A mulher-bomba
A advogada Dalide Corrêa e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, se conheceram há pouco mais de duas décadas. Ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, quando Gilmar era o advogado-geral da União, Dalide chefiava o departamento jurídico da Caixa Econômica Federal. Como tinham assuntos em comum a tratar, acabaram se aproximando. Começou ali uma sólida relação. Anos mais tarde, já ministro da Suprema Corte, Gilmar convidaria Dalide para ser sua assessora parlamentar. Ainda no começo da amizade, ele viu nela algumas raras qualidades. A principal era a facilidade com que Dalide se relacionava com as pessoas, de dentro e de fora do poder. “A Dalide é uma profissional de relações institucionais. Em pouco tempo ela vira a melhor amiga de qualquer um. É uma pessoa que se comunica bem, conhece todo mundo”, costuma dizer o ministro, ao ser indagado sobre a mulher que, com o passar do tempo, se tornaria quase que seu alterego.
Quando Gilmar se tornou sócio e, depois, o controlador do Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP, foi a Dalide que ele confiou a missão de tocar o dia a dia da instituição — na prática, uma faculdade de direito que também organiza eventos e cursos para servidores públicos. Durante anos, Dalide foi os olhos, os ouvidos e a boca do ministro no IDP. Tinha poderes para falar em nome dele — e para decidir em nome dele. Era a Dalide que cabia, por exemplo, gerenciar os vultosos patrocínios que o IDP passou a receber de algumas das maiores empresas do país. Parte delas, como Crusoé mostrou recentemente, colaborava com as atividades do instituto, na forma de patrocínios, mas fazia questão de não aparecer. Parte delas tinha e tem interesses em curso no tribunal de que Gilmar Mendes faz parte. Em sua defesa, o ministro diz que uma coisa nada tem a ver com a outra. Sustenta que os patrocínios ao IDP nunca interferiram em suas decisões no Supremo. Dalide, porém, com sua decantada aptidão para as “relações institucionais”, sempre soube explorar ao máximo o potencial de atração de parcerias — e patrocínios — à custa da imagem de Gilmar.
Foi essa relação de proximidade via IDP que levou os procuradores a pedir à PGR que levantasse a suspeição ou o impedimento de Gilmar nos processos criminais envolvendo Orlando Diniz (no ofício enviado a Raquel Dodge, por sinal, eles mencionam informações publicadas por Crusoé). Até esta quinta-feira, Gilmar Mendes nada falou sobre o assunto. Não veio a público nem sequer para repetir, mais uma vez, o argumento que carrega na ponta da língua sempre que é indagado sobre eventuais cruzamentos de interesse entre os patrocínios do IDP e as decisões que profere no Supremo: “Isso é coisa da Dalide”. No ano passado, na esteira da delação premiada da JBS, também patrocinadora de seu instituto, o ministro tratou de adotar uma providência urgente. Já antevendo os questionamentos que poderiam vir, o ministro tirou Dalide do IDP. Depois de anos como diretora-geral do instituto, ela estava fora.
Coube à então super-assessora de Gilmar Mendes tentar promover a aproximação. Joesley e o diretor jurídico da holding, Francisco de Assis, estavam em visita ao IDP. E Dalide tratou de colocá-los frente a frente com Rony Moreira, diretor do Imafe, um instituto criado havia pouco tempo e que tinha como sócios exatamente os dois juízes federais dos quais Joesley queria tanto se aproximar. O encontro se deu no instituto de Gilmar. Dalide diz que foi obra do acaso, pura coincidência. Joesley, que como mostrou a sua própria delação dominava a arte de fazer amigos e conquistar pessoas, se colocou à disposição para, da mesma forma que patrocinava o IDP, patrocinar também o Imafe. Rony Moreira, o diretor do instituto, saiu do encontro animado. E levou a oferta ao conhecimento de Ricardo Leite. O juiz estranhou. Entendeu que poderia estar em curso uma tentativa de aproximação indevida. Quando os termos da delação da JBS vieram à luz, em maio do ano passado, o assunto voltou à tona. Especialmente porque, na famosa gravação da conversa com Michel Temer, Joesley dizia ao presidente que estava conseguindo “segurar” os dois juízes encarregados dos processos que mais o incomodavam àquela altura em Brasília. Ficou no ar, entre aqueles que conheciam o episódio ocorrido meses antes, uma pergunta: na reunião clandestina com Temer, Joesley teria se referido à aproximação promovida pela então auxiliar de Gilmar Mendes? Houve quem tivesse certeza que sim. E aí teve início uma das histórias mais nebulosas (e mais bem guardadas) dos bastidores da Operação Lava Jato.
Sabedores da proporção que o caso poderia ganhar àquela altura, os personagens envolvidos trataram de tomar suas providências. Gilmar cobrou explicações de Leandro Daiello, então diretor da Polícia Federal. Quis saber por que, afinal, um delegado da inteligência da PF estava tentando convencer o juiz Ricardo Leite a prestar um depoimento relatando o episódio ocorrido na sede do IDP. O ministro viu na iniciativa do delegado uma tentativa de envolvê-lo nas tramoias da JBS. Estaria a Polícia Federal executando uma operação clandestina para tentar fisgá-lo? Na conversa, Daiello, polidamente tratou de acalmar o ministro. E negou que houvesse uma ação institucional para investigá-lo. O delegado que procurou o juiz Ricardo Leite para tentar convencê-lo a relatar a “tentativa de aproximação indevida” ocorrida na sede do IDP teria tomado a inciativa por conta própria, embora houvesse comunicado a situação a seus superiores. Gilmar não se deu por satisfeito. Sugeriu a Dalide que, para evitar que a suspeita sobre ela e o IDP se avolumasse, procurasse a PF e pedisse uma investigação sobre o ocorrido. E assim foi feito.
A ideia era que Dalide tomasse a rédea da história. E denunciasse o delegado que tentou tirar do juiz Ricardo Leite um depoimento que a incriminaria. Para dar peso à denúncia que faria, ficou acertado que Dalide iria à Polícia Federal na companhia de um delegado conhecido na corporação. Assim seu caso seria tratado com a gravidade que merecia. De novo, assim foi feito. O escolhido para acompanhá-la foi um certo Fernando Segovia, amigo da própria Dalide e próximo também do ministro Gilmar Mendes (Segovia, igualmente íntimo de políticos do MDB, seria nomeado meses depois diretor da Polícia Federal). O objetivo foi atingido: a queixa de Dalide virou uma investigação. Não para apurar a possível existência de crime por parte de Joesley ao oferecer patrocínio ao instituto dos juízes encarregados de seus processos, mas para averiguar a conduta de Felipe Leal, o delegado da inteligência que tentou dar partida a uma investigação mais ampla. À PF, Dalide disse ter tomado conhecimento, por meio de Gilmar Mendes, que o delegado “teria insistido na necessidade de o juiz (Ricardo Leite) formalizar uma declaração de conduta criminosa” atribuída a ela. Afirmou ainda que o intuito do delegado, ao tentar convencer o juiz a relatar o episódio, tinha por objetivo “atingir o ministro Gilmar Mendes” e “colocar em total descrédito a seriedade de sua atuação”.
Paralelamente, o próprio Gilmar tratou de desarmar a bomba. Logo depois da conversa que teve com o ministro, em seu gabinete do Supremo, Dalide correu para tirar satisfação com Rony Moreira, personagem da origem de toda a história, o diretor do Imafe que havia passado adiante o teor da conversa que haviam tido com Joesley no IDP. Os dois marcaram o encontro em uma padaria. Dalide gravou a conversa. E tentou tirar de Rony Moreira uma declaração negando que ela tivesse pedido os tais 200 milhões. Assustado, e alertado das consequências criminais que o episódio poderia ter, Rony procurou amenizar o relato. Instado pela interlocutora, na conversa gravada, ele desta feita negou que ela tivesse tocado em assunto de dinheiro. Na sequência, Dalide levou uma cópia da gravação para Gilmar Mendes. Seria a prova de que tudo não havia passado de um grande mal-entendido. Gilmar, então, deu mais um passo no sentido de acalmar os ânimos dos envolvidos.
A “sindicância investigativa” para apurar a conduta do delegado Felipe Leal foi instaurada em 26 de junho do ano passado. Todos os personagens da trama, à exceção de Gilmar Mendes, foram ouvidos: Dalide Corrêa, Rony Moreira, o juiz Ricardo Leite e, claro, o próprio Felipe Leal. Ao final, a Polícia Federal concluiu não ter havido qualquer desvio de conduta por parte do delegado – e que ele estava no estrito cumprimento do seu dever. Nenhum outro procedimento foi aberto, porém, para apurar a história de fundo. O Imafe, o instituto dos juízes federais de Brasília ao qual Joesley Batista queria dar dinheiro, acabou fechado. Foi nessa época que Gilmar se deu conta de que precisava tirar Dalide de suas proximidades. Não antes de ela se envolver em outro imbróglio que envolveu o nome do ministro. Tão logo a delação da JBS veio a público, Dalide se encarregou de procurar uma advogada de Brasília que trabalhava para a holding de Joesley. Queria que ela fosse a São Paulo apurar em que medida as revelações contidas na delação avançavam sobre o Judiciário. Dalide estava especialmente preocupada com mensagens — cujo teor, até hoje, é guardado a sete chaves — que havia trocado com Francisco de Assis, o diretor jurídico da JBS. “A Dalide ferrou o Gilmar”, resumiu a advogada da JBS em uma conversa já conhecida e atualmente em poder da Procuradoria-Geral da República.
A Crusoé, Dalide Corrêa negou que tenha deixado o IDP por causa de sua relação com a JBS e das histórias rumorosas que dela derivaram. “Eu já vinha sinalizando havia mais de um ano que pretendia sair. Inclusive tinha começado a fazer a transição para a nova direção (foi o filho de Gilmar, Francisco Mendes, quem assumiu o comando do instituto). Não tem ligação com esse episódio com a JBS”, disse ela. Sobre a confusão em torno do suposto pedido de dinheiro para ajudar Joesley Batista a resolver os problemas que queria na Justiça Federal de Brasília, ela afirmou nunca ter tratado desse assunto: “Pergunta à própria JBS se alguma vez eu pedi dinheiro para eles que não fosse dinheiro para eventos do IDP. O próprio Rony Moreira acabou confessando que ele criou essa história dos 200 milhões”. Depois de perder o posto de diretora-geral do IDP, a ex-faz-tudo de Gilmar Mendes abriu um escritório de advocacia no nobilíssimo Lago Sul de Brasília. Ela passou a estar fisicamente distante, mas segue próxima do ministro. Tanto que é acionada por ele para responder a questionamentos sobre assuntos como os rumorosos patrocínios do IDP. Foi assim quando Crusoé publicou reportagem sobre o assunto. Na ocasião, Dalide Corrêa tratou de assumir tudo – e de eximir Gilmar Mendes de qualquer responsabilidade. Como ele mesmo diz: “Isso é coisa da Dalide”. A mulher-bomba está, ainda, sob controle.
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