MarioSabino

Nós, macacos antropoides

03.05.19

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, entrou na guerra cultural promovida pelo governo Jair Bolsonaro e adjacências, ao anunciar que cortaria verbas de universidades federais que promovem “balbúrdia” (manifestações barulhentas de esquerda) e “eventos ridículos” (trenzinho de peladões). Depois da grita, Weintraub bateu em retirada como bom alemão. Disse que o corte de verbas abrangeria todas as universidades federais e que o dinheiro iria para creches e escolas nas quais a molecada luta para aprender a ler, escrever e fazer contas (é sintomático das nossas dificuldades, aliás, que o ministro da Educação confunda milhar com milhão). Excelente. Acho que a melhor guerra cultural contra a esquerda é botar o capitalismo para funcionar no Brasil. Todo mundo sabe a receita: diminuir drasticamente a presença do estado na economia, garantir segurança jurídica a investidores, baixar a corrupção a níveis toleráveis e qualificar profissionalmente os cidadãos – o que exclui fazer pobre pagar para obter diploma de Relações Internacionais, como se isso fosse garantir o seu futuro, e inclui proporcionar ensino fundamental e técnico de boa qualidade para a maioria. Um país se faz com programadores de computador e instaladores de ar-condicionado capazes e bem remunerados.

A Universidade de Brasília, UnB, é uma das que promovem “balbúrdia” e “eventos ridículos”, para usar as palavras de Weintraub. Declaração do ministro divulgada, a direção da UnB afirmou em nota que “não promove eventos político-partidários” nos seus espaços. Curioso. No ano passado, o curso de Ciência Política da universidade ofereceu a disciplina facultativa “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, a pretexto de incentivar o debate. O “golpe” era o impeachment de Dilma Rousseff. Só um lobotomizado para acreditar que não se tratou de um trenzinho de peladões político-partidários.

A verdade é que as universidades brasileiras têm um problema de origem do qual a ideologização extrema é apenas um aspecto, as ilhas de excelência confirmando a regra. Nasceram provincianas e pouco afeitas ao rigor e à profundidade. Em especial, na área de humanas. Em 1986, aos 24 anos, desisti de fazer pós-graduação em literatura italiana na Universidade de São Paulo, depois de constatar que o meu eventual orientador havia lido menos do que eu. Muita gente na USP leu mais do que eu. Mas o fato é que uma universidade não pode contar com um único professor que seja com menos leitura do que um rapazola de 24 anos metido a besta.

USP, vamos ao ponto que interessa. Graças a Caetano Veloso, a passagem mais conhecida de Tristes Trópicos, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, é aquela em que ele descreve a paisagem carioca que “não está à altura de suas próprias dimensões. O Pão de Açúcar, o Corcovado, todos esses pontos tão enaltecidos lembram ao viajante que penetra na baía cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca desdentada. Quase constantemente submersos no nevoeiro sujo dos trópicos, esses acidente geográficos não chegam a preencher um horizonte vasto demais para se contentar com isso”. Uma das partes mais relevantes do livro de Lévi-Strauss, contudo, é outra. Trata-se do trecho em que ele aborda a Universidade de São Paulo. Lévi-Strauss, que não podia ser definido como direitista empedernido, integrou a missão francesa que implantou a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na década de 30.

São Paulo era uma cidade que crescera economicamente, mas continuava tacanha na mentalidade. O fato se refletia na recém-criada universidade estadual de maneira peculiar, num prenúncio até mesmo das pitorescas tendências apresentadas na São Paulo Fashion Week. Diz o antropólogo:

“Nossos estudantes queriam saber tudo; mas, em qualquer campo que fosse, só a teoria mais recente parecia merecer-lhes a atenção. Fartos de todos os festins intelectuais do passado, que aliás só conheciam por ouvir dizer, já que não liam as obras originais, conservavam um entusiasmo sempre disponível pelos pratos novos. No caso deles, conviria falar mais de moda que de gastronomia: ideias e doutrinas não ofereciam, em seu entender, um interesse intrínseco, consideravam-nas como instrumentos de prestígio cujas primícias deviam conseguir. Partilhar uma teoria conhecida com outros equivalia a usar um vestido já visto; expunham-se a um vexame. Em compensação, praticavam uma concorrência ferrenha às custas de muitas revistas de vulgarização, periódicos sensacionalistas e compêndios, para conseguir a exclusividade do modelo mais recente no campo da ideias.”

E ele continua, arrasador:

“Produtos selecionados dos viveiros acadêmicos, meus colegas e eu mesmo muitas vezes nos sentíamos encabulados: criados para respeitar apenas as ideias maduras, ficávamos expostos às investidas de estudantes de uma ignorância completa quanto ao passado mas cuja informação tinha sempre alguns meses de avanço em relação à nossa. No entanto, a erudição, da qual não tinham o gosto nem o método, parecia-lhes, mesmo assim, um dever; de modo que suas dissertações consistiam, qualquer que fosse o tema, uma evocação da história geral da humanidade desde os macacos antropoides, para terminar, por meio de algumas citações de Platão, Aristóteles e Comte, na paráfrase de um polígrafo enfadonho cuja obra tinha tanto mais valor na medida em que, por sua própria obscuridade, era bem possível que nenhum outro tivesse a ideia de pilhá-la.”

Ao final do capítulo, Lévi-Strauss tenta fazer média com seus ex-alunos antropoides, elogiando-lhes os avanços, sem ser convincente. Mais de oitenta anos depois, com a USP como modelo de universidade pública para o país, ainda não descemos da árvore — passamos agora a colher frutas podres como se fossem frescas. Todos fazendo, para variar, a maior balbúrdia.

Se alguém tiver um bom técnico de ar-condicionado, por favor, mande o contato nos comentários.

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