RuyGoiaba

‘Estudos mostram’ que jornalistas engolem qualquer coisa

10.05.19

Há uma grande tradição jornalística que se mantém com o passar dos anos, apesar dos esforços de amigos e conhecidos (principalmente o pessoal que trabalha com jornalismo científico): basta encher um estudo fajuto de números, amarrar com uma conclusão bombástica, que renda bons títulos, e publicar em um periódico que pareça — apenas pareça — confiável, que os jornalistas engolem.

Quando eu era um jovem goiaba, e isso faz muito tempo, já dava risada com aqueles “estudos” que programas televisivos viviam divulgando, às vezes contraditórios (“estudos mostram que ovo faz bem ao coração!”, “cientistas revelam que ovo faz mal ao coração!”, “médicos advertem que o colesterol bom é ruim e o ruim é horrível!”). Isso continua, seja porque jornalistas são como certos índios – só contam “1”, “2”, “3” e “muitos” — e raramente checam números, seja porque às vezes interessa divulgar uma pesquisa distorcida que confirme o que eles já pensam (o que é ainda pior).

Dois levantamentos divulgados nas últimas semanas são bons exemplos disso que escrevi aí em cima. Nos EUA, veículos geralmente respeitáveis como o Washington Post e a New Yorker reproduziram – em tom bastante alarmista — um estudo que associava 13 Reasons Why, a série da Netflix sobre uma teenager que se mata, ao aumento dos suicídios de adolescentes nos EUA em 2017.

Quem se deu ao trabalho de ler o relatório, como o blogueiro americano Daniel Bier, constatou o seguinte: 1) ele não incluía nenhum dado sobre a audiência da série entre os adolescentes que se mataram; 2) não explicava por que o número de suicídios aumentara também em junho e dezembro de 2017 (a primeira temporada da série foi lançada em abril); 3) atribuía a alta dos suicídios em março ao TRAILER de 13 Reasons Why exibido nesse mês (é sério); 4) não explicava por que altas semelhantes haviam sido registradas antes da série; 5) muito menos por que, se há ligação entre as coisas, o aumento foi entre adolescentes homens (a protagonista da série, repito, é UMA adolescente).

Ou seja, o tal estudo não serve para nada – a não ser que se use sua conclusão (“não há benefício de saúde pública perceptível associado à série”) para censurar a Netflix ou desestimular qualquer um de produzir arte ou entretenimento que porventura dê “mau exemplo” aos jovens.

O segundo caso é uma pesquisa do Bananão que serve bastante bem para ilustrar a “divulgação interessada”. A Andifes, associação dos dirigentes das universidades federais, publicou um levantamento que coloca nada menos que 80% da população brasileira nas classes D e E – basicamente, para tentar fingir que a universidade pública no Brasil atende majoritariamente aos pobres, em vez de ser o grande programa de pobres financiando ricos que de fato é (IBGE em 2015: 35% dos estudantes de universidades vêm dos 20% mais ricos da população, ante 8% que vêm dos 20% mais pobres). Como diz uma querida amiga, é faxineiro pagando faculdade para rico com camiseta de Che Guevara.

No Twitter, o economista Carlos Góes chamou isso de “classe média de Schrödinger”: “O mesmo grupo, com a mesma faixa de renda, é chamado de ‘nova classe média’ quando se referem à era de crescimento econômico sob os governos do PT e de ‘pobre’ quando estão falando das universidades federais”. Não importa: nesse caso, a intenção da pesquisa é ser uma arma política, não analisar as coisas como são – e quem a divulgou, creio eu, sabe muito bem disso.

Em suma, “estudos mostram” que é bom desconfiar dos estudos de vez em quando. Mas não exagere virando terraplanista, ô animal.

***

A GOIABICE DA SEMANA

“É tanta coisa no menu que eu nem sei o que comer”, como diria Raul Seixas: o ministro da Educação chama Kafka de “kafta” (certamente estava morrendo de fome durante a audiência na Câmara), o filho do presidente fala em “infinito estrelar” e o próprio Bolsonaro escreve que Olavo de Carvalho é “um ícone, verdadeiro fã para muitos” (em vez de “ídolo”). Juro que não sei mais como lidar com essa produção de goiabices digna do Ceagesp. Como diria aquele ex-presidente da Câmara preso, “Deus tenha misericórdia desta nação”.

Adriano Machado/Crusoé“A Metamorfose”, versão Abraham Weintraub: quando Gregor Samsa desperta de sonhos intranquilos, descobre que se transformou num espetinho de carne

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