RuyGoiaba

João Gilberto continua morto

12.07.19

Quando o Saturday Night Live começou a ser exibido, em 1975, já incluía uma paródia do noticiário da TV dos EUA – o Weekend Update, que existe até hoje. O apresentador era Chevy Chase, que um dia anunciou a seguinte notícia de última hora: “O generalíssimo Francisco Franco continua morto”. Era uma referência à longa agonia do ditador espanhol, que morreu em novembro daquele ano. Em outras vezes, Chase interrompeu a leitura do noticiário fake para informar que Franco seguia “lutando bravamente para permanecer morto”.

Neste país sem generalíssimos, João Gilberto – que, para usar um clichê dos cadernos culturais, “saiu de cena” no sábado passado (6), aos 88 anos — não ressuscitou no terceiro dia. Na verdade, se você mora no Brasil, basta olhar em volta para constatar que João Gilberto está cada vez mais morto: o país tem caprichado em ser o oposto de tudo aquilo que o eremita do 30º andar daquele apart-hotel no Leblon vinha colocando na sua música desde os anos 50. Melhor se esconder do mundo – “lutar bravamente para permanecer morto” — do que levar bala nesta terra sem bossa, mas com 60 mil homicídios por ano.

(Parêntese para uma digressão pessoal: quando comecei a ouvir João Gilberto, na adolescência, me aproximei de sua música como o teenager ranheta que eu era — firmemente predisposto a não gostar, de tão cansado de ver gente rasgando seda para o, lá vem mais um clichê, “papa da bossa nova”. É claro que me apaixonei imediatamente. Meu primeiro álbum dele foi uma coletânea em vinil chamada O Mito, que consistia nos seus três primeiros discos – os essenciais da bossa nova — mais o 78 rotações com A Felicidade, só que com as faixas misturadas. Não autorizado, esse lançamento foi um dos motivos da briga de João Gilberto com a EMI, que salvo engano meu se arrastaria até a morte dele.)

Também essa atitude de “não jogar o jogo” me agradava em João Gilberto, por mais que eu entenda a irritação de quem levou cano após ter comprado ingresso para algum show dele. Não jogar o jogo que família, amigos, jornalistas e até plateias pagantes gostariam que ele jogasse é de uma solidão admirável. Todo mundo que já escreveu, compôs, cantou, tocou ou pintou qualquer coisinha sabe: todos nós temos algo de foca amestrada, equilibrando a bola no nariz e batendo palminhas depois de receber do público uma sardinha como prêmio pelo trabalho bem feito. Nisso, ninguém foi menos foca do que João Gilberto.

E João mostrava, pelo menos para mim, um país em que eu gostaria de viver, mais bonito, mais suave, mais interessantemente dissonante, mais sincopado: um país que nos obrigava a parar para ouvir. Era o que estava não só na bossa como em todos aqueles maravilhosos sambas das décadas de 30 e 40, que ele tirava de um baú aparentemente inesgotável; sua interpretação apenas nos fazia ver isso com clareza. E é o absoluto oposto deste Brasil que se esgoela, em que gente estúpida se digladia nas redes e fora delas, gente corrupta se orgulha da própria vulgaridade e gente ignorante, da própria ignorância. Nada mais antijoãogilbertiano que a política brasileira, para qualquer lado que a gente olhe.

João Gilberto está morto, mas MC Reaça viverá para sempre: a vulgaridade e a burrice são eternas. A nós, como a Antígona, só resta honrar nossos mortos.

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A GOIABICE DA SEMANA

Não consigo imaginar trabalho de paintbrush mais tosco do que esse que tentou “esconder” o lagostim servido no almoço de Jair Bolsonaro com o embaixador de Israel no domingo (7), antes da decisão da Copa América. Ficaria menos ridículo desenhar duas bolas de futebol por cima dos pratos proibidões. E parece que ninguém cogitou simplesmente não publicar a foto nas redes sociais – afinal, vivemos no mundo pós-Instagram, em que a comida não existiu se não foi fotografada. Pena que não fotografar tenha efeito zero na minha dieta.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisBolsonaro e o embaixador de Israel almoçam um delicioso borrão de paintbrush

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