U. Detmar/STFO prédio do Supremo: caberá ao plenário chancelar (ou derrubar) a decisão de Toffoli

Canetada perigosa

Além de corruptos, a decisão de Dias Toffoli favorece de traficantes a suspeitos de terrorismo e pode causar problemas para o Brasil no cenário internacional
19.07.19

A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, que favoreceu o senador Flávio Bolsonaro e ao mesmo tempo impôs uma trava em centenas de investigações pelo país afora foi expedida em um processo movido por uma dupla de desconhecidos e que aterrissou no Supremo em junho de 2017. Trata-se de um recurso extraordinário do Ministério Público Federal em São Paulo contra a absolvição de dois sócios de um posto de gasolina da cidade de Americana acusados de sonegação fiscal. Nesse processo, ainda no início do ano passado, em um julgamento eletrônico, a maioria dos ministros do Supremo reconheceu que o caso se enquadrava na chamada repercussão geral, quando o mesmo veredicto pode ser usado para outros processos semelhantes. O passo seguinte seria levar o caso ao plenário, para decidir, enfim, se informações produzidas por órgãos como Coaf e Receita Federal e enviadas para o Ministério Público ou a polícia sem antes passar pelo crivo de um juiz poderiam ser utilizadas em processos. Toffoli chegou a pautar o julgamento para março deste ano, logo após vir à tona a informação de que a Receita estava mapeando transações de familiares de ministros, incluindo sua própria mulher, mas depois voltou atrás. Deixou para novembro. Com a decisão que ele tomou sozinho, nesta semana, enquanto o conjunto dos onze ministros não tratar da questão, todas as investigações e processos ficarão paralisados.

Além de beneficiar o filho do presidente Jair Bolsonaro – que ao longo da campanha defendeu o combate à corrupção, doa a quem doer –, a decisão monocrática do presidente da Suprema Corte deixa em suspenso centenas de procedimentos contra suspeitos de crimes de toda sorte. Até então, era comum que o Coaf, por exemplo, enviasse diretamente a investigadores da polícia ou do MP indícios surgidos a partir de transações financeiras consideradas atípicas. Por muitas e muitas vezes, esse tipo de procedimento deu origem a grandes investigações. Agora, a partir do entendimento de Toffoli, nem o Coaf nem a Receita podem comunicar esses indícios de maneira detalhada sem que antes haja uma autorização expressa da Justiça. A decisão é um duro golpe no modelo de atuação das instituições que atuam no combate à lavagem de dinheiro para chegar a corruptos e corruptores e traficantes que necessitam lavar o dinheiro amealhado com o crime.

No caso específico do filho de Jair Bolsonaro, a decisão de Toffoli enterra, ao menos por ora, a investigação que teve início com o envio pelo Coaf, em janeiro de 2018, de um Relatório de Inteligência Financeira, ou RIF, que informava uma movimentação atípica de 1,2 milhão de reais em uma conta do Itaú mantida por Fabricio Queiroz, ex-assessor de Flávio e amigo íntimo da família Bolsonaro. O documento mostrava depósitos de outros servidores do gabinete na conta de Queiroz e apontava para a existência de um possível esquema de nomeação de funcionários fantasmas no qual parte dos vencimentos era depois devolvida – uma prática conhecida nos corredores dos palácios legislativos brasileiros como “rachid”. O relatório não mirava apenas o filho 01 de Bolsonaro. Incluía 28 servidores de diversos outros gabinetes da Alerj com padrão de movimentações parecido com o de Queiroz. Com base nessas informações, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu 22 processos investigatórios criminais, os PICs, para apurar os possíveis delitos por trás das movimentações. No caso de Flávio Bolsonaro, além das possíveis irregularidades nas nomeações, o MP do Rio também apura se o dinheiro serviu para o senador comprar imóveis na capital fluminense.

Se for validada pelo plenário do Supremo, a decisão de Toffoli simplesmente encerra todos os casos por uma razão simples: as investigações foram instauradas seguindo o entendimento anterior, pelo qual não era necessária uma autorização judicial para que o Coaf compartilhasse essas informações. Esse entendimento, aliás, segue o padrão de excelência mundial preconizado por acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário e tem baseado o compartilhamento de informações há cerca de 20 anos. Dias Toffoli e Gilmar Mendes só passaram a se queixar disso de maneira mais barulhenta depois que viram familiares entrarem na mira do Fisco. O Coaf é uma Unidade de Inteligência Financeira, ou UIF, no jargão dos técnicos do setor e foi instituído por meio da lei 9.613, de 1998, a primeira a tipificar o crime de lavagem de dinheiro. Seu surgimento remonta à Convenção de Viena, de 1988, quando alguns países se reuniram para debater o combate ao tráfico internacional de drogas. Entre as táticas criadas para esse fim, estava a criação das tais UIFs, que teriam como finalidade subsidiar os órgãos de investigação com informações sobre transações suspeitas de qualquer natureza — bancárias, compra de imóveis, joias e bens de luxo. Embora não seja uma instituição de investigação, o Coaf é responsável por receber informações de vários setores que realizam essas transações, filtrá-las e informar os investigadores do MP ou da polícia sobre aquelas consideradas atípicas.

Foi isso o que o órgão fez no caso envolvendo Flávio Bolsonaro. O Coaf recebeu as comunicações sobre as transações atípicas do banco onde Queiroz mantinha uma conta corrente e as repassou ao MP estadual, ao MPF e à Polícia Federal no Rio de Janeiro. Os números ajudam a demonstrar a importância do conselho. Atualmente, o Coaf tem em sua base de dados quase 19 milhões de comunicações de atividades financeiras. Só no ano passado, recebeu nada menos que 3,1 milhões de comunicações que, após serem devidamente filtradas, deram origem a mais de 7,3 mil relatórios encaminhados para a análise de outras autoridades. Nestes primeiros seis meses de 2019, foram 4,4 mil. Graças à atuação conjunta com o MP e as polícias, seja a Federal ou as civis, nos estados, foi possível apenas em 2018 bloquear mais de 176 milhões de reais, no Brasil e no exterior, ligados a investigações de lavagem de dinheiro e outros crimes.

ReproduçãoReproduçãoFlávio e Queiroz: Toffoli decidiu a partir de um pedido do filho de Jair Bolsonaro
Não é por menos que a decisão de Toffoli surpreendeu investigadores de todo o país. Pouco tempo após a medida ser divulgada, ainda na terça-feira, 16, o procurador da República Eduardo El Hage, coordenador da Lava Jato no Rio de Janeiro, afirmou que a iniciativa leva à “suspensão de praticamente todas as investigações e processos de lavagem de dinheiro no Brasil”. Dimensionar o impacto exato da decisão não é tarefa simples, já que há muitas investigações que utilizam dados do Coaf, mas não apenas eles. Será necessário, portanto, avaliar caso a caso para averiguar quais processos se enquadram na decisão de Toffoli. Ainda assim, a leitura geral no MPF é a de que haverá prejuízos imediatos para diversas investigações em andamento, já que as informações recebidas por outros órgãos de controle, sobretudo do Coaf, costumam ser detalhadas e, estariam, portanto, sob efeito da canetada do presidente do Supremo. Na Polícia Federal o golpe também foi sentido. Por lá, muitas das investigações sobre lavagem de dinheiro em algum momento se utilizam de relatórios do Coaf. “Agora é como se a PF e o MPF tivessem que adivinhar se alguém movimentou somas suspeitas. Um golpe fulminante a favor do crime organizado”, disse a Crusoé um experiente investigador. Nesta quinta-feira, 18, em razão da decisão de Toffoli, a Corregedoria da PF determinou em uma circular interna a suspensão de todas as investigações que contenham informações compartilhadas pelo Coaf, Receita e Banco Central sem autorização judicial.

Para além do efeito sobre os casos de corrupção, a decisão afeta de forma contundente a apuração de crimes como tráfico de drogas, armas e até terrorismo. Na prática, o presidente do Supremo blindou não só o filho do presidente da República e outros figurões investigados por crimes do colarinho branco, mas também grupos criminosos que estão diretamente ligados à violência nas cidades. “Isso tudo tem um alcance muito grande, pode afetar todas as investigações que envolvem lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, evasão de divisas, tráfico de drogas e pessoas e o crime organizado das mais variadas formas, inclusive o PCC”, disse o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio.

A decisão de Toffoli ainda pode trazer consequências para o Brasil no cenário internacional, com riscos até à economia. A preocupação imediata é com a possível reação do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo, o Gafi, um organismo intergovernamental focado no desenvolvimento de políticas de combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro. O grupo, do qual o Brasil faz parte desde 1999, criou 40 recomendações para estabelecer um parâmetro de combate aos crimes financeiros nos países-membros. A ordem de Toffoli pode fazer o país descumprir ao menos quatro resoluções do grupo. Em uma delas, por exemplo, o Gafi aponta que as leis locais de sigilo financeiro não podem se chocar com as recomendações gerais do organismo. Outra resolução chega a mencionar expressamente que “durante as investigações de lavagem de dinheiro, crimes antecedentes e financiamento do terrorismo, as autoridades competentes deveriam poder solicitar quaisquer informações relevantes à UIF”, algo que agora o presidente do Supremo proibiu.

O Gafi avalia periodicamente os países-membros e, caso seja identificado o descumprimento de normas consideradas relevantes, o Brasil pode ser incluindo na chamada lista cinza. “A inclusão do país nessa lista gera impactos graves para a economia desse país. Mas, antes mesmo, o Gafi faz pronunciamentos públicos dizendo que o país não está cumprindo e o mercado financeiro interpreta como um país que está com vulnerabilidade no sistema financeiro”, afirmou o pesquisador Guilherme France, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. O procurador da República Vladimir Aras, especialista em cooperação jurídica internacional em investigações criminais, lembra que, no começo do mês, a própria OCDE, o clube de países desenvolvidos no qual o Brasil tenta entrar, emitiu um comunicado manifestando sua preocupação com a aprovação do projeto em tramitação no Congresso que prevê punição para casos considerados como abuso de autoridade. A tendência é que o freio à atividade do Coaf eleve ainda mais o nível de alerta. “Normalmente se fala em compliance para empresas e pessoas, mas existe também o compliance de países. Com isso, Brasil pode ser considerado um país que descumpre o compliance internacional nessa temática”, afirma o procurador.

Desde o início da Lava Jato, a integração de órgãos como Polícia Federal, Ministério Público, Coaf, Receita e Banco Central no combate à lavagem de dinheiro pôs o Brasil no honroso posto de exemplo a ser seguido por nações que ainda engatinham contra o crime. Antes visto como um paraíso para narcotraficantes, corruptos outras espécies de criminosos, o país passou a ser temido por, justamente, conseguir combater de maneira ágil e eficaz a lavagem de dinheiro ilegal. É justamente essa integração, tão útil para o sucesso das investigações, a principal derrotada com a decisão de Dias Toffoli.

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