CrusoéLobby do Venetur Alba Caracas, sede do Foro de São Paulo em 2019: como os restaurantes do hotel estão fechados, convidados de 25 países recebiam tíquetes para comer em outro lugar

O apagão do Foro

O dinheiro para comprar apoio político na América Latina acabou. Com isso, a edição deste ano do encontro do Foro de São Paulo, em Caracas, já é a mais esvaziada dos últimos anos
26.07.19

Os convidados do Foro de São Paulo começaram a chegar ao hotel Venetur Alba, em Caracas, na noite da quarta-feira, 24. Na manhã do dia seguinte, o lobby do prédio já estava animado com índias peruanas em roupas coloridas, jovens com o lenço keffiyeh palestino no pescoço e argentinos com a bandeira azul-celeste. Em um canto, um mural exigia que o presidente americano Donald Trump “desbloqueasse” a Venezuela. Na mesa para distribuir as credenciais, um mexicano do Morena, partido do presidente Andrés Manuel López Obrador, reclamava que não havia informação sobre quais presidentes participariam do encontro. Como os restaurantes do hotel, um antigo Hilton que foi estatizado por Hugo Chávez, estão fechados, os participantes que faziam a inscrição recebiam tíquetes para comer em outros locais. Apenas dois veículos estatais venezuelanos estavam habilitados a cobrir o evento, a Venezuelana de Televisão (VTV) e a Rádio Nacional Venezuelana. Nenhum órgão independente compareceu.

Pelos alto-falantes dos corredores, duas músicas se alternavam continuamente. Uma delas era Chávez, coração do povo, já bastante conhecida dos venezuelanos. A outra é um rock composto exclusivamente para o evento. “No rosto do povo correm lágrimas de medo. Uma detonação. Algo caiu do céu. Há um menino caído. Mais embaixo, um velhinho. Eu não entendo este mundo, em que me falam de futuro. Em vez disso, nossos povos querem a claridade. Que sejamos irmãos e que reine a igualdade. E que viva a América Latina. Quem a libertou, meu irmão, foi Simón Bolívar”, diz a letra.

ReproduçãoReproduçãoO hotel Venetur Alba Caracas, antigo Hilton que foi estatizado por Hugo Chávez
Apesar da empolgação comum a todo início de festa, a frustração do mexicano que reclamava não saber quais presidentes estariam presentes não é sem motivo. Comparada às edições anteriores do Foro, que anualmente reúne partidos e movimentos da esquerda, a 25ª está bem esvaziada. Dos mais de setecentos convidados de quase três dezenas de países, apenas quatrocentos deram as caras.

Até a noite desta quinta-feira, 25, o presidente boliviano Evo Morales ainda não tinha confirmado presença. Só anunciou que enviaria uma pequena comissão, com entre cinco e dez membros. Quem também não deve ir é a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e a ex-presidente Dilma Rousseff. No ano passado, elas viajaram para participar da reunião do Foro em Havana, a capital de Cuba. O objetivo era o de fazer uma “denúncia internacional” e pedir apoio “contra a prisão política de Lula”. O assessor de Gleisi não quis explicar o motivo da ausência este ano. O de Dilma falou que ela está “mais reservada” por estes dias. O PT mandou Mônica Valente, secretária de relações internacionais do partido e mulher do notório Delúbio Soares, um dos personagens do mensalão, e uma representante da secretaria de mulheres.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisMônica Valente, secretária de relações internacionais do PT, no primeiro dia do Foro de São Paulo: Gleisi Hoffmann e Dilma Rousseff não foram
Entre os convidados mais esperados para o Foro estavam dois integrantes do Partido das Farc, da Colômbia. Um deles é Rodrigo Granda, responsável pelas relações internacionais do grupo terrorista e que está sendo acusado em seu país de sequestro e enriquecimento ilícito. Também havia expectativa em torno do grupo feminista americano Code Pink, cujas integrantes invadiram em abril a embaixada da Venezuela em Washington. Elas não queriam deixar que representantes do governo interino de Juan Guaidó entrassem no edifício. Acabaram sendo expulsas pela polícia um mês depois.

A ausência de figuras importantes tem uma explicação simples: o dinheiro que era usado para comprar apoio na região acabou. É uma volta às origens. Criado em 1990 por iniciativa de Lula e do ditador cubano Fidel Castro com o objetivo de dar uma resposta da esquerda à queda do Muro de Berlim, o Foro de São Paulo viveu na penúria nos seus primeiros anos. “No começo, eram apenas alguns grupelhos fazendo discursos. Como eles não tinham recursos, a capacidade de fazer alguma coisa era muito restrita. Não é por acaso que os dirigentes da esquerda chamam esse período de década perdida”, diz o advogado e cientista político boliviano Carlos Sánchez Berzaín, que vive exilado nos Estados Unidos.

O Foro ganhou fôlego em 1998, com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela. Os venezuelanos então passaram a desviar o dinheiro da petroleira PDVSA para promover partidos aliados em diversos países e gerar instabilidade em nações governadas por seus inimigos. Em 2002, Lula foi eleito no Brasil. Em 2003, Néstor Kirchner assumiu a Argentina. Em 2006, Evo Morales subiu ao poder na Bolívia. No ano seguinte, Rafael Correa chegou à presidência do Equador.

Ao longo de quase duas décadas, o dinheiro da PDVSA cruzou fronteiras em notas de dólares e em operações bancárias suspeitas. Em 2007, um empresário venezuelano foi capturado com uma mala com 800 mil dólares em um aeroporto de Buenos Aires. O montante era para a campanha de Cristina Kirchner. No ano passado, dólares foram enviados em caixas de papelão para El Salvador em um avião da PDVSA, para financiar as caravanas de migrantes da América Central para os Estados Unidos, como noticiou Crusoé.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisLula e Fidel Castro, os dois fundadores do Foro de São Paulo
Além dos petrodólares venezuelanos, a máquina para comprar apoio na região também foi azeitada pelos corruptos brasileiros. “Com fundos federais alocados em obras que seriam feitas por empresas brasileiras, como a Odebrecht, armou-se um enorme caixa para corromper autoridades em toda a América Latina”, diz o boliviano Berzaín.

A realidade deste 25º Foro é bem mais austera. A PDVSA hoje fatura menos de 20% do que chegou a ganhar na sua época áurea. A Lava Jato e a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil estancaram a sangria de recursos para outros países da América Latina. Partidos de esquerda foram tirados do poder na Argentina, Chile, Colômbia e Paraguai.

“Os bolivarianos realmente estão com problemas financeiros. Isso está acontecendo porque o dinheiro está acabando e porque aquilo que eles guardaram está mais difícil de utilizar”, diz o especialista em segurança americano Douglas Farah, da IBI Consultants. De acordo com Farah, não há como movimentar os valores que foram depositados em contas na Rússia, na China e na Turquia, sem correr risco de bloqueio.

A avareza também atrapalha. Os chavistas que mandaram dinheiro para bancos na Espanha e em Portugal não estão dispostos a contribuir com parte das suas fortunas em nome da ideologia. O nicaraguense Daniel Ortega, que acumulou vários milhões de dólares graças à PDVSA, também não é muito favorável à ideia. “Os bolivarianos mostraram que podem ser muito mesquinhos quando o que está em jogo é o próprio dinheiro”, diz Farah. O financiamento da atual edição do Foro hoje se dá principalmente por meios ilícitos, como o narcotráfico, o contrabando de gasolina e o comércio ilegal de ouro, diamante e coltan, um componente usado em celulares.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisNicolás Maduro: narcotráfico e mineração ilegal sustentam a ditadura
Desde o início de abril, a ditadura de Nicolás Maduro vendeu 24 toneladas de ouro no mercado internacional, driblando as sanções internacionais. Na semana passada, o Reino Unido confiscou um carregamento de 104 quilos de ouro que tinha deixado a Venezuela e estava sendo transportado para as Ilhas Cayman. “É verdade que os membros do Foro estão debilitados, mas não se pode dizer que eles estão nas últimas”, diz Farah. “Quando os recursos diminuem, o que eles costumam fazer é reduzir as atividades. Mas eles sempre mantêm a estrutura para quando o dinheiro voltar a fluir.”

A maior esperança agora é com a eleição de outubro na Argentina, onde a chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner está à frente nas pesquisas eleitorais. “Os bolivarianos também têm tentado cooptar os mexicanos de López Obrador e gerar instabilidade na Colômbia”, diz o deputado venezuelano Omar González Moreno, do partido Vente Venezuela. “Mas o dinheiro que eles conseguem gerar hoje mal dá para cobrir os valores necessários com a corrupção interna na Venezuela.”

Pelas ruas de Caracas, os cartazes roxos do Foro são usados como uma peça de propaganda para tentar recordar o tempo em que Chávez era acolhido calorosamente por diversos presidentes na região. “Maduro, ao contrário, não pode deixar o país porque teme ser apeado do poder e porque sabe que não será bem recebido na maior parte dos países ocidentais”, diz o cientista político venezuelano José Vicente Carrasquero. “Maduro quer fazer crer que é um líder como Chávez, mas as circunstâncias de agora são totalmente outras.”

ReproduçãoReproduçãoCartazes colados nas ruas de Caracas fazem advertência: “O Foro da Morte”, que impulsionou o socialismo e ajudou a instalar tiranos na América Latina
Na manhã da quinta-feira, 25, o primeiro dia do Foro, muros de Caracas apareceram com cartazes com o desenho de uma caveira e a frase: “Advertência: Foro de São Paulo #ElForoDeLaMuerte. Desde 1990 o Foro de São Paulo impulsionou o socialismo, financiando as campanhas de todos os tiranos da América Latina”. As peças também traziam os nomes de ex-presidentes da esquerda, com epítetos pouco honrosos. O de Lula era “preso por corrupção”. O de Fidel Castro, “genocida”. O de Hugo Chávez, “ditador venezuelano”. O de Rafael Correa, “acusado de sequestro e corrupção”. O de Daniel Ortega, “ditador nicaraguense”.

Também na quinta-feira, o primeiro dia da edição de 2019, funcionários públicos do centro de Caracas enfrentavam longas filas para ganhar as caixas Clap, que trazem alimentos importados e são distribuídas apenas a chavistas. Na frente do hotel Alba, um grupo das Forças Armadas Especiais, as Faes, cujos membros costumam andar em motos possantes e sem placa, montava guarda. No Foro de São Paulo realizado na capital do país governado por Nicolás Maduro, o maior temor da ditadura era o de que o povo se manifestasse.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO