ReproduçãoA sessão de abertura do evento, na segunda-feira em Coimbra: à esquerda, o presidente do STJ, João Otávio Noronha; à direita, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel

Caravana Holiday para Coimbra

A desconhecida entidade que todos os anos leva ministros de tribunais superiores para a Europa resiste a revelar quem paga a conta. Os convidados, porém, não se importam
05.07.19

Na última semana, Crusoé mostrou que vários ministros de tribunais superiores já tinham uma agenda de palestras na Universidade de Coimbra, em Portugal, logo na primeira semana do recesso do Judiciário, iniciado em 2 de julho. Com o tema “Perspectivas de um mundo sem fronteiras”, o evento anunciava em sua programação a participação de quatro ministros do Supremo Tribunal Federal e nada menos que 15 dos 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça.

A nota registrava que o “seminário de verão” é promovido pelo desconhecido Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos Avançados, o Ipeja, uma entidade cuja sede era, até recentemente, uma casa no Lago Sul de Brasília. O evento já é parte integrante do calendário para muitas das excelências. E sempre coincide com o início do recesso dos tribunais aqui Brasil. Muitos dos convidados viajam com despesas pagas, levam a família e, ao final, aproveitam para emendar as férias de meio de ano em destinos turísticos europeus. Nos últimos dias, Crusoé procurou tanto os participantes quanto os organizadores e pôde verificar que, apesar de reunir a nata do Poder Judiciário nacional, o evento está longe de prezar pela transparência.

À frente do tal Ipeja,o instituto que aparece como o organizador do seminário, está a advogada e juíza do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro Cristiane de Medeiros Brito Chaves Frota. Muito bem relacionada nas cortes de Brasília, ela não deixa claro de onde vêm os recursos nem diz se — e quanto — paga aos ilustres convidados. O escritório de Cristiane, uma boutique de advogados com sede na capital fluminense, tem processos em gabinetes de ministros que costumam ser convidados para os eventos do instituto, incluindo o atual presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha.

Um dos presentes na edição de 2019 do evento em Coimbra, o ministro do STF Marco Aurélio Mello admitiu que foi o Ipeja que pagou suas passagens, assim como a hospedagem em um confortável hotel da milenar cidade portuguesa. “É o mínimo, é o mínimo, já que a atividade intelectual no Brasil não vale coisa alguma”, afirmou. Ao ser perguntado se sabia quem financiava o Ipeja, porém, Marco Aurélio foi evasivo: “Quem está pagando? Não sei, eu não sou investigador para saber quem está pagando”.

Ricardo Ribeiro/FolhapressRicardo Ribeiro/FolhapressA Universidade de Coimbra, em Portugal: romaria das excelências brasileiras no recesso de julho, ano após ano
Neste ano, Marco Aurélio foi convidado para falar na sessão de encerramento do seminário, realizada na tarde da quarta-feira, dia 3. O evento começara na segunda, 1º. A terça-feira foi dia de folga. Indagado sobre a data de sua volta ao Brasil, o ministro disse que ficaria no exterior “o tempo que entender adequado”. Em Coimbra, Marco Aurélio contou com a companhia da filha, a desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região Letícia de Santis Mello. Ela, que também figurava entre os convidados, admitiu ter sido convidada pelo Ipeja e, a exemplo do pai, disse que não procurou saber quem estava pagando. “Não indaguei quem seriam os patrocinadores por se tratar de um evento acadêmico que já é realizado há mais de 25 anos, em uma parceria com uma instituição europeia tradicional”, disse.

A lista de participantes também incluía a advogada Anna Carolina Noronha, filha de João Noronha, o presidente do STJ. Ela não fez muita questão de esconder que aproveitou a oportunidade também para passear. Nas redes sociais, na terça-feira de folga, publicou fotos no Santuário de Fátima, situado a 85 quilômetros de Coimbra. Nesta quinta, 4, encerrado o seminário, ela já estava na cidade espanhola de Salamanca.

A rigor, magistrados podem dar palestras e participar de eventos acadêmicos, desde que não haja nenhuma situação que possa gerar conflito de interesse. Em casos como esse, porém, os ministros acabam aproveitando os eventos jurídicos para viajar de graça nas férias, e prorrogam a volta para passar mais tempo no exterior.

O Ipeja não deixa claro quem paga as despesas dos convidados. Em alguns eventos, eles chegam a divulgar as empresas “apoiadoras” sem detalhar o tipo de apoio oferecido. Neste ano, o evento contou com o apoio do Grupo Ânima, um dos principais conglomerados empresariais do ramo educacional do país, a Escola Brasileira de Direito (Ebradi, que pertence ao Ânima) e o Conselho Nacional de Praticagem, o Conapra. Desses apoiadores, apenas o Ânima respondeu às perguntas de Crusoé. Mesmo assim, com reserva. O grupo informou que “ofereceu apoio técnico e financeiro”, mas não detalhou os valores. Nas últimas duas décadas, pelo menos 50 processos do Grupo Ânima passaram pelo STJ e pelo Supremo. O outro apoiador, o Conapra, também costuma ter ações nos tribunais de Brasília. Em edições anteriores, o evento teve outros apoiadores conhecidos. Em 2016, por exemplo, o rol incluía a notória Fecomércio, alvo da Operação Lava Jato no Rio por causa de seus vultosos (e suspeitos) repasses a escritórios de advocacia.

CrusoéCrusoéA casa em Brasília que, no site, aparece como endereço do Ipeja. Na Receita, o endereço é outro
Em sua página na internet, o Ipeja é apresentado como uma sociedade civil sem fins lucrativos que “dedica-se à promoção de seminários, colóquios, congressos e outros eventos acadêmicos, por si ou em parceria com outras instituições, para formação de inteligências jurídicas direcionadas ao estudo do Direito Democrático”. Há duas semanas Crusoé tenta contato com os dirigentes do instituto, mas até o momento não obteve explicação sobre a origem dos recursos que bancaram as despesas dos convidados no seminário deste ano.
O resultado das tentativas de contato lança ainda mais dúvidas sobre o instituto. Os e-mails enviados para os dirigentes nos endereços eletrônicos informados no site do Ipeja não existem. Dos quatro diretores da entidade, apenas Cristiane Frota, que figura como diretora administrativa, respondeu, por escrito, por mensagem enviada via WhatsApp. Mas também não esclareceu as dúvidas cruciais, como a origem do dinheiro usado para realizar o evento.

Disse ela: “Trata-se de um Seminário Jurídico realizado na Universidade de Coimbra. O evento, oficial da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, é realizado em parceria com a Associação de Estudos Europeus e neste ano promove sua 21ª edição, ou seja, acontece anualmente desde 1998. Todos os participantes constam do programa como palestrantes e /ou debatedores”.
O site do Ipeja traz como endereço da entidade uma casa no Lago Sul, região nobre de Brasília. No local, porém, funciona há mais de um ano a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas. Na Receita Federal, porém, o endereço declarado é o mesmo do escritório de advocacia de Cristiane Frota no Rio de Janeiro. E o telefone de contato é de um escritório de contabilidade, também no Rio.

Por trás da falta de transparência e do desencontro de informações sobre o instituto, a advogada é que fica à frente da organização dos seminários. Casada com o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Elton Leme, no meio jurídico ela é conhecida por ter conquistado ao longo dos anos uma boa rede de relacionamentos nos tribunais superiores. Entre os ministros com quem tem proximidade está justamente o presidente do STJ, João Otávio Noronha, presença frequente nos seminários de verão.

Cabe a Cristiane o papel de não só convidar os participantes brasileiros do seminário como também fazer a interlocução com as empresas que apoiam a iniciativa. Paralelamente a sua atividade como organizadora, Cristiane segue atuando nos tribunais superiores e seu nome consta em ao menos 23 processos que estão sob relatoria ou já foram julgados por ministros do STJ que já participaram do evento que ela organiza. No Supremo, dos cinco processos nos quais Cristiane consta como advogada, um foi analisado por um ministro que já participou do evento: Dias Toffoli, o atual presidente da corte, que foi no seminário do ano passado e neste ano, embora tenha sido anunciado na programação, acabou não viajando a Coimbra. Nessa ação, Toffoli rejeitou em 2014 um recurso do Instituto Nacional do Ambiente contra uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio que impediu a demolição de um píer construído por Cristiane em sua residência, encravada na área de preservação ambiental de Tamoios, em Angra dos Reis.

Reprodução/Redes sociaisReprodução/Redes sociaisA advogada Anna Carolina Noronha, filha do presidente do STJ, em Salamanca, na Espanha
No STJ, há pelo menos um processo do escritório de Cristiane no gabinete de Noronha. Foi protocolado em junho deste ano, e ainda não tem decisão. Além desse caso, o ministro já atuou como relator em outros quatro processos do escritório dela. Em um, a Terceira Turma do STJ negou por unanimidade, em 2015, um recurso da Ambev que acusava o Grupo Petrópolis de concorrência desleal por utilizar nas latas da Itaipava as mesmas cores da Brahma para, supostamente, confundir os clientes. O Grupo Petrópolis, presença cativa em alguns rumorosos casos da Lava Jato, era defendido nesse processo pelo escritório de Cristiane. Quatro dos cinco ministros da turma que julgou o recurso participaram do seminário organizado por ela em Coimbra naquele ano: Paulo de Tarso Sanseverino, Paulo Moura Ribeiro, Ricardo Villas Boas Cueva e Noronha.

Outra figura central na realização dos seminários com os integrantes da cúpula do Judiciário é o presidente do Ipeja, Rubens Lopes da Cruz. Pedagogo de formação, Lopes se aproximou do mundo jurídico graças a suas visitas constantes à capital federal quando ainda era reitor da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), que pertencia à família de sua mulher, e precisava despachar as demandas da instituição. Em 2001, ele foi eleito pela primeira vez vice-presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares, a Anup, que tem entre seus objetivos aprimorar a relação das instituições de ensino privadas com os três poderes. Depois, tornou-se vice-presidente da entidade, cargo que exerce atualmente. A Anup figura como proprietária da casa no Lago que, no site do Ipeja, aparece como endereço do instituto responsável por organizar os seminários para as excelências do Judiciário em Coimbra.

Amigo de Ricardo Lewandowski, outra presença frequente nos eventos do Ipeja, o próprio Rubens costuma participar dos encontros em terras portuguesas. Em 2014, chegou a ser citado pelo ministro do Supremo na cerimônia de encerramento. “Gostaria de agradecer o Ipeja, em nome do professor Rubens Lopes, que mal inicia suas atividades, mas que já promete ser um dos grandes centros científicos de nosso país, o Brasil”, disse Lewandowski na ocasião.

O Ipeja está longe de ser um dos grandes centros científicos do país, mas eventos atraem a atenção de muitos advogados interessados em estreitar relações com alguns dos principais nomes do Judiciário brasileiro. Muitos viajam a Portugal para assistir às palestras e tentar chegar mais perto dos togados. Os eventos do instituto também já contaram com algumas presenças que, depois, passariam a figurar em escândalos de corrupção. É o caso do advogado José Antonio Fichtner, irmão do ex-secretário da Casa Civil de Sérgio Cabral Régis Fichtner. Ele figurou entre os palestrantes da edição de 2015 do seminário. Quatro anos mais tarde, em fevereiro de 2019, José Antonio Fichtner foi alvo de buscas da Polícia Federal em sua casa e seu escritório no Rio por suspeita de lavar dinheiro para seu irmão, um dos mais importantes operadores do esquema de Cabral que também é apontado como responsável por atuar para o esquema do ex-governador na indicação de magistrados fluminenses.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMarco Aurélio de Mello e Ricardo Lewandowski em sessão no Supremo: convite no recesso
Ex-procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro durante o governo Cabral, Marfan Vieira figurou entre os participantes de duas edições dos seminários de verão. Recentemente, o emedebista afirmou, em mais um de seus depoimentos ao Ministério Público Federal, que quando ainda estava no governo Vieira chegou a procurá-lo para oferecer o arquivamento de investigações. Em troca, deveria reconduzi-lo ao cargo. Vieira rechaçou a acusação.

Na edição deste ano do seminário de verão, nenhum alvo de investigações foi anunciado como palestrante do evento. Um participante inesperado, porém, chamou atenção. O atual governador do Rio, Wilson Witzel, apareceu no evento, provocando protestos de um grupo de estudantes brasileiros. A manifestação constrangeu os três ministros do STF que estavam na sala. Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes foram flagrados em um canto da sala enquanto o grupo chamava Witzel de fascista e exibia cartazes com críticas ao governador. Lewandowski foi flagrado cumprimentando um dos manifestantes. Mesmo não estando na programação, o governador acabou discursando para os participantes do evento depois da confusão.

Corregedor nacional de Justiça e ministro do STJ, Humberto Martins aparecia entre os convidados do Ipeja para o evento deste ano, mas não embarcou para Portugal. De plantão na Corregedoria até o próximo dia 10, ele disse que participou do evento há quatro anos (sem, é claro, dizer quem pagou) e que, apesar de ter sido convidado para a edição deste ano, não sabe quem está bancando a viagem dos colegas que foram. Ao ser indagado se pretende cobrar explicações dos colegas, afirmou que não iria responder à reportagem. “Quando eles chegarem, eu vou analisar o caso concreto, não vou lhe responder nada”. Crusoé entrou em contato com os gabinetes de outros 19 convidados, entre ministros do STF e STJ, desembargadores federais e do Tribunal de Justiça do Rio, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

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