Os quatro presos pela Polícia Federal: ao menos uma parte do grupo pode pegar pena pesada

Cana dura no horizonte

Ao atacar os celulares de chefes dos Poderes da União, incluindo o do presidente da República, os hackers aumentaram as chances de serem enquadrados na Lei de Segurança Nacional
02.08.19

Chelsea Manning, ex-analista de inteligência do Exército americano no Iraque, foi acusada, entre outras coisas, de ter “ajudado o inimigo”. A preocupação dos procuradores era com o grupo terrorista Al Qaeda, que perpetrou os atentados contra as Torres Gêmeas em Nova York, em 2001. Eles entenderam que Chelsea, ao divulgar documentos sigilosos para o site Wikileaks, de Julian Assange, teria beneficiado diretamente os terroristas sunitas cuja fixação é matar americanos nos Estados Unidos, no Oriente Médio ou em qualquer outro lugar do planeta.

No tribunal, contudo, essa acusação se diluiu por falta de evidências. Apesar de absolvida da imputação de ter auxiliado o inimigo, Chelsea pegou 35 anos de cana por outras vinte acusações, incluindo a de espionar o seu próprio país. “Apesar de os juízes não terem estabelecido uma conexão direta com um inimigo, ficou claro que ela aumentou dramaticamente o risco de uma informação ser usada pela Al Qaeda ou por qualquer outro grupo”, diz o jurista Scott Anderson, professor da Universidade Georgetown, especialista em questões de segurança nacional. “Entre os documentos que ela revelou havia dados sobre onde se desenrolavam operações militares americanas e quais eram as regras de engajamento em um conflito”.

Brasil e Estados Unidos são regidos por leis distintas em questões de segurança nacional. Ainda assim, o julgamento de Chelsea Manning traz lições para o caso dos hackers de Araraquara. A primeira é a de que, em um mundo em que as informações podem ser facilmente arquivadas e distribuídas digitalmente, conta tanto saber quem recebeu os dados sigilosos e de que forma foram usados, como verificar qual brecha foi aberta no sistema eletrônico utilizado pelo país.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisChelsea Manning pegou 35 anos de prisão por conspirar contra os Estados Unidos e por espionagem, mas foi absolvida da acusação de ajudar o inimigo
Graças a Chelsea Manning, tornou-se possível conhecer em que momento um soldado americano está ou não autorizado a agir. É óbvio que as Forças Armadas americanas foram afetadas, ainda que nenhum evento concreto possa provar isso. No caso do Brasil, alvos da Lava Jato podem ter tomado conhecimento do que se discutia internamente na força-tarefa. Além disso, podem ter operado para bloquear as ações da operação. Se por um lado se constrói a narrativa de que houve conluio entre os investigadores e o juiz do caso, por outro há uma constatação incontornável: atingiu-se o Ministério Público, cuja missão é defender os direitos sociais e individuais, a ordem jurídica e o regime democrático.

O estrago que uma brecha no celular do presidente e de outros representantes do estado brasileiro pode causar levou a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, a tomar a dianteira na tentativa de enquadrar os hackers de Araraquara na Lei de Segurança Nacional, de 1983. “É óbvio que quem invade o celular de uma autoridade como o presidente da República está em busca de informações sigilosas e de interesse nacional”, diz a deputada. No seu artigo 1º, a lei versa sobre os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o estado de direito e os chefes dos Poderes da União.

Na condição de chefes dos Poderes da União cujos telefones foram invadidos, estão o presidente da República, Jair Bolsonaro, o  presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o do Senado, Davi Alcolumbre. Como ocupantes de cargos de cúpula, eles lidam com dados que dizem respeito a um número muito maior de pessoas ou da nação inteira. “No caso de Bolsonaro, além de chefe do Executivo, ele é o Comandante Supremo das Forças Armadas. É alguém que está na condição de declarar ou não uma guerra”, diz o advogado Wilson Furtado Roberto, especialista em direito internacional e digital, em São Paulo. “Não dá para argumentar que questões sensíveis para o país não estariam em jogo.”

Marcos Corrêa/PRBolsonaro tentou amenizar o ataque ao seu celular: “Perderam tempo comigo”
Ao informar sobre a invasão do celular do presidente da República, em nota oficial distribuída na semana passada, o Ministério da Justiça afirmou que se tratava de “questão de segurança nacional”. Bolsonaro, em seguida, tentou minimizar o tema. “Sempre tomei cuidado nas informações estratégicas, essas não são passadas via telefone. Não estou nem um pouco preocupado. Perderam tempo comigo”. Errou, evidentemente. Primeiro, porque deu um argumento para os hackers, que poderão alegar que o crime contra a segurança nacional não chegou a ser concretizado porque a vítima — no caso, o presidente — admitiu não haver em seu telefone informações sensíveis. Segundo, porque o fato de ele não usar o telefone para “informações estratégicas” não suaviza o delito.

De toda sorte, a opinião de Bolsonaro sobre o conteúdo das suas mensagens tem pouco valor. O importante é que houve a invasão — como Crusoé informou na última edição, a ação dos hackers nos telefones do inquilino do Planalto foi bem-sucedida. O presidente, aliás, poderia até mesmo estar blefando. Se ele afirmasse o contrário, dizendo que várias informações estratégicas foram roubadas, a comoção seria certa. “As declarações do presidente não impactam na configuração do crime ou na sua punição”, diz o especialista em direito digital Renato Opice Blum. “Não vejo nenhum tipo de atenuação possível”.

Parte da explicação para o atual problema é o descaso de presidentes do mundo com os aparelhos criptografados estatais. Apesar de esses equipamentos darem toda proteção necessária, eles são pouco eficientes ou atrativos. Além disso, não permitem a instalação de aplicativos comerciais como o Instagram, o WhatsApp, o Telegram, o Twitter e outros de redes sociais. Para se comunicar com os cidadãos, com políticos ou familiares, a maioria dos governantes tem escolhido celulares comuns. Bolsonaro já ganhou um aparelho com tecnologia da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, mas segue usando um celular normal. Dilma Rousseff fazia a mesma coisa.

Nos Estados Unidos, o presidente americano Donald Trump utiliza um iPhone, ignorando os alertas de seus assistentes. Em matéria publicada em outubro, o New York Times afirmou que russos e chineses escutam rotineiramente suas conversas. Os chineses teriam até montado uma lista de pessoas que regularmente falam com Trump e que poderiam ser acionadas como uma maneira de influenciar o presidente.

Casa BrancaCasa BrancaTrump: contrariando conselhos de assessores, ele usa um iPhone
Voltando ao Brasil, para a Lei de Segurança Nacional, o conteúdo das mensagens hackeadas e o uso que é feito delas depois pouco importam juridicamente. Apenas a tentativa de expor uma alta autoridade já é passível de punição. Bastaria um hacker “expor a perigo de lesão” um dos chefes dos Poderes da União. Há, porém, um certo viés contra a aplicação da Lei de Segurança Nacional. Essa relutância se explica, em parte, porque a atual legislação data de 1983, do governo de João Figueiredo, durante o regime militar. Mas a lei está em vigor na sua plenitude. O artigo 4º diz que a pena pode ser agravada se o crime for praticado com “auxílio de governo, organização internacional ou grupos estrangeiros”. O hacker Walter Delgatti Neto, o Vermelho, afirmou à Polícia Federal que “o conjunto das informações está devidamente resguardado por fiéis depositários, nacionais e internacionais”. Espera-se que a investigação possa desvendar quem são essas pessoas ou entidades. “No Brasil, há uma aversão a toda e qualquer legislação feita durante o regime militar. Mas vale lembrar que essa lei foi reconhecida como compatível com a Constituição de 1988. Ela está em vigor e, como tal, deve ser cumprida”, enfatiza o advogado Dorival Guimarães Pereira Júnior, professor de direito internacional do Ibmec, em Belo Horizonte.

Ao final, a forma que será escolhida para punir os hackers de Araraquara será um medidor importante de quanto os brasileiros estão dispostos a se defender no futuro de ameaças contra o país. “Minha impressão é a de que não estamos preparados para nos proteger de hackers que, de fato, queiram prejudicar a nação”, diz o também advogado Eduardo Felipe Matias, especialista em direito internacional. “Isso é preocupante, principalmente em um momento em que diversos países procuram se armar para uma guerra virtual”. Em tempo: a Lei de Segurança Nacional prevê penas que, isoladamente, vão de um a vinte anos de prisão.

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