Marcos Oliveira/Agência SenadoO instante em que Mecias chega à urna: ele foi "absolvido" nas coxias do Senado

A autópsia da pizza

Para arquivar a investigação sobre a vergonhosa fraude na eleição para a presidência do Senado, a cúpula da casa fez até um heterodoxo pedido à polícia para atestar que o caso era insolúvel
02.08.19

Roberto Rocha ainda era o corregedor do Senado e estava com a atribuição de descobrir o autor da fraude na eleição para a presidência da casa, quando chamou em seu gabinete, no 25º andar de uma das torres gêmeas do Congresso, o chefe da Polícia Legislativa, Alessandro Morales. Queria uma conversa reservada. O senador maranhense, eleito pelo PSDB, estava pressionado pela opinião pública e por um grupo de senadores que lhe cobravam resultado na apuração da vergonha que marcou o início da atual legislatura: a tevê transmitia ao vivo para todo o país a rumorosa eleição em que Davi Alcolumbre derrotou Renan Calheiros e um senador tentou melar o processo depositando dois votos de uma vez na urna.

A votação, que coroaria o primeiro dia de trabalho de senadores que chegaram ali depois de uma campanha marcada pelo discurso da nova política, teve de ser anulada. Ante o escândalo, era natural que viesse, com força, a cobrança por uma resposta: afinal, quem foi o corajoso autor da fraude praticada em frente às câmeras? A conversa do corregedor com o chefe da polícia do Senado foi constrangedora. Roberto Rocha foi direto ao ponto. Ele pediu a Morales que sua equipe elaborasse uma perícia apontando que seria impossível culpar algum senador pela fraude. Àquela altura, no escuro, já estava decidido que seria melhor para o Senado jogar tudo para debaixo do tapete. Incomodado, Morales respondeu que não atenderia o pedido, levantou-se da cadeira e foi embora.

Foi a derradeira tentativa de Rocha de buscar uma saída para o caso. Uma solução que não deixasse comprometida a sua imagem como chefe da Corregedoria e, ao mesmo tempo, que não expusesse o Senado, casa conhecida por não levar a fundo, salvo em raras exceções, investigações contra as excelências que a integram. A ideia de usar o relatório da perícia para dar ingredientes técnicos à pizza que estava em produção não funcionou. Pelo contrário. O corregedor, àquela altura, tinha em mãos outro farto material, elaborado com ajuda de policiais legislativos e de outros especialistas e compartilhado com assessores de seu gabinete mostrando que, sim, era possível apontar o autor da fraude. Mesmo assim, no dia 19 de junho, mais de quatro meses depois da vergonha, Roberto Rocha arquivou a investigação, em um texto de três páginas no qual concluiu não haver provas suficientes para acusar ninguém.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência SenadoRoberto Rocha, agora ex-corregedor: tentativa de “jeitinho” para dar ares técnicos à estratégia da pizza
Era o desfecho de um caso que começara sob expectativa geral de punição. Nos dias que se seguiram à eleição, o próprio Roberto Rocha, no papel de xerife encarregado de tocar investigações internas sobre seus pares, aproveitou os holofotes para prometer agilidade na apuração. De cara, disse ser pouco provável que a fraude tivesse ocorrido por um eventual equívoco de algum dos senadores. Teria sido proposital mesmo. O corregedor conversou com o ministro da Justiça, Sergio Moro, para quem disse que enviaria todo o material colhido em imagens do circuito interno do Senado, das redes de televisão e dos celulares dos presentes na sessão para serem periciados pela Polícia Federal. Até peritos da Universidade de Brasília seriam contatados. Também insinuou que os principais suspeitos eram os senadores novatos e, mais especificamente, aqueles que foram os últimos a votar, já que o voto extra estava logo na boca da urna.

A suspeita estava certa. Menos de 20 dias após a eleição, Crusoé revelou que a investigação aberta pela Corregedoria não tinha dúvidas de que o culpado era o senador de primeiro mandato Mecias de Jesus, do PRB de Roraima (estado cujos representantes estavam entre os últimos a depositar seus votos). As muitas fotos e os vídeos da sessão colhidos pelos investigadores e organizados minuciosamente, com direito a ampliações, setas e círculos digitais mostrando as evidências, colocavam na conta dele a responsabilidade pela “esperteza”, cujo objetivo teria sido justamente criar um furdúncio na votação. Considerada capital para a conclusão em desfavor de Mecias de Jesus, uma das imagens mostrava que, à diferença dos colegas, ele não carregava um envelope no qual a cédula deveria ser acondicionada. Como o voto extra estava solto, sem envelope, junto com um outro, era um indício importante. Somado a outros, os encarregados de revisar o passo a passo da votação passaram a não ter dúvidas de que era mesmo Mecias o autor da fraude – e levaram a conclusão ao corregedor. Crusoé teve acesso a esse material. Mas por que Rocha abandonou o perfil de justiceiro e, de repente, virou engavetador?

A história começou a mudar depois que o próprio Mecias percebeu que sua cabeça estava a prêmio. Notou isso depois que Rocha e o presidente do Senado Davi Alcolumbre o chamaram no gabinete do tucano para lhe apresentar o material da investigação que concluíra pela sua culpabilidade. A ideia era extrair dele uma espécie de confissão para que, a partir dali, elaborassem uma estratégia para salvá-lo. Já havia, inclusive, o plano de recorrer a uma punição alternativa, como uma simples advertência. O encontro, porém, nunca ocorreu porque, no dia marcado, Rocha precisou viajar ao Maranhão para levar o corpo de um assessor que morrera afogado durante um passeio numa chácara nos arredores de Brasília.

Pedro França/Agência SenadoPedro França/Agência SenadoDavi Alcolumbre: o presidente do Senado, participou da operação abafa
O encontro até poderia ter sido remarcado, mas Mecias soube que a ideia era pressioná-lo a admitir a fraude. E passou, então, a contra-atacar. Começou ameaçando Davi Alcolumbre, o parceiro de primeira hora do corregedor. Disse que não morreria sozinho. O senador, cujo maior triunfo na política foi ter derrotado Romero Jucá na eleição de 2018, deixou claro que se fosse punido levaria consigo o atual líder do governo, Fernando Bezerra Coelho, uma vez que foi ele quem lhe entregou as duas cédulas a mais no dia da votação. Um dos responsáveis por administrar a votação, do alto da mesa que conduz os trabalhos do plenário, Bezerra era desde o início um dos mais ansiosos para que o caso fosse solucionado. Estava preocupado porque as cédulas da fraude tinham apenas a sua assinatura. As demais, como mandava a regra, levavam também a rubrica de José Maranhão, o decano da casa que também estava à frente da organização do processo.

Temendo ser envolvido na fraude, Bezerra passou a se mover. Ainda que não resultasse em punições extremas, ele temia que o episódio atrapalhasse sua até então incerta nomeação para líder do governo no Senado (hoje sua preocupação é bem entendida: é um dos políticos que mais ganhou cargos na administração federal). Pressionou Rocha como pôde. Primeiro, para que o corregedor encontrasse o culpado – o que o deixaria a salvo. Depois das ameaças de Mecias, a pressão passou a ser outra: queria que tudo fosse abafado. A essa altura, conseguiu o apoio de Alcolumbre, que o indicara ao Palácio do Planalto para ser líder do governo. Roberto Rocha, a partir daí, sucumbiu. Parou de tratar do assunto. Desistiu de colocar a Polícia Federal na investigação. E adotou um silêncio profundo sobre o caso, mesmo diante das conclusões da equipe que destacara para ajudá-lo na apuração. Mecias, na outra ponta, era acalmado. Em pelo menos duas conversas a sós com o corregedor, ele recebeu garantias de que o processo seria arquivado. Alcolumbre, além de ajudar nos bastidores, deu outra contribuição: nunca instalou o Conselho de Ética do Senado, onde poderia ser aberta uma representação contra o autor da fraude. Crusoé tentou, mas nem Roberto Rocha, nem Mecias de Jesus, nem Davi Alcolumbre quiseram falar sobre o caso.

Nas três páginas em que enterrou a investigação, Rocha contradiz por diversas vezes o material levantado por sua equipe. Escreveu, por exemplo, que “não foi possível obter imagens de todos os senadores votantes que mostrassem, com clareza cristalina, o momento do voto dado com o devido envelope oficial”. Também afirmou que “não foi possível concluir, de forma categórica, o momento em que se deu a suposta fraude objeto desta sindicância, tampouco individualizar a pessoa que teria praticado o respectivo ato”. O corregedor incrementou sua conclusão com um argumento político. Disse que, como a eleição fraudada foi anulada, o objetivo da fraude não foi atingido – como se isso retirasse o efeito pedagógico que teria a punição ao responsável pela esperteza. Junto com sua conclusão, Roberto Rocha entregou o cargo. Pessoas próximas ouvidas por Crusoé dizem que ele “não aguentou a pressão”. Na verdade, aguentou. E agiu de modo a carimbar na atual legislatura, aquela eleita com a força da nova política, a marca do que há de mais velho e detestável nos hábitos de Brasília. O serviço parece ter sido recompensado. A partir da próxima semana, Roberto Rocha voltará aos holofotes. Só que, desta vez, como um dos relatores da reforma tributária no Senado.

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