O antiexemplo
Um fantasma a rondar políticos do PSDB paulista há mais de 10 anos, o caso Siemens ganhou mais um capítulo na última semana com a decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, de condenar 11 empresas e 42 pessoas por formarem um cartel em licitações do setor metroferroviário, em especial aquelas conduzidas pelo Metrô e pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, a CPTM, durante os governos de Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra. Embora a decisão do Cade venha tarde, quase seis anos após a Siemens delatar o esquema, o que já demonstra a lentidão na condução do caso, na esfera criminal a situação é ainda pior. Na contramão do modelo de investigação sacramentado pela Lava Jato, as investigações do cartel de trens conduzidas pelo Ministério Público paulista, tanto o estadual quanto o federal, não alcançaram nenhum político envolvido nos desvios.
O esquema nos contratos para compra de trens e equipamentos para as linhas de metrô da capital paulista segue o mesmo modus operandi do que foi descoberto na Petrobras pelos procuradores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Empresas interessadas em fraudar as licitações se uniam e dividiam os contratos entre elas. Para ganhar o apoio ou tapar os olhos dos políticos donos da caneta, corrompiam agentes públicos e realizavam pagamentos de propina via operadores com contas no exterior em nome de empresas sediadas em paraísos fiscais. Em uma comparação rasa com o petrolão, a alemã Siemens e a francesa Alstom seriam como a Odebrecht e a Andrade Gutierrez, líderes do esquema. No papel de Alberto Youssef, o operador financeiro de parte dos desvios dos contratos do setor de petróleo, o cartel de trens tinha o consultor Arthur Teixeira. Entre os agentes públicos, assim como o ex-diretores Paulo Roberto Costa e Renato Duque, o esquema metroferroviário tinha João Roberto Zaniboni, Ademir Venâncio e outros servidores das estatais paulistas. Já o papel de delator ficou por conta do ex-diretor da Siemens Everton Rheinheimer. A diferença essencial é que, quando o caso chegou perto dos políticos responsáveis por autorizar as contratações, no cartel de trens ainda não é possível dizer quem seria o Luiz Inácio Lula da Silva, o Aécio Neves ou o Michel Temer a ser alçado à posição de líder da organização criminosa.
Responsável por um dos inquéritos, o promotor paulista Marcelo Milani é taxativo ao dizer que faltou vontade do comando do Ministério Público estadual para chegar aos políticos. Ele afirma que, no âmbito criminal, há um “flagrante acobertamento de agentes públicos” e nos processos cíveis o Judiciário é “atávico”. “Sinceramente, essa é uma frustração na minha carreira. Tínhamos tudo para enquadrar muita gente e acabou em nada”, diz. Não é difícil entender o descontentamento. Na esfera cível, no MP estadual nenhum político foi processado por improbidade administrativa. Além disso, uma disputa entre promotores trava o andamento dos casos há anos. Na esfera criminal, o promotor Marcelo Mendroni chegou a apresentar à Justiça nove denúncias, mas nunca contra políticos ou agentes públicos do primeiro escalão. No Ministério Público Federal, a situação é ainda pior. Após esquecer um pedido de cooperação da Suíça na gaveta, o procurador Rodrigo de Grandis denunciou, em fevereiro de 2017, alguns envolvidos no caso dois anos – sim, dois anos – depois de a Polícia Federal encerrar a investigação. Um detalhe: as denúncias foram ajuizadas logo após o crime de corrupção prescrever. Havia pistas relevantes capazes de levar aos políticos ligados ao esquema. O delator da Siemens chegou a citar o envolvimento de ao menos cinco deles. Mas nada feito. O caso foi enviado ao Supremo Tribunal Federal e arquivado sem que fosse solicitada qualquer quebra de sigilo ou ao menos um pedido de cooperação internacional – o que seria necessário, já que o delator Rheinheimer citou repasses no exterior por intermédio de uma offshore de Arthur Teixeira, o Alberto Youssef do cartel.
Marco Aurélio, por sua vez, é irmão do atual vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia. Ex-deputado federal, Garcia foi um dos políticos citados na delação premiada do ex-diretor da Siemens Everton Rheinheimer como destinatário de propina oriunda dos contratos fraudados pelo cartel de empresas do setor metroferroviário. À época dos pagamentos, Garcia era deputado estadual pelo DEM e, na Assembleia Legislativa paulista, integrava uma comissão encarregada de fiscalizar os negócios do setor de transportes. Após o surgimento do nome do agora vice-governador e de outros quatro políticos paulistas, todos ligados aos governos do PSDB, a investigação — que até então corria na PF de São Paulo — foi enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Além de Garcia, apareciam nos relatos do delator os então secretários José Aníbal e Edson Aparecido e os então deputados Campos Machado e Arnaldo Jardim. Sem quebrar sigilos ou pedir ajuda a outros países por onde o dinheiro havia transitado, o STF arquivou o inquérito em fevereiro de 2015. Caso a investigação tivesse prosseguido nos moldes das que foram conduzidas Lava Jato, poderia ter explicado os motivos das transações entre a empresa de Mendonça Neto com o irmão de Rodrigo Garcia.
Outra alternativa seria seguir o caminho do dinheiro no exterior. Desde o surgimento das primeiras denúncias sobre possíveis irregularidades em contratos do setor metroferroviário de São Paulo, o nome de uma offshore é citado: a Leraway. A empresa, sediada no Uruguai, assinou contratos fictícios com a Siemens que tinham como finalidade mascarar o pagamento de vantagens indevidas para agentes públicos paulistas. Ela seria ligada a Arthur Teixeira, o Youssef do cartel de trens. Embora tenha sido investigada e dados sobre suas movimentações tenham sido solicitados pelos investigadores, não há qualquer registro nos inquéritos sobre sua relação com um notório operador do PSDB, o ex-diretor da Dersa Paulo Vieira de Souza, conhecido como Paulo Preto. O que os procuradores e promotores não descobriram em onze anos a Lava Jato descobriu em pouco mais de um ano após passar a investigar Paulo Preto e seu padrinho político, o ex-ministro Aloysio Nunes – cujo nome, por sinal, também era citado no acordo de delação de Rheinheimer. Dados enviados pela Suíça à Lava Jato mostram que a Leraway realizou transações de ao menos 137 mil euros com uma conta sediada no país e atrelada a Paulo Preto. E qual era a razão das transações? Uma busca nos documentos do caso do cartel mostra que a pergunta nunca foi feita nem ao ex-diretor da Dersa nem o operador Arthur Teixeira.
Os encarregados das investigações que não alcançaram os políticos envolvidos dizem não ter responsabilidade por isso. Por meio da assessoria do Ministério Público Federal, o procurador Rodrigo De Grandis afirmou que os casos estão todos sob a alçada da Lava Jato. Ante a ponderação de que as pistas já estavam havia tempo ao alcance dos investigadores, ele repetiu que o cartel dos trens segue sob investigação em São Paulo. Sobre o pedido de cooperação da Suíça que não foi cumprido, o procurador declarou que a medida poderia prejudicar a investigação brasileira. Já o Ministério Público estadual respondeu que todas investigações criminais abertas já foram concluídas e que denúncias foram oferecidas. Até o momento, assume o MP, houve apenas uma condenação em todos os casos. A Siemens não respondeu às perguntas de Crusoé.
Nesses tempos em que a Lava Jato está na mira de ataques por seu modelo de investigação, o caso Siemens mostra o caminho alternativo quando o assunto é o combate a corrupção: a velha impunidade, que beneficiou políticos de todas as cores durante décadas. À parte as críticas, justas ou não, que se faz à Lava Jato, a operação tem o que mostrar. A falta de resultados expressivos no caso do cartel de trens é a prova de que ou as investigações conduzidas pelos promotores e procuradores paulistas não viram o que importava ou que Paulo Maluf, famoso por sua participação em desvios milionários, tinha razão quando afirmou, em 2018, que São Paulo é um “oásis de honestidade”.
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