RuyGoiaba

A gourmetização do mundo

23.05.19

Saibam, vocês que não conhecem o mundo selvagem do jornalismo: uma das raras diversões no ambiente geralmente insalubre que são as redações de jornal (ou site, já que em breve ninguém mais saberá o que é “jornal”) é o Release Idiota. Explico o jargão: “release” é abreviação de “press release”, material informativo geralmente distribuído por assessorias de imprensa como sugestão de pauta ou para ajudar repórteres que estejam cobrindo determinado assunto.

É claro que há releases profissionais, bem feitos e úteis. E há os que não têm nenhum interesse noticioso ou relação com o assunto em questão, o jornalismo ou a vida inteligente no planeta Terra. Esses são os piores – ou seja, os melhores no quesito humor involuntário. Existe também uma categoria especial: a dos releases que vêm com “raio gourmetizador”.

Não é exclusivo do Brasil. Uns dois anos atrás, a Lyft, rival da Uber, anunciou nos EUA um serviço chamado Lyft Shuttle, em que o passageiro pagava uma tarifa fixa, pegava o carro em um ponto predeterminado e descia em outro. Tuiteiros observaram que o nome disso — há mais de um século — é ÔNIBUS. Você pega um ônibus, lança o raio gourmetizador e shazam!, ele vira “Lyft Shuttle”.

E, outro dia, um amigo meu recebeu um excelente exemplo brasileiro. Era um release sobre o “mercado de coliving (moradias compartilhadas)” e falava de uma empresa que trouxe para o Brasil “o conceito de residência estudantil, popular em países da Europa e EUA”. Arrematava com o número de universitários do Bananão e o percentual deles que saíam de suas casas para estudar.

Alguém precisa apresentar à turma do coliving a república estudantil, essa novidade que existe aqui desde muito antes da proclamação da República: Álvares de Azevedo, o romântico tuberculoso, já dividia moradia com Bernardo Guimarães, futuro autor da “Escrava Isaura”, quando ambos eram alunos de direito no Largo São Francisco. Em Ouro Preto, existem repúblicas de estudantes que têm mais de meio século. Aí vêm os caras não só falar em coliving como acrescentar o detalhe, absolutamente jeca, de que isso é TENDÊNCIA na Europa e nos EUA. Tony Karlakian — aquele personagem de Marcelo Adnet que imita um paulistano endinheirado, com um quê de Amaury Jr. — não faria melhor.

Não me queixo, mesmo porque não adianta. A gourmetização chegou para ficar e existirá enquanto houver gente disposta a pagar mais por “conceitos diferenciados” que são, basicamente, um ônibus ou uma república de estudantes. Deus abençoe os trouxas endinheirados.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Eu disse, na semana passada, que o caso de Joana d’Arc Félix de Sousa era café pequeno: O Globo revelou que Wilson Witzel (também conhecido como Wilson 20, Wilson Pretzel ou Whitney Houston) colocou “doutorado em Harvard” — o chamado período-sanduíche — no seu Lattes sem ter cursado a universidade. E incluiu o nome de Mark Tushnet como orientador do curso que não fez.

A assessoria do governador do Rio depois explicou que ele citou Harvard no currículo porque “tinha a intenção” de estudar lá. Ah, bom. Se é assim, vou colocar Panthéon-Sorbonne, Coimbra e Oxford no meu, porque as minhas intenções são as melhores possíveis. I’m just a soul whose intentions are good: oh, Lord, please, don’t let me be misunderstood.

Fernando Frazão/Agência BrasilFernando Frazão/Agência BrasilWitzel no Sambódromo, com um rolo de pintura que também não é de Harvard

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