos como Kamala Harris e Elizabeth Warren, por exemplo, atacam o atual, complicado e falho sistema de saúde Obamacare e pregam que vão consertá-lo com cifras irreais na casa das dezenas de trilhões de dólares, sem aumentar impostos. Já Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, afirma que a política de saúde americana está dentro das mais bem-sucedidas, necessitando apenas de alguns ajustes. O senador Cory Booker foi a surpresa e se destacou positivamente em alguns momentos (mas perdeu seu protagonismo devido à grande quantidade de candidatos), soando competente e razoável enquanto equilibrava o que os eleitores das primárias democratas querem ouvir com o que eles provavelmente precisam ouvir. Kamala Harris não teve um bom debate, defendendo soluções fáceis para problemas complexos. No entanto, mesmo parecendo insegura muitas vezes, ela não deixa de ser um nome forte e se continuar a crescer nas pesquisas pode ser uma adversária difícil para o atual presidente. O topo da lista democrata parece inalterado com Joe Biden, Kamala Harris, Elizabeth Warren e Bernie Sanders, que discursa para os mais socialistas com a defesa de mais programas governamentais, aumento de impostos e do estado. Os discursos dos principais candidatos são muitas vezes antagônicos e atendem a alas opostas dentro do próprio partido. Resta saber qual deles falará com o eleitor do centro que pode decidir as primárias.

Outros números também podem soar como um alerta no rumo das campanhas e em alguns discursos. A primeira noite do debate democrata da CNN nesta semana atraiu 8,7 milhões de telespectadores, mostrando uma queda acentuada em relação ao evento do mês passado, que teve 15,3 milhões de telespectadores, um recorde nas primárias democratas. Ainda não se sabe o motivo da queda brutal na audiência e do interesse do público em ouvir quem terá a chance de remover da Casa Branca um dos presidentes mais controversos da história americana. Enquanto muitos parlamentares ainda entoam o vazio canto do impeachment contra Trump, mesmo com todas as investigações sobre o possível conluio com a Rússia já concluídas, outros nomes de peso não escondem mais a defesa de medidas como a destinação de recursos federais ao cuidado da saúde de imigrantes ilegais, universidade de graça para todos e perdão total das dívidas para empréstimos estudantis, descriminalização da entrada ilegal no país, aborto em qualquer fase da gestação e a absurda defesa do direito de votar para criminosos e assassinos que estão presos. Será que essas políticas extremas defendidas pela maioria dos candidatos democratas estão assustando o eleitor médio e independente?

A cada debate fica mais evidente que todos os candidatos se moveram, uns mais, outros menos, para a esquerda em suas posições, para tentar agradar e se adequar às demandas da atual ala extrema do partido. Quase todos os nomes estão se concentrando cegamente em vencer a indicação, ignorando o que os eleitores podem pensar sobre as posições extremas que estão assumindo agora quando o debate for com o atual morador da Casa Branca. Ainda há muito para ser desenrolado até 2020, mas se a economia seguir pulsante, com índices de desemprego baixíssimos, principalmente para as classes que normalmente votam nos democratas, como negros e latinos, e diante de uma divisão cada dia mais aparente e sem sinais de retrocesso no partido, isso pode custar não apenas a derrota presidencial, mas também na Câmara e no Senado nas eleições para o Congresso em 2020.

Previsões a longo prazo são imprecisas e podem mudar, mas a única certeza no momento é que enquanto a ala jovem e radical do partido continuar ditando o ritmo das atuais pautas extremas, o vencedor destes debates democratas continuará sendo um só: o republicano Donald Trump.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO