A autópsia da pizza
Roberto Rocha ainda era o corregedor do Senado e estava com a atribuição de descobrir o autor da fraude na eleição para a presidência da casa, quando chamou em seu gabinete, no 25º andar de uma das torres gêmeas do Congresso, o chefe da Polícia Legislativa, Alessandro Morales. Queria uma conversa reservada. O senador maranhense, eleito pelo PSDB, estava pressionado pela opinião pública e por um grupo de senadores que lhe cobravam resultado na apuração da vergonha que marcou o início da atual legislatura: a tevê transmitia ao vivo para todo o país a rumorosa eleição em que Davi Alcolumbre derrotou Renan Calheiros e um senador tentou melar o processo depositando dois votos de uma vez na urna.
A votação, que coroaria o primeiro dia de trabalho de senadores que chegaram ali depois de uma campanha marcada pelo discurso da nova política, teve de ser anulada. Ante o escândalo, era natural que viesse, com força, a cobrança por uma resposta: afinal, quem foi o corajoso autor da fraude praticada em frente às câmeras? A conversa do corregedor com o chefe da polícia do Senado foi constrangedora. Roberto Rocha foi direto ao ponto. Ele pediu a Morales que sua equipe elaborasse uma perícia apontando que seria impossível culpar algum senador pela fraude. Àquela altura, no escuro, já estava decidido que seria melhor para o Senado jogar tudo para debaixo do tapete. Incomodado, Morales respondeu que não atenderia o pedido, levantou-se da cadeira e foi embora.
Foi a derradeira tentativa de Rocha de buscar uma saída para o caso. Uma solução que não deixasse comprometida a sua imagem como chefe da Corregedoria e, ao mesmo tempo, que não expusesse o Senado, casa conhecida por não levar a fundo, salvo em raras exceções, investigações contra as excelências que a integram. A ideia de usar o relatório da perícia para dar ingredientes técnicos à pizza que estava em produção não funcionou. Pelo contrário. O corregedor, àquela altura, tinha em mãos outro farto material, elaborado com ajuda de policiais legislativos e de outros especialistas e compartilhado com assessores de seu gabinete mostrando que, sim, era possível apontar o autor da fraude. Mesmo assim, no dia 19 de junho, mais de quatro meses depois da vergonha, Roberto Rocha arquivou a investigação, em um texto de três páginas no qual concluiu não haver provas suficientes para acusar ninguém.
A suspeita estava certa. Menos de 20 dias após a eleição, Crusoé revelou que a investigação aberta pela Corregedoria não tinha dúvidas de que o culpado era o senador de primeiro mandato Mecias de Jesus, do PRB de Roraima (estado cujos representantes estavam entre os últimos a depositar seus votos). As muitas fotos e os vídeos da sessão colhidos pelos investigadores e organizados minuciosamente, com direito a ampliações, setas e círculos digitais mostrando as evidências, colocavam na conta dele a responsabilidade pela “esperteza”, cujo objetivo teria sido justamente criar um furdúncio na votação. Considerada capital para a conclusão em desfavor de Mecias de Jesus, uma das imagens mostrava que, à diferença dos colegas, ele não carregava um envelope no qual a cédula deveria ser acondicionada. Como o voto extra estava solto, sem envelope, junto com um outro, era um indício importante. Somado a outros, os encarregados de revisar o passo a passo da votação passaram a não ter dúvidas de que era mesmo Mecias o autor da fraude – e levaram a conclusão ao corregedor. Crusoé teve acesso a esse material. Mas por que Rocha abandonou o perfil de justiceiro e, de repente, virou engavetador?
A história começou a mudar depois que o próprio Mecias percebeu que sua cabeça estava a prêmio. Notou isso depois que Rocha e o presidente do Senado Davi Alcolumbre o chamaram no gabinete do tucano para lhe apresentar o material da investigação que concluíra pela sua culpabilidade. A ideia era extrair dele uma espécie de confissão para que, a partir dali, elaborassem uma estratégia para salvá-lo. Já havia, inclusive, o plano de recorrer a uma punição alternativa, como uma simples advertência. O encontro, porém, nunca ocorreu porque, no dia marcado, Rocha precisou viajar ao Maranhão para levar o corpo de um assessor que morrera afogado durante um passeio numa chácara nos arredores de Brasília.
Temendo ser envolvido na fraude, Bezerra passou a se mover. Ainda que não resultasse em punições extremas, ele temia que o episódio atrapalhasse sua até então incerta nomeação para líder do governo no Senado (hoje sua preocupação é bem entendida: é um dos políticos que mais ganhou cargos na administração federal). Pressionou Rocha como pôde. Primeiro, para que o corregedor encontrasse o culpado – o que o deixaria a salvo. Depois das ameaças de Mecias, a pressão passou a ser outra: queria que tudo fosse abafado. A essa altura, conseguiu o apoio de Alcolumbre, que o indicara ao Palácio do Planalto para ser líder do governo. Roberto Rocha, a partir daí, sucumbiu. Parou de tratar do assunto. Desistiu de colocar a Polícia Federal na investigação. E adotou um silêncio profundo sobre o caso, mesmo diante das conclusões da equipe que destacara para ajudá-lo na apuração. Mecias, na outra ponta, era acalmado. Em pelo menos duas conversas a sós com o corregedor, ele recebeu garantias de que o processo seria arquivado. Alcolumbre, além de ajudar nos bastidores, deu outra contribuição: nunca instalou o Conselho de Ética do Senado, onde poderia ser aberta uma representação contra o autor da fraude. Crusoé tentou, mas nem Roberto Rocha, nem Mecias de Jesus, nem Davi Alcolumbre quiseram falar sobre o caso.
Nas três páginas em que enterrou a investigação, Rocha contradiz por diversas vezes o material levantado por sua equipe. Escreveu, por exemplo, que “não foi possível obter imagens de todos os senadores votantes que mostrassem, com clareza cristalina, o momento do voto dado com o devido envelope oficial”. Também afirmou que “não foi possível concluir, de forma categórica, o momento em que se deu a suposta fraude objeto desta sindicância, tampouco individualizar a pessoa que teria praticado o respectivo ato”. O corregedor incrementou sua conclusão com um argumento político. Disse que, como a eleição fraudada foi anulada, o objetivo da fraude não foi atingido – como se isso retirasse o efeito pedagógico que teria a punição ao responsável pela esperteza. Junto com sua conclusão, Roberto Rocha entregou o cargo. Pessoas próximas ouvidas por Crusoé dizem que ele “não aguentou a pressão”. Na verdade, aguentou. E agiu de modo a carimbar na atual legislatura, aquela eleita com a força da nova política, a marca do que há de mais velho e detestável nos hábitos de Brasília. O serviço parece ter sido recompensado. A partir da próxima semana, Roberto Rocha voltará aos holofotes. Só que, desta vez, como um dos relatores da reforma tributária no Senado.
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