Mateus Bonomi/Folhapress

No rastro de Vermelho

A PF busca descobrir quem está por trás da invasão dos celulares de altas autoridades e suspeita de que ao menos parte da ação foi bancada por interessados em minar a Lava Jato. A tela do computador do hacker mostra que ele invadiu mensagens da redação da Crusoé
02.08.19

Na terça-feira, 30, os quatro presos na Operação Spoofing, investigados por terem invadido e roubado informações dos celulares de centenas de autoridades brasileiras, entre elas ministros do Supremo Tribunal Federal, e procuradores e juízes da Lava Jato, sentaram-se pela primeira vez à frente do juiz Vallisney de Souza Oliveira, que expediu as ordens que os levaram para a prisão. Apontado como líder do grupo, Walter Delgatti Neto, o Vermelho, foi o último dos quatro a falar. De terno, sem gravata, ele confirmou ter confessado à polícia que foi o responsável pelas invasões e deu mostras de sua hiperatividade no pouco tempo em que ficou por ali. Ao juiz, confirmou ter sido preso outras vezes por porte de estelionatos, falsificações e outros pequenos golpes em busca de dinheiro fácil. Enquanto Vermelho, Danilo Marques, Gustavo Santos e sua esposa Suelen Oliveira falavam à Justiça, a cerca de 13 quilômetros de distância, na Superintendência da Polícia Federal, os investigadores continuavam com as diligências para descobrir o que há por trás do ataque hacker conduzido pelo grupo de amigos de Araraquara, cidade do interior de São Paulo. Após descobrir a identidade dos invasores, o objetivo dos delegados, peritos e agentes federais encarregados do caso é seguir o caminho do dinheiro movimentado pelos presos. Querem saber se a ação foi patrocinada por alguém e se as informações roubadas foram passadas à frente mediante algum tipo de pagamento.

A audiência foi um dos últimos atos de Vallisney no caso. Desde esta quinta-feira, 1º, ele não é mais o responsável por decidir sobre os pedidos apresentados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público na investigação sobre os hackers. De volta das férias, Ricardo Leite, o juiz substituto da vara, assumiu a responsabilidade pela investigação, uma mais complexas conduzidas pela PF nos últimos anos. O primeiro motivo da complexidade, já superado, tem a ver com os obstáculos para chegar aos hackers – apurações dessa espécie são consideradas sempre difíceis. O que no início era visto como algo quase impossível, porém, foi alcançado graças a uma falha primária de Vermelho. Ao invadir os celulares, ele não usou nenhuma tecnologia para esconder o IP,  identidade dos computadores na rede, das máquinas com as quais fazia as ligações para os celulares das autoridades, um dos passos preparatórios para a invasão. A partir dessa brecha, os policiais mapearam a rota percorrida e bateram à porta do apartamento onde ele estava escondido, em Ribeirão Preto, para prendê-lo.

Sergio Lima/Folhapress PODERSergio Lima/Folhapress PODERZampronha, o delegado do mensalão: no rastro do dinheiro
Um segundo ponto complicado guarda relação com a extensão dos ataques. Imagens da tela do computador de Vermelho às quais Crusoé teve acesso mostram mais de 150 atalhos criados para acessar contas do Telegram de seus alvos. Ali estão nomes de procuradores, delegados, juízes e políticos. Há também um ícone que mostra o quanto a ação criminosa do hacker, para além de alvejar as comunicações de autoridades, buscou avançar sobre a atividade de jornalistas. Um dos ícones com atalhos do Telegram em destaque na tela do computador de Vermelho é identificado como “Cruzoe” — assim mesmo, com “z” e sem acento. Sim, caro leitor, a revista que você assina foi alvo da ação do hacker, o que mostra que a violação também atropelou os princípios constitucionais que resguardam a atividade da imprensa. O ícone intitulado “Cruzoe” aparece logo abaixo do atalho que leva ao Telegram do ministro da Educação, Abraham Weintraub. Na mesma tela da área de trabalho do computador de Delgatti, à qual a reportagem teve acesso, aparecem atalhos dos aplicativos de outras personalidades, como o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin. Na lista completa de atingidos pelas invasões, que tem mais de 900 nomes e está em poder da Polícia Federal, há mais uma série de jornalistas, de diferentes veículos de comunicação. Na semana passada, o publisher de Crusoé, Mario Sabino, soube que está entre eles. Não há evidências de que Vermelho tenha conseguido acessar as mensagens dos profissionais. Também não é possível saber por qual motivo o hacker buscava obter acesso a diálogos mantidos por jornalistas. A suspeita número um é de que seu objetivo era identificar fontes de informação desses profissionais. Um evidente atentado à liberdade de imprensa, portanto, que deve ser rechaçado com a mesma veemência daqueles que levantam a voz para defender a publicação das mensagens vazadas.

A Polícia Federal vem tentando identificar uma lógica na ação do hacker – inclusive na escolha dos alvos. Além dos nomes já sabidos, incluindo o presidente da República e ministros, parlamentares e magistrados de várias instâncias, há outros, que vieram à luz nos últimos dias por meio do site ACidadeOn, do mesmo grupo da afiliada da Globo em Araraquara. Nessa lista estão, por exemplo, o empresário Abílio Diniz e até o jogador Neymar Júnior. Para entender o foco de interesse de Vermelho e o que ele fez com o que conseguia capturar nas tentativas de invasão, os investigadores estão debruçados sobre o conteúdo encontrado nesse computador, em um HD externo e na nuvem de arquivos onde eram armazenados o resultado do “garimpo” no Telegram. Se de um lado os peritos especializados em crimes cibernéticos trabalham na análise de gigabytes de dados armazenados nos aparelhos eletrônicos apreendidos com os presos, de outro os delegados seguem o caminho do dinheiro. Além de mapear as contas dos envolvidos, eles miram as transações com criptomoedas realizadas pelo grupo. Logo no início da investigação, foram solicitadas informações às corretoras Foxbit, Braziliex e Marcado Bitcoin. Os investigadores acreditam que, enquanto Vermelho se concentrava nas invasões em si, seus amigos tocavam a parte financeira. Em seu depoimento, um dos presos, Gustavo Elias Santos, confirmou que parte dos cerca de 100 mil reais encontrados em sua residência têm relação com transações de bitcoin. Ao pedir a conversão da prisão temporária dos quatro investigados em prisão preventiva, quando não há prazo para soltura, o delegado Luiz Flávio Zampronha, o mesmo do mensalão, foi claro ao afirmar que que Vermelho parece fazer parte de algo grande. À diferença daquilo que o hacker declarou ao prestar depoimento, diz a PF, existe a “forte suspeita” de que ele “não atuou sozinho” e estaria “ocultando a participação de outras pessoas”. A aposta dos investigadores é que, por trás da ação do grupo, há um esquema maior – e dele fariam parte pessoas envolvidas na operação destinada a comprar as mensagens obtidas por Vermelho. A ex-deputada Manuela D’Ávila é tida como personagem importante pela PF.

Eduardo Carmim/Photo Premium/FolhapressEduardo Carmim/Photo Premium/FolhapressManuela D’Ávila é considerada uma personagem importante para a investigação
Não bastassem as dificuldades naturais da investigação, há outras que envolvem a sensibilidade das mensagens copiadas pelo hacker – especialmente aquelas das altas autoridades da República, incluindo magistrados de tribunais superiores, cujo teor ainda não é conhecido. Esses diálogos, agora, estão reunidos em um único processo. Será um desafio para o juiz do caso definir como fará a gestão desse material. O caso tem mobilizado gente graúda. Na noite desta quinta-feira, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal mandou que a primeira instância da Justiça Federal em Brasília, onde corre o processo, envie à corte em 48 horas uma cópia de todo o material apreendido. É, evidentemente, uma maneira de tirar da Polícia Federal e das instâncias inferiores do Ministério Público e da Justiça o domínio completo do conteúdo de uma investigação tão sensível. A decisão foi tomada horas depois de a Folha de S.Paulo e o site The Intercept publicarem reportagem com novas mensagens obtidas a partir da invasão ao Telegram do procurador Deltan Dallagnol, nas quais ele compartilhava com colegas da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, informações supostamente comprometedoras que poderiam enredar ministros como Dias Toffoli em investigações da Lava Jato. Ainda não está claro se o processo passará ao controle do Supremo, mas nas últimas semanas essa possibilidade foi aventada em mais de uma conversa reservada entre integrantes de tribunais superiores. A ideia era anexar os autos ao polêmico inquérito conduzido por Moraes, o mesmo que resultou na censura a Crusoé, em abril. Seria uma maneira de deixar nas mãos do Supremo o poder de decidir o que fazer com o material. Nesse sentido, as possibilidades são as mais diversas – ao mesmo tempo que o tribunal pode determinar a destruição do material, também pode ordenar uma perícia para, por exemplo, averiguar a integridade das mensagens trocadas por Sergio Moro e por procuradores da Lava Jato e utilizá-las eventualmente para aplicar uma sanção aos responsáveis pela operação. Ainda nesta quinta, o ministro Luiz Fux atendeu a um pedido do PDT e proibiu a PF de destruir as mensagens. Também determinou que uma cópia do material seja encaminhada a seu gabinete.

O rol de incógnitas em torno do caso vai ainda mais além. Nos últimos dias, surgiram alguns advogados interessados em patrocinar a defesa dos presos. Vermelho, o mais destacado dos quatro presos, tem sido defendido por dois jovens advogados da periferia de Brasília. Familiares e amigos dele em Araraquara não sabem dizer ao certo de onde surgiu a dupla de defensores e quem os contratou. Um terceiro advogado vindo de Araras, a 120 quilômetros da cidade natal do hacker, apareceu em Brasília dizendo ter autorização para defendê-lo. Teria sido enviado por “amigos” de Vermelho. Não deu certo. Ele até chegou a apresentar uma procuração assinada, mas logo depois acabou tirado do caso, por decisão do próprio hacker. Um detalhe tem chamado a atenção de quem acompanha o vaivém dos defensores. A dupla de advogados de Brasília encarregada da defesa do principal investigado, dona de um escritório modesto localizado na periferia da capital, conta até com assessoria de imprensa para intermediar a relação com os jornalistas. Crusoé apurou que pessoas próximas de Vermelho têm defendido que ele conte tudo o que sabe, e que, se for preciso, faça até mesmo um acordo de delação que possa livrá-lo o quanto antes da prisão. Essas mesmas pessoas acreditam que o hacker está protegendo outros envolvidos na ação.

O grupo de Araraquara segue sem dar explicações convincentes sobre suas movimentações financeiras. Estelionatários conhecidos na região, eles ainda não falaram de onde vem o dinheiro que dizem ter investido. No caso de Gustavo Santos, ele afirmou que seus investimentos em criptomoedas são fruto do dinheiro que ganhou como DJ e com jogos online. Santos se nega a entregar as senhas de seu celular, assim como os registros de suas operações com bitcoin. O advogado dele, Ariovaldo Moreira, diz que há “coisas particulares” no aparelho e que é um direito não fornecer a senha do celular ou das contas de criptomoedas. Vermelho, por sua vez, disse apenas que é um “investidor”. Ele negou possuir bitcoins, mas há indícios de que teria feito operações recentes de câmbio – uma delas, ainda em fase de checagem pelos investigadores, teria ocorrido em Brasília. A falta de clareza nas explicações tem ampliado as desconfianças dos investigadores. A PF ainda vê com ressalvas até mesmo as confissões de Delgatti Neto. Apesar da certeza de terem chegado nas pessoas envolvidas no ataque hacker graças a uma minuciosa perícia, os policiais querem compreender o período entre o primeiro ataque e os primeiros vazamentos de mensagens. Eles acreditam que, nesse meio tempo, Delgatti pode ter vendido as mensagens e até mesmo ter recebido ordens sobre quem deveria ser incluído entre os alvos. A investigação está longe do fim.

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