O apagão do Foro
Os convidados do Foro de São Paulo começaram a chegar ao hotel Venetur Alba, em Caracas, na noite da quarta-feira, 24. Na manhã do dia seguinte, o lobby do prédio já estava animado com índias peruanas em roupas coloridas, jovens com o lenço keffiyeh palestino no pescoço e argentinos com a bandeira azul-celeste. Em um canto, um mural exigia que o presidente americano Donald Trump “desbloqueasse” a Venezuela. Na mesa para distribuir as credenciais, um mexicano do Morena, partido do presidente Andrés Manuel López Obrador, reclamava que não havia informação sobre quais presidentes participariam do encontro. Como os restaurantes do hotel, um antigo Hilton que foi estatizado por Hugo Chávez, estão fechados, os participantes que faziam a inscrição recebiam tíquetes para comer em outros locais. Apenas dois veículos estatais venezuelanos estavam habilitados a cobrir o evento, a Venezuelana de Televisão (VTV) e a Rádio Nacional Venezuelana. Nenhum órgão independente compareceu.
Pelos alto-falantes dos corredores, duas músicas se alternavam continuamente. Uma delas era Chávez, coração do povo, já bastante conhecida dos venezuelanos. A outra é um rock composto exclusivamente para o evento. “No rosto do povo correm lágrimas de medo. Uma detonação. Algo caiu do céu. Há um menino caído. Mais embaixo, um velhinho. Eu não entendo este mundo, em que me falam de futuro. Em vez disso, nossos povos querem a claridade. Que sejamos irmãos e que reine a igualdade. E que viva a América Latina. Quem a libertou, meu irmão, foi Simón Bolívar”, diz a letra.
Até a noite desta quinta-feira, 25, o presidente boliviano Evo Morales ainda não tinha confirmado presença. Só anunciou que enviaria uma pequena comissão, com entre cinco e dez membros. Quem também não deve ir é a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e a ex-presidente Dilma Rousseff. No ano passado, elas viajaram para participar da reunião do Foro em Havana, a capital de Cuba. O objetivo era o de fazer uma “denúncia internacional” e pedir apoio “contra a prisão política de Lula”. O assessor de Gleisi não quis explicar o motivo da ausência este ano. O de Dilma falou que ela está “mais reservada” por estes dias. O PT mandou Mônica Valente, secretária de relações internacionais do partido e mulher do notório Delúbio Soares, um dos personagens do mensalão, e uma representante da secretaria de mulheres.
A ausência de figuras importantes tem uma explicação simples: o dinheiro que era usado para comprar apoio na região acabou. É uma volta às origens. Criado em 1990 por iniciativa de Lula e do ditador cubano Fidel Castro com o objetivo de dar uma resposta da esquerda à queda do Muro de Berlim, o Foro de São Paulo viveu na penúria nos seus primeiros anos. “No começo, eram apenas alguns grupelhos fazendo discursos. Como eles não tinham recursos, a capacidade de fazer alguma coisa era muito restrita. Não é por acaso que os dirigentes da esquerda chamam esse período de década perdida”, diz o advogado e cientista político boliviano Carlos Sánchez Berzaín, que vive exilado nos Estados Unidos.
O Foro ganhou fôlego em 1998, com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela. Os venezuelanos então passaram a desviar o dinheiro da petroleira PDVSA para promover partidos aliados em diversos países e gerar instabilidade em nações governadas por seus inimigos. Em 2002, Lula foi eleito no Brasil. Em 2003, Néstor Kirchner assumiu a Argentina. Em 2006, Evo Morales subiu ao poder na Bolívia. No ano seguinte, Rafael Correa chegou à presidência do Equador.
Ao longo de quase duas décadas, o dinheiro da PDVSA cruzou fronteiras em notas de dólares e em operações bancárias suspeitas. Em 2007, um empresário venezuelano foi capturado com uma mala com 800 mil dólares em um aeroporto de Buenos Aires. O montante era para a campanha de Cristina Kirchner. No ano passado, dólares foram enviados em caixas de papelão para El Salvador em um avião da PDVSA, para financiar as caravanas de migrantes da América Central para os Estados Unidos, como noticiou Crusoé.
A realidade deste 25º Foro é bem mais austera. A PDVSA hoje fatura menos de 20% do que chegou a ganhar na sua época áurea. A Lava Jato e a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil estancaram a sangria de recursos para outros países da América Latina. Partidos de esquerda foram tirados do poder na Argentina, Chile, Colômbia e Paraguai.
“Os bolivarianos realmente estão com problemas financeiros. Isso está acontecendo porque o dinheiro está acabando e porque aquilo que eles guardaram está mais difícil de utilizar”, diz o especialista em segurança americano Douglas Farah, da IBI Consultants. De acordo com Farah, não há como movimentar os valores que foram depositados em contas na Rússia, na China e na Turquia, sem correr risco de bloqueio.
A avareza também atrapalha. Os chavistas que mandaram dinheiro para bancos na Espanha e em Portugal não estão dispostos a contribuir com parte das suas fortunas em nome da ideologia. O nicaraguense Daniel Ortega, que acumulou vários milhões de dólares graças à PDVSA, também não é muito favorável à ideia. “Os bolivarianos mostraram que podem ser muito mesquinhos quando o que está em jogo é o próprio dinheiro”, diz Farah. O financiamento da atual edição do Foro hoje se dá principalmente por meios ilícitos, como o narcotráfico, o contrabando de gasolina e o comércio ilegal de ouro, diamante e coltan, um componente usado em celulares.
A maior esperança agora é com a eleição de outubro na Argentina, onde a chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner está à frente nas pesquisas eleitorais. “Os bolivarianos também têm tentado cooptar os mexicanos de López Obrador e gerar instabilidade na Colômbia”, diz o deputado venezuelano Omar González Moreno, do partido Vente Venezuela. “Mas o dinheiro que eles conseguem gerar hoje mal dá para cobrir os valores necessários com a corrupção interna na Venezuela.”
Pelas ruas de Caracas, os cartazes roxos do Foro são usados como uma peça de propaganda para tentar recordar o tempo em que Chávez era acolhido calorosamente por diversos presidentes na região. “Maduro, ao contrário, não pode deixar o país porque teme ser apeado do poder e porque sabe que não será bem recebido na maior parte dos países ocidentais”, diz o cientista político venezuelano José Vicente Carrasquero. “Maduro quer fazer crer que é um líder como Chávez, mas as circunstâncias de agora são totalmente outras.”
Também na quinta-feira, o primeiro dia da edição de 2019, funcionários públicos do centro de Caracas enfrentavam longas filas para ganhar as caixas Clap, que trazem alimentos importados e são distribuídas apenas a chavistas. Na frente do hotel Alba, um grupo das Forças Armadas Especiais, as Faes, cujos membros costumam andar em motos possantes e sem placa, montava guarda. No Foro de São Paulo realizado na capital do país governado por Nicolás Maduro, o maior temor da ditadura era o de que o povo se manifestasse.
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