Adriano Machado/CrusoéRoberto Leonel: ordem do STF pode ser vista como "grave falha" do país na implementação das recomendações internacionais

Na contramão do mundo

Um dos alvos da ofensiva contra a Lava Jato, o presidente do Coaf diz que a decisão de Toffoli de limitar investigações põe o Brasil no sentido oposto das melhores práticas contra a lavagem de dinheiro
02.08.19

Roberto Leonel de Oliveira Lima, escolhido pelo ministro Sergio Moro para comandar o Coaf quando o órgão ainda estava sob a jurisdição do Ministério da Justiça, é uma figura intrinsecamente ligada à Lava Jato. No auge das investigações realizadas em Curitiba, ele era o representante da Receita Federal na força-tarefa. Foi responsável por ajudar a desvelar muitas das operações financeiras bilionárias que resultaram na prisão de poderosos. Roberto Leonel ficou no cargo mesmo após a decisão do Congresso Nacional de tirar o Coaf da alçada de Moro e transferi-lo de volta para o Ministério da Economia, ao qual estava vinculado até pouco antes de o ex-juiz da Lava Jato tornar-se ministro do governo.

Nesta entrevista a Crusoé, o xerife da unidade de inteligência encarregada de monitorar transações suspeitas de lavagem de dinheiro falou sobre a recente decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, de suspender investigações baseadas em informações do Coaf (e também da Receita) que não tenham passado pelo crivo de um juiz. Para ele, a imposição coloca o Brasil na contramão das melhores práticas existentes no mundo no combate à lavagem de dinheiro. Além disso, pode criar sérios embaraços para o país nos órgãos multilaterais que lidam com o tema, como o Gafi, o Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento ao Terrorismo.

A ordem de Toffoli é mais um capítulo de uma cruenta ofensiva contra o Coaf. Na leitura de ministros como o próprio presidente do Supremo e seu colega Gilmar Mendes, o órgão, assim como a Receita, vinha extrapolando suas funções. A artilharia foi ampliada após vir à luz a notícia de que auditores fiscais estavam esquadrinhando transações financeiras de familiares dos dois ministros e de outros integrantes da cúpula do Judiciário – nesta semana, por sinal, uma nova decisão do Supremo, expedida pelo ministro Alexandre de Moraes no âmbito do mesmo inquérito secreto que censurou Crusoé, determinou a suspensão dessas investigações. É mais um sinal de que a guerra continua. E Roberto Leonel é um alvo em potencial. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual o impacto da decisão do presidente do STF sobre o dia a dia do Coaf e para a relação com os demais órgãos, como o Ministério Público e as polícias?
No âmbito interno, o Coaf continua recebendo normalmente as comunicações de operações suspeitas e em espécie dos setores obrigados. Da mesma forma, continua analisando todas as informações recebidas, sem alteração em seus procedimentos. No tocante à disseminação dos relatórios de inteligência financeira às autoridades competentes, cabe destacar que apenas uma parcela, ainda que muito significativa, das informações recebidas pelo Coaf provêm do sistema financeiro. O Coaf entende que as informações de setores não-financeiros, também essenciais ao sistema de prevenção à lavagem de dinheiro, não se encontram no escopo da decisão e continuam fornecendo subsídios relevantes às autoridades. Quanto à disseminação de informações provenientes do sistema financeiro, por precaução solicitamos a análise de nosso assessoramento jurídico, uma vez que a decisão do STF não traz determinações específicas para o Coaf.

Na decisão, o ministro Toffoli assinala que só devem ser compartilhados com o Ministério Público dados “genéricos”, como o montante movimentado pelo contribuinte. Qual a diferença em relação ao que já vinha sendo feito pelo Coaf desde então?
O Coaf, unidade de inteligência financeira do Brasil, tem como papel conhecer atributos específicos das operações que tenham sido comunicadas, características essas que as tornam suspeitas. Em outras palavras, ao Coaf interessa conhecer aspectos qualitativos de operações consideradas suspeitas, como as partes envolvidas, o valor negociado, a forma de sua realização, os instrumentos utilizados e seu fundamento econômico. É esse tipo de informação que o Coaf, por dever legal, e quando identificar fundados indícios do cometimento de ilícitos, incluirá em relatórios de inteligência financeira a serem disseminados às autoridades competentes. Para tentar ilustrar como apenas a movimentação global não é útil na maioria dos casos, vamos a um exemplo de comunicação de operações suspeitas em que o banco relata que o cliente em questão tem características de interposta pessoa, popularmente conhecido como “laranja”. Consta como diretor de uma empresa, movimenta valores expressivos, mas não demonstra conhecer detalhes do negócio nem de suas operações. No momento de abertura da conta compareceu à agência acompanhado por outra pessoa, que aparentava ter efetivamente o poder de mando sobre o titular da conta. Atuando dentro da política de “conheça seu cliente”, premissa do sistema de prevenção à lavagem de dinheiro, o banco fez uma visita ao local onde seria a sede da empresa e verificou a inexistência de instalações condizentes com o ramo de negócio e com a movimentação financeira apresentada (a comunicação precisa contextualizar a situação e, portanto, conter detalhes).

É possível dar seguimento a apurações e identificar crimes apenas com as “informações genéricas” determinadas pelo STF?
Entendemos que o compartilhamento apenas da movimentação global não é útil na maioria dos casos em apuração ou a serem investigados, especialmente pelos órgãos de persecução penal, tanto do ponto de vista da restrição à eventual descrição das atipicidades observadas pelos agentes obrigados como do ponto de vista da celeridade do processo apuratório.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“Não há como negar a preocupação com o impacto imediato da decisão liminar e, principalmente, caso seja mantida no julgamento de mérito”
Como essa decisão impacta os compromissos internacionais firmados pelo Brasil para combater a lavagem de dinheiro e crimes financeiros?
Não cabe ao Coaf questionar decisões judiciais. No entanto, não há como negar a preocupação com o impacto imediato da decisão liminar e, principalmente, caso seja mantida no julgamento de mérito. Nesse cenário, a efetividade do sistema brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, que tanto evoluiu nos últimos anos, ficaria sensivelmente prejudicada, pelo fato de ir na direção oposta ao que se observa mundo afora, baseando-se nas recomendações internacionais. O Brasil é signatário de diversas convenções internacionais que dispõem sobre prevenção e combate aos crimes transnacionais, dentre os quais a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, como a Convenção de Viena, Convenção de Palermo e Convenção de Mérida. Além disso, como membro das Nações Unidas, o país se comprometeu a aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança que, entre outras coisas, requer que os Estados membros cumpram os padrões internacionais. Uma eventual avaliação do Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo) de que o Brasil teria deixado de cumprir essas recomendações poderia fazer o país ser considerado internacionalmente como uma jurisdição que não tem uma estrutura efetiva de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, o que aumentaria a percepção de risco de outros países ao fazer negócios com o Brasil, encarecendo transações e dificultando a obtenção de crédito internacional.

A discussão sobre o compartilhamento das informações do órgão só foi retomada agora em um caso específico envolvendo o filho do presidente da República e em meio a apurações do Fisco sobre as contratações do escritório de advocacia da mulher do presidente do STF. Não são estranhas essas coincidências?
O Coaf não comenta casos específicos e não nos cabe questionar decisões judiciais.

Diante dessa decisão do STF e todas as circunstâncias que a envolvem, o Coaf está sob ameaça?
Não entendemos que haja uma ameaça direcionada ao Coaf, mas temos preocupação com os impactos do tema em discussão.

Caso o Supremo mantenha esse entendimento de que as comunicações devem ser “genéricas”, isso não seria, na prática, o fim do Coaf como ele foi pensado inicialmente?
Há preocupação com o impacto imediato da decisão liminar e, principalmente, caso seja mantida no julgamento de mérito. Nesse cenário, a efetividade do sistema brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, que tanto evoluiu nos últimos anos, ficaria sensivelmente prejudicada.

Quais mudanças na estrutura física e de pessoal do Coaf seriam necessárias para que houvesse sempre um juiz analisando todas as comunicações de operações suspeitas?
Entendemos que a atual decisão do STF não traz determinações específicas para o Coaf. Assim, não há alterações definidas na estrutura ou funcionamento do órgão.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“Não entendemos que haja uma ameaça direcionada ao Coaf, mas temos preocupação com os impactos do tema”
Após a repercussão da decisão, o STF vem sinalizando que deve julgar o mérito desse caso antes de novembro. Qual a expectativa do Coaf em relação ao julgamento?
Seria importante para a segurança jurídica e o bom andamento dos trabalhos que houvesse uma decisão definitiva com a maior celeridade possível.

Após a divulgação da decisão do ministro Toffoli, o sr. recebeu algum apoio de integrantes do Gafi ou de outras entidades internacionais ligadas ao combate à corrupção e lavagem?
Quanto à recente decisão, o Secretariado do Gafi entrou em contato com o Coaf para que esclarecêssemos dúvidas que surgiram após terem tido acesso a um artigo publicado pela Transparência Internacional (esse artigo resumiu o contexto da decisão de Toffoli e a tratou como um “retrocesso inesperado”). É importante destacar que o Gafi vem acompanhando a situação do Brasil com atenção há alguns anos e cobrando, especialmente, a implementação de medidas legislativas no combate ao terrorismo e seu financiamento, desde a avaliação do país, concluída em 2010. Uma nova reunião plenária está marcada para outubro, quando será avaliado o atendimento às exigências do Gafi com a recente edição da lei 13.810, de 2019, que trata do cumprimento de sanções impostas por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e da indisponibilidade de ativos de pessoas ligadas ao terrorismo. Essa avaliação certamente levará em conta, também, uma eventual decisão judicial que enfraqueça o sistema de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, o que poderia ser visto como uma grave falha no comprometimento do país em implementar as recomendações do Gafi. Em termos técnicos, o Gafi avaliará, em outubro, a própria permanência do Brasil como membro do organismo.

Como essa decisão do ministro Toffoli afeta a tentativa do governo brasileiro de incluir o país na OCDE?
Quanto à intenção de acesso do Brasil à OCDE, que passa necessariamente pelo cumprimento de uma extensa e rigorosa lista de exigências internacionais, há riscos específicos que merecem ser destacados, pois um sistema ineficiente de um país quanto à prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo certamente afeta a integridade e transparência de seu sistema financeiro. Contextualizando, a OCDE tem o status de Organização Observadora do Gafi, o que inclui organismos internacionais associados que possuem, dentre outras, funções relacionadas ao combate à lavagem de dinheiro. No Brasil, a Convenção da OCDE Sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgada em 1997 em Paris, foi ratificada em 15 de junho de 2000 e promulgada por decreto em novembro de 2000. O principal objetivo da convenção é prevenir e combater o delito de corrupção de funcionários públicos estrangeiros na esfera de transações comerciais internacionais. Para isso, exige-se um sistema efetivo de prevenção à lavagem de dinheiro, acompanhado de forma próxima e cooperativa entre especialistas da OCDE e do Gafi.

A volta do Coaf para a estrutura do Ministério da Economia representou algum prejuízo para as atividades do órgão?
Não houve prejuízo às atividades. Ao longo desses quase sete meses de 2019, o Coaf foi fortalecido tanto em termos de estrutura quanto em termos de pessoal. Dentre esses avanços, merece destaque o reforço de sua estrutura operacional, que passou a contar com duas diretorias, a de Inteligência Financeira e a de supervisão, antes concentradas em uma só. Isso permitiu especializar ainda mais as atividades de inteligência financeira, que tem como destinatárias diversas instituições que atuam no combate ao crime organizado, corrupção e lavagem de dinheiro. Com tal configuração, a recém-criada diretoria de supervisão pode concentrar sua atuação na fiscalização do cumprimento das obrigações dos setores regulados. Foram também criadas duas coordenações que reforçarão a atuação em estreita integração com forças-tarefa e órgãos de persecução penal em casos de grande relevância, especialmente aqueles envolvendo crime organizado e esquemas de corrupção, bem como as relações institucionais com entidades nacionais e internacionais. Quanto a pessoal, ao final de 2018 o Coaf contava com apenas 37 servidores. Atualmente já temos 61 integrantes, além de sete servidores em capacitação no órgão por meio de acordos de cooperação técnica e seis terceirizados e estagiários.

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